Pular para o conteúdo principal

Com “Narciso em Férias”, Caetano rememora fantasmas da ditadura

Pedro Butcher resenha no Valor o documentário sobre o exílio do cantor e compositor Caetano Veloso durante o regime militar, vale a leitura!

“Quando eu me encontrava preso / na cela de uma cadeia / foi que vi pela primeira vez / as tais fotografias / em que apareces inteira. / Porém não estavas nua / e sim coberta de nuvens...”
Provavelmