Candidata democrata a vice-presidente sinaliza ambição de americanas por protagonismo, em sintonia com países liderados por mulheres, escreve Laura Greenhalgh em longa e interessante reportagem no Valor Econômico. Vale a leitura, íntegra a seguir.
Qual terá sido a reação de Donald Trump com a escolha do nome de Kamala Harris para dividir a cédula com Joe Biden, seu rival na eleição de novembro? Algum espanto? Satisfação? Preocupação? Biden tinha outras opções de candidatas a vice, mulheres negras ou brancas, mais ou menos progressistas, mais ou menos liberais, porém, escolheu justamente a senadora democrata da Califórnia, cuja indumentária política merece ser analisada.
Independentemente da reação que possa ter tido, Trump já brindou Kamala com a mesma adjetivação que usou contra Hillary Clinton na campanha presidencial de 2016 - “a nasty woman”, uma mulher desagradável. No que foi seguido por um de seus filhos, Eric, que arriscou um trocadilho - “a whorendous person”, uma desconhecida horrorosa.
Os atrativos eleitorais da candidata Kamala ultrapassam a sua história: há uma efervescência no país a sinalizar que as americanas ambicionam mais protagonismo político. Essa tendência se expressa na Marcha das Mulheres em Washington, em 21 de janeiro de 2017, um dia após a posse de Trump. Mais de 500 mil manifestantes saíram às ruas da capital americana, em defesa dos direitos das mulheres. E eram mais de 3 milhões se somadas as 400 marchas que se replicaram pelo país.
Com a morte da juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg, aos 87 anos, há uma semana, essa tendência ganhou tônus: é certo que a morte da decana da Corte comoveu compatriotas no geral, ou seja, mulheres, homens e toda a diversidade sexual na América comprometida com direitos civis. Mas é no universo feminino que as ideias de Ruth devem reverberar. A juíza jamais deixou de trabalhar pelo protagonismo e pela independência das mulheres. Esse foi o seu projeto radical de vida. E assim ela se fez um ícone cultural.
Nas últimas semanas, o Valor ouviu especialistas nos EUA sobre a presença das americanas na cena política, e a impressão que se consolida, a partir da confirmação da senadora como a vice de Biden, é que o Partido Democrata arremessou uma pedra no centro de um grande lago, com reverberações que atingem toda a superfície. Ou toda a sociedade.
Debbie Walsh, diretora do Center for American Women and Politics (Cawp), instituição-referência no mapeamento da participação política feminina nos EUA, diz: “Foi escolha pensada. Se eleito, Biden deve dividir o poder com Kamala. Ela não será uma presença formal no governo, além de ter chances reais de vir a ser a primeira mulher presidente dos EUA”.
Elaine Weiss, jornalista e autora de “The Woman’s Hour - The Great Fight to Win the Vote” (A Hora da Mulher - A Grande Luta para Ganhar o Voto), pondera: “Vamos esperar um pouco para avaliar o poder transformador da senadora. Sem dúvida, ela é um modelo incrível para as mulheres, como também para famílias imigrantes e negras”.
A historiadora Susan Ware, Ph.D. por Harvard e autora de “Beyond Suffrage: Women in the New Deal” (Além do Sufrágio: Mulheres no New Deal), agrega: “Gostei de como ela se comportou ao ser indicada. Não é a primeira mulher a ter o nome na cédula presidencial, nem por isso deixou de exibir o seu orgulho”.
Carmen Barroso, cientista social brasileira radicada nos EUA, completa: “Kamala construiu a trajetória na política depois de ter sido uma procuradora-geral durona. Colocou muita gente na cadeia na Califórnia. Nem sempre esteve ao lado dos anjos”. Pioneira em estudos de gênero, Carmen ganhou o Prêmio de População da ONU, em 2016.
Esse quarteto de afiadas observadoras, cada uma falando remotamente de seus escritórios nos EUA, apruma o olhar não só sobre a figura da candidata, mas sobre o vasto campo político feminino, num momento em que o país segue com o recorde mundial de mortos pela covid-19, além de sofrer abalos sísmicos na economia, algo que estava fora dos planos do atual presidente. Nesse cenário complicado, Kamala será um forte fator de atração num universo de 170 milhões de americanas, 50,6% do eleitorado? Influenciará colégios eleitorais? Quem é Kamala Harris, afinal?
Aos 55 anos, autodefinindo-se negra e casada com Douglas Emhoff, advogado americano de origem judaica, Kamala carrega uma história de enfrentamento do racismo por duas vertentes: a do pai, o economista Donald Harris, negro e nascido na Jamaica, e a da mãe, a bióloga Shyamala Gopalan, nascida na Índia. Ambos com Ph.D. pela Universidade da Califórnia, Berkeley, e fortemente inseridos no movimento pelos direitos civis dos anos 1960.
Casada com um branco, esse enfrentamento poderá continuar, como alerta Charles M. Blow, colunista do “New York Times”: “A mistura racial de Harris deve ajudá-la nas grandes cidades, mais liberais. Mas, no Sul, sua história gera resistência. Com exceção do Texas e da Flórida, Estados sulistas têm a menor taxa de imigrantes e ainda hoje se opõem ao casamento inter-racial”. Reflexão oportuna diante das tensões raciais com a morte de George Floyd, negro brutalmente asfixiado por um policial branco em maio, o que detonou protestos não só nos EUA.
Para Susan Ware, hoje o ambiente político-eleitoral americano é algo que precisa ser medido com a régua da história. Há cem anos, aprovava-se a Emenda 19 da Constituição Americana, proibindo governos federal e estaduais de negar o direito ao voto em razão de sexo. A emenda foi uma vitória do movimento sufragista, iniciado por mulheres no século XIX. Aprovada, a emenda encarou longo percurso legislativo até alcançar sua ratificação por 36 estados, sempre sob pressões contrárias. Entretanto, no caso das mulheres negras, estas só tiveram a garantia do voto nos anos 1960. Antes disso, ficavam fora das cabines eleitorais, excluídas pelas famigeradas placas “whites only” (apenas brancos), tão comuns na América sulista.
“O sistema racial foi tema central do movimento sufragista cem anos atrás. E continua sendo hoje, como uma história que não termina. Tenho feito conferências sobre o centenário da Emenda 19, e fica evidente o link que as pessoas estão fazendo entre passado e presente”, afirma Susan. Comemorado em agosto, o centenário reverberou nas mídias sociais, encampado por articulações como Black Lives Matter, #Me Too, Say Her Name e We All Vote.
Ao questionar o voto pelo correio e até sugerir a eleitores que nem saiam de casa em novembro - isso em um país onde votar é facultativo -, Trump atropela movimentos de participação popular, que reagem dando gás a um novo sufragismo, em pleno século XXI. Kamala já declarou apoio: “Votar é a melhor maneira de honrar gerações de mulheres que abriram o caminho para mim”.
Artistas, figuras políticas, acadêmicas, esportistas, profissionais liberais, estudantes, o mulherio organizado vem pregando o comparecimento maciço aos locais de votação, além de combater a onda de “fake news” desencorajando eleitores a votarem pelo correio, por risco de fraude. Ícones femininos saíram a campo. A ex-primeira-dama Michelle Obama, estrela da convenção democrata sem ser candidata a nada, pede que as mulheres saiam de casa para votar e “dar um basta ao caos”. Nancy Pelosi, a superpoderosa “speaker of the House” - comanda os deputados e é a segunda na ordem de eventual substituição presidencial, depois do vice -, diz às eleitoras que votem e “até estejam preparadas para dar uns ‘punchs’ (socos)”.
Pragmática, a bilionária Oprah Winfrey informa que a sua empresa, a OWN, fechará as portas em 3 de novembro para que todos os funcionários e suas famílias votem. Houve um encontro da atriz Meghan Markle, hoje duquesa de Sussex, nos jardins californianos de uma “deusa” do feminismo, a jornalista e ativista Gloria Steinem. Enquanto a duquesa agradecia a oportunidade da visita, a feminista foi direto ao ponto: “O voto é o único momento em que mulheres e homens são iguais. Portanto, [vamos] votar”.
Aos 86 anos, essa mulher que animou passeatas nos anos 1960 tem a sua vida contada nas telas de cinema. “The Glorias”, o filme, estreia em “streaming” no fim do mês, com Julianne Moore no papel principal - Alicia Vikander faz a jovem Gloria.
Outra erupção feminina foi Anita Hill, a advogada e professora de direito que acusou de assédio sexual o juiz Clarence Thomas, negro como ela, quando ele era candidato a uma vaga na Suprema Corte. Em 1991, Anita foi convocada a testemunhar sobre o caso no Senado, sendo inquirida por uma bancada masculina, branca, liderada por um colega democrata, justamente Joe Biden. Anita foi humilhada na ocasião. E Clarence Thomas, confirmado na Corte.
