Escrevo este texto para tentar descobrir se gostei ou não do último romance de Elena Ferrante, “A Vida Mentirosa dos Adultos”. Sou fã de carteirinha da autora, algo que eu considerava impensável antes de ser abduzida pela “Tetralogia Napolitana”. Quando eu digo fã de carteirinha quero dizer, por exemplo, que saí de casa em pleno verão lisboeta, sob um calor tórrido, enfrentei a multidão da feira do livro apenas para adquirir meu exemplar no mesmo dia em que o romance foi publicado, escreve a colunista do Valor, em texto publicado sexta, 25/09. Continua a seguir.
Uma coisa é certa: a escrita de Ferrante funciona como uma droga das mais potentes. Quando começo a ler, não consigo parar, nem quando as crianças chegam da escola e correm em algazarra pela casa, nem na hora do jantar, de lavar os dentes deles ou de ler uma história para os fazer dormir. Sobre o que é esse livro que você não larga?, pergunta o mais velho. Resumo: sobre uma menina que tinha sido educada para não mentir, mas descobre que os pais mentiam. Paro por aqui, um pouco arrependida das palavras pronunciadas, ciente de que uma enxurrada de perguntas está prestes a começar.
Mas voltemos à minha dúvida inicial: gostei ou não do livro? Seria a própria hesitação um sinal de fracasso? Vou relembrando aos poucos cada personagem até chegar à conclusão de que o romance é como eles: nem totalmente adoráveis, nem totalmente odiáveis. Para ser mais exata, não há homem apaixonante em “A Vida Mentirosa dos Adultos”, mas as mulheres são, quase todas, ao mesmo tempo cheias de força e cheias de defeitos. Eu as amo e não as suporto.
O dilema surge desde o início, logo na primeira frase: “Dois anos antes de sair de casa, a minha mãe disse ao meu pai que eu era muito feia” (alusão de Ferrante à frase de Emma Bovary, no romance de Flaubert: “Como é feia essa criança”). A sentença, tão dura, nos aproxima e nos afasta de quem narra. Sentimos empatia pela dor da menina; ao mesmo tempo, se o próprio pai parece desprezá-la, por que iremos nós amá-la?
Giovanna é uma menina criada na parte alta de Nápoles, filha de professores, culta, estudiosa, muito bem-educada. Até o momento em que a narrativa começa, amou muito o pai, Andrea, com quem se divertia mais do que com a mãe. Por isso aquelas palavras soavam como a faca que fere um corpo. Mas o golpe fatal veio a seguir: “A adolescência não tem nada a ver: está ficando com a cara de Vittoria.” Nada pior para a menina do que essa constatação. “Aos doze anos”, diz ela, “fiquei sabendo, pela voz do meu pai, sufocada pelo esforço de a manter baixa, que estava ficando como a sua irmã, uma mulher na qual se associavam na perfeição a fealdade e a malvadez. (...) Em minha casa o nome Vittoria soava como o de um ser monstruoso, que suja e infecta tudo aquilo em que toca.”
Vittoria encarna o mal absoluto. Mas agora é Giovanna quem se vê transformada pela maldade numa menina feia. Iremos, então, amar uma pessoa que se encaminha para esse fim?
Em realidade, aquilo que o pai chama de malvadez e fealdade vai se revelando um espelho no qual vemos o outro de nós mesmos. Quando ele se olha nesse espelho, vê o rapaz que abandonou no bairro industrial e pobre de Nápoles, junto com toda a sua família, para se tornar um professor culto e respeitado. Passa a vida fugindo do passado, de tudo o que remete a ele - e que tem na figura de Vittoria a memória concisa. Mas o passado volta sempre, o outro Andrea irrompe do espelho e fala “numa cedência ao dialeto, totalmente proibido em nossa casa.”
O outro de Giovanna está no futuro. Um futuro que a menina, ao contrário da voz que narra, ainda não conhece, mas que se anuncia na sentença do pai. Ela, que até aqui se acreditou bem-comportada, boa, bonita, descobre que está prestes a se tornar feia e má. A única forma de evitá-lo, pensa ela, é olhando de frente para o mal, ou seja, para a cara de tia Vittoria, apagada de todas as fotografias.