Agora, três décadas passadas, Biden tratou de pedir desculpas públicas à advogada, reconhecendo que pouco fez para protegê-la dos ataques machistas na ocasião. Anita aceitou as desculpas: declarou que Biden precisa ser eleito em novembro, que as mulheres devem levar mais a sério essa campanha e que se mantém à disposição do país. “Não estou fazendo isso por mim, mas por milhões de pessoas.”
Como Susan, Elaine Weiss também se dedicou a pesquisar o sufragismo americano - ganhou impulso na histórica Convenção de Sêneca Falls, em 1848, realizada numa igreja metodista sob comando de Lucretia Mott (1793-1880) e Elizabeth Cady Stanton (1815-1902), ambas abolicionistas. Em “The Woman’s Hour”, Elaine focaliza o capítulo final do movimento, que durou sete décadas, até a aprovação da emenda.
“O direito ao voto era, e continua a ser, o cerne da questão. Questionar a importância do voto hoje não afeta só as mulheres, mas os negros, latinos, americanos nativos, imigrantes. Estados estão criando regras para dificultar o credenciamento dos eleitores, seu acesso aos locais de votação, suprimem nomes das listas etc. Ativistas do We All Vote tentam derrubar essas medidas na Justiça, ao mesmo tempo em que ajudam as pessoas a se registrar para votar. Enfrentam as táticas de supressão do voto.” Outra prova de que o sufragismo está na ordem do dia, “The Woman’s Hour” foi adaptado para virar minissérie de TV, com estreia em 2021. Será filmado por uma equipe de Steven Spielberg, com produção de... Hillary Clinton.
Carmen Barroso se recorda da disputa presidencial que elegeu Trump, quando atuou como voluntária na campanha da então candidata democrata. De um comitê de Hillary no estado da Pensilvânia, ela saía às ruas para fazer corpo a corpo com eleitores e convencê-los a votar. Trabalho feito de porta em porta, muitas vezes recepcionado por declarações do tipo “Por que eu vou sair para votar? Trump e Hillary são a mesma porcaria”.
“Ouvimos muito isso, especialmente de jovens negros e latinos. Creio que esses segmentos estão mais conscientizados agora. Ainda me preocupo com os estudantes, garotas e garotos que se politizaram na esteira daqueles horríveis massacres em escolas. Minha dúvida: eles vão votar ou querem cortar a cabeça de todos os políticos?” Carmen lamenta que a convenção democrata, semanas atrás, tenha destinado mísero minuto e meio de fala para a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, estrela em ascensão no partido: parlamentar de 30 anos, latina, bonita e descolada, ao falar para os jovens, ela é ouvida por milhões.
De eleições em cidades pequenas à disputa nacional que Kamala enfrenta, estatísticas têm sido produzidas pelo Center for American Women and Politics (Cawp), ligado ao Eagleton Institute of Politics, da Rutgers University, em New Jersey. Sua diretora, Debbie Walsh, está à frente de um amplo monitoramento da participação feminina nas diferentes instâncias políticas.
O centro também oferece cursos de capacitação para candidatas, além de uma rede de conteúdos e contatos preciosos para quem quer virar prefeita, governadora ou presidente. Vale lembrar que, assim como no Brasil, as mulheres continuam em minoria no Congresso dos EUA - entre os senadores, são 26%; entre os deputados, 23% (no Brasil, esses índices caem para 14,8% e 15%, respectivamente). Considerando cidades acima de 30 mil habitantes, as americanas comandam 22% das prefeituras, mas chegam a 27% no ranking das cem maiores cidades do país.
Ao investigar o comportamento eleitoral feminino no período das quatro décadas entre Reagan e Trump, o Cawp demonstra que as mulheres votam preferencialmente em candidatos democratas. Elas se interessam por temas sociais, como sistema de saúde e preservação do meio ambiente, e dão mais apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, idem para o aborto legal, sem restrições. São fortemente favoráveis ao controle de armas. Em 2016, depois de uma campanha repleta de grosserias contra mulheres, Trump ainda assim conseguiu faturar 42% do eleitorado feminino americano - 62% delas não tinham curso superior e metade era branca. Isso disseminou a percepção de que, mesmo atacadas, mulheres votam em candidato machista.
“É preciso evitar esse tipo de generalização. O voto feminino é diverso. Hillary teve a maioria do eleitorado feminino, 54%. No caso das mulheres negras, 94% estiveram com ela. O que houve foi uma concentração de votos pró-Trump entre mulheres brancas de menor instrução, nos subúrbios das grandes cidades. Foi algo como 53%, e isso não era esperado. Elas preferiram votar em um desconhecido politicamente, de olho na chance de melhorar de vida. Hoje Trump não é um desconhecido, ao contrário, elas sabem de quem se trata”, diz Debbie.
Carmen tem a mesma visão: “Elas perceberam que as agressões e os comentários misóginos de Trump não eram meras brincadeiras. Ele pensa assim. Tenho a impressão de que esse segmento de mulheres, evangélicas ou não, experimentou uma profunda decepção com o presidente”. Elaine Weiss aposta é na balança de gênero em novembro: acha que a presença geral das eleitoras vai dar um salto, e isso pode beneficiar o democrata.
Que temas empurrarão o voto feminino neste inesquecível ano de 2020? Com base nas pesquisas do Cawp, Debbie responde: a pandemia e suas conexões com a economia. “As mulheres não vão se esquecer da forma como a covid-19 foi tratada nos EUA, os problemas do sistema de saúde, o número impressionante de mortos. E estão preocupadas com o efeitos de tudo isso no bolso”. Mas, como ficam temas sensíveis como aborto e diversidade sexual, sempre tão explorados por grupos conservadores, fiéis a Trump? Debbie insiste: “Neste ano não serão destaque. O que estará em julgamento é a pandemia e a economia. Depois, justiça racial”.
Seja como for, a convenção dos republicanos, considerada mais trumpista do que partidária, abriu espaço para mulheres conservadoras tocarem nos temas sensíveis, caso da militante antiaborto Abby Johnson e da religiosa Deirdre Byrne. Trump chegou a ser saudado como “o presidente mais pró-vida de todos os tempos”. Ao passo que, na convenção democrata, o tema aborto foi evitado. Houve apenas uma genérica menção a “justiça reprodutiva”, o que não impediu o atual presidente de postar: “A cédula Biden-Harris é a mais pró-aborto da história”.
Dimensionar a força das mulheres conservadoras no cenário político americano passa, forçosamente, pela observação do campo adversário. Nas eleições de meio período, em 2018, houve um boom de candidatas democratas, algo histórico e surpreendente. Foi a legislatura em que debutou Alexandria Ocasio-Cortez - hoje conhecida pela sigla AOC -, dona de um discurso à esquerda do próprio Partido Democrata, no qual ela consegue inserir a palavra “socialismo”. Muito jovem (31 anos no próximo dia 13), Alexandria chegou a trabalhar no gabinete do senador Ted Kennedy, morto em 2009. Depois, atuou na campanha de Bernie Sanders, em 2016. E, quando decidiu disputar uma vaga no Congresso, ainda trabalhava numa “taquería” da Union Square, em Nova York.
Não foi a única revelação democrata em 2018: elegeram-se também Ilhan Omar, por Minnesota; Ayanna Pressley, por Massachusetts; e Rashida Tlaib, por Michigan. Vale destacar que novatas como elas costumam passar pela VoteRunLead, organização apartidária que abriga o maior programa de treinamento de mulheres na política nos EUA, comandado pela consultora e CEO Erin Vilardi. A entidade já capacitou mais de 30 mil aspirantes à política.
Descendentes de imigrantes, progressistas e críticas implacáveis do governo Trump, Alexandria, Ilhan, Ayanna e Rashida são identificadas no Congresso como The Squad (O Pelotão). O presidente reservou a elas uma das suas manifestações públicas mais fortes, digna de um supremacista branco: “Voltem e ajudem a consertar os países totalmente quebrados e infestados de criminosos de onde vieram”. O Congresso condenou a declaração, Trump chutou a bola para suas torcidas (“Essas mulheres falam em judeus demoníacos”), Israel impediu Ilhan e Rashida de visitar o país e o pelotão mandou recado ao presidente: “We are here to stay”. Vieram para ficar.
Pois todo esse ambiente tem impacto no campo conservador. A emergência de lideranças femininas democratas em 2018 suscita reações em 2020: em termos proporcionais, o número de candidatas republicanas a vagas no Congresso já supera o número de candidatas democratas. Assim como no campo adversário, o republicano também abriga mulheres de diferentes estilos e possibilidades.
Ex-governadora da Carolina do Sul e ex-embaixadora dos EUA na ONU (no cargo até dezembro de 2018), Nikki Haley é figura em ascensão no Partido Republicano, para voos mais elevados. Aos 48 anos, casada com um oficial do Exército, branca na aparência, apesar da origem indiana, Nikki articula o discurso “law & order” (lei e ordem) de Trump com o didatismo de uma professora da escola elementar. “Os Estados Unidos não são um país racista”, declarou pausadamente na convenção republicana, arrematando com a seguinte mensagem: “Mesmo nos dias difíceis, acordar como um cidadão americano é um privilégio”.