Então começa sua busca pelas origens paternas, que se confunde com a geografia da própria cidade. Andrea veio da parte baixa de Nápoles, onde Vittoria ainda vive, e onde se sobrepõem a pobreza, a sujeira, o descaso. Para se tornar quem é, teve que negar, esconder o que tinha sido até então. Mas tudo isso pode irromper numa única frase, na língua que Ferrante encara como a língua da violência e da obscenidade. Em sua última entrevista, ela diz que “o dialeto se impõe nos momentos de crise, irrompe com toda a sua dureza”. Ao contrário do italiano, a língua da fuga, da emancipação, do crescimento, o napolitano é “a possível erupção de um gêiser.”
Andrea fez o mesmo movimento de Lenú, a narradora da “Tetralogia Napolitana”: fugiu do bairro, da pobreza, pelo estudo. A conquista do italiano foi para eles a possibilidade de sair daquele mundo “baixo”, violento, obsceno. Mas Giovanna é da geração seguinte. Nasceu em 1979 e, ao contrário de Lenú, foi educada em italiano, em boas escolas, com boas condições. Seu movimento é oposto. Ela sai da parte alta da cidade rumo à parte baixa, intrigada com a figura daquela tia má e feia.
Mas eis que a tia abre a porta, e o que Giovanna encontra não é exatamente o que esperava. Há muita beleza em Vittoria, e a beleza reside naquilo que se escancara nela e se esconde em Andrea: a naturalidade, a franqueza com que fala das coisas. Giovanna logo percebe que nada é imutável: nem a beleza nem a feiura, nem a bondade nem a maldade; nem a mentira nem a verdade; nem a parte alta nem a parte baixa da cidade. Uma se dissolve na outra, se confunde com a outra. O que é belo é também feio. O que é feio é também belo. E Giovanna vai ser aquela que mistura tudo, arrasta os sentimentos, ultrapassa as fronteiras geográficas e sociais.
Se Andrea, como a Elena da “Tetralogia”, insiste em apagar o passado do bairro industrial onde nasceu e cresceu, sobrepondo a ele a fineza da língua italiana em oposição ao dialeto, Giovanna faz o movimento contrário. Ao perceber o quanto havia de mentiroso no ambiente dos adultos - a mentira começa com Vittoria e vai até a separação dos pais -, ela decide eliminar de si a educação que recebeu, como quem tira uma roupa formal demais, até ficar nua, face à verdade do próprio corpo. O corpo vulgar, obsceno, violento que ela vai conhecendo nas suas visitas à tia e que aos poucos vai destruindo o corpo puro da menina que só vestia cor-de-rosa. Enquanto o pai quer apagar o dialeto, Giovanna se arrisca a pronunciá-lo, mas ri - um riso sarcástico - da sua inabilidade. Ela já não é aquela menina fina, mas tampouco é uma menina da parte baixa da cidade.
Em tudo o que Ferrante escreve, há um percurso de emancipação da mulher. Na “Tetralogia”, a emancipação vem através do estudo. Elena quer estudar para sair do bairro, para se tornar independente, para não depender do marido. Em “A Vida Mentirosa dos Adultos”, a emancipação surge de uma desconstrução do corpo que vem junto com o movimento de desprezo pelos estudos. Ida, amiga de Giovanna, de família rica e igualmente bem-educada, quando encontra na literatura a sua vocação, vê na escola uma inimiga da liberdade que a escrita proporciona. Giovanna, por sua vez, afirma logo no princípio do romance: “tornei-me cada vez mais distraída e a minha aversão à escola aumentou”. Sua emancipação virá pela contrariedade ao desejo dos pais de que ela se tornasse culta e prestigiada.
O que esperam de seu corpo é o que ela não faz. Assim, vai se tornando cada vez mais feia, e cada vez mais bonita. Vai se apoderando do próprio corpo, acolhendo as suas contradições. Vai aprendendo a mentir cada dia mais e, assim, vai se tornando cada vez mais verdadeira. Vai desfazendo a sua identidade tão bem construída até a fluidez se tornar aquilo que ela é.
Finalmente, agora percebo que, nas contradições nas quais o romance se inscreve, inscreve-se também a minha opinião sobre ele. Está nisso a sua força, no fato de que nada está ganho de partida, as coisas contêm em si os seus opostos, são também o seu avesso.
Tatiana Salem Levy, escritora e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa, escreve neste espaço quinzenalmente
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