Preferido nos círculos trumpistas, há um modelo feminino, conservador nas ideias e provocante nas mídias, muito bem encarnado pela advogada, promotora e comentarista de TV Kimberly Ann Guilfoyle. Ex-funcionária da Fox News e hoje namorada de um dos filhos de Trump, Donald Jr., Kimberly é uma mulher bonita, adepta de roupas e maquiagem exuberantes, o que lhe rende a imagem da “self-made woman” de origem latina - a mãe é de Porto Rico, e o pai, irlandês. “Quem apoia essa cultura do cancelamento da elite cosmopolita de Nancy Pelosi e Joe Biden?”, atacou a primeira-nora na convenção, em um discurso de quase seis minutos.
Comparando as duas únicas antecessoras de Kamala como candidatas a vice, tem-se, também, modelos distintos. Em 1984, uma professora e advogada de Nova York, Geraldine Ferraro (1935-2011), concorreu na chapa democrata com o presidenciável Walter Mondale. Enfrentaram Ronald Reagan (1911-2004) e seu vice, George H. W. Bush (1924-2018). Como procuradora de Justiça, Geraldine atuou no combate a crimes sexuais e violência doméstica. Como deputada, em leis favoráveis às mulheres no ambiente de trabalho.
Na campanha presidencial, precisou se proteger do seu próprio feminismo bem-comportado. Geraldine será sempre lembrada pelo tradicional debate dos vices, na TV, quando encurralou Bush em dois momentos: mostrou que ele havia virado a casaca na questão do aborto, tornando-se um “pró-vida”, e que ele fora contrário ao Voting Rights Act, assinado pelo presidente Lyndon Johnson [1908-1973] em 1965, finalmente garantindo o voto aos negros.
Outra antecessora de Kamala foi a candidata a vice Sarah Palin, na chapa encabeçada pelo republicano John McCain, em 2008. Ex-governadora do Alasca e ligada ao movimento direitista Tea Party, Sarah levou um discurso que misturava vivência política, trivialidades de dona de casa e o estilo de animadora de auditório. Ela enfrentou justamente Joe Biden, vice na chapa de Obama. “Ela cumpriu um papel importante. Abriu caminho para outras mulheres conservadoras aspirarem espaços elevados do poder”, afirma Debbie. Fora da política, Sarah Palin tem feito comentários na Fox News, e sua biografia, “Going Rogue”, vendeu 2 milhões de exemplares. Michelle Obama, mesmo repetindo que odeia política, superou a marca dos 10 milhões de exemplares vendidos da sua biografia, “Minha História”.
No ano eleitoral da pandemia, sem a possibilidade do contato físico e de uma troca energética com os eleitores, Kamala segue tentando fazer o seu caminho rumo ao topo. Os Estados Unidos, que abrigaram movimentos de liberação feminina de repercussão planetária, nunca tiveram uma mulher “dona da caneta”, despachando no Salão Oval - Hillary tentou, mas não conseguiu -, e nem uma vice eleita. O que chega a ser um anacronismo, considerando o elenco de americanas no comando de estados e cidades pelo país, além da performance diferenciada de algumas chefes de Estado no combate ao vírus - caso da chanceler Angela Merkel, na Alemanha; das primeiras-ministras Jacinda Ardern, da Nova Zelândia; Katrín Jakobsdóttir, da Islândia; Erna Solberg, da Noruega; Mette Frederiksen, da Dinamarca; e de Tsai Ing-wen, presidente de Taiwan.
Estudo do Instituto Global para a Liderança Feminina, do King’s College, compara respostas de governantes à pandemia, concluindo que um número expressivo de mulheres em topo da hierarquia soube ouvir a ciência, avaliar riscos e, sobretudo, atuar de forma colaborativa. Elas se distanciam da liderança masculina apoiada em comportamentos negacionistas e competitivos.
É preciso reconhecer que, além da boa maré para as mulheres, Kamala conta com um empurrão da história: ao ver que não seria a candidata oficial do partido, deixou a disputa na reta final, conseguindo preservar seu capital político. Será a vice de um presidente que, se eleito, chegará ao cargo com 78 anos. Do ponto de vista físico, o (quase) octogenário Biden poderá cumprir bem o seu primeiro mandato, ou não. E pode nem se dispor ao segundo. Como avalia Debbie, “ganhando ou não, Biden sinalizou algo muito importante para os democratas: o futuro do partido não está nas mãos de um homem branco e idoso”.
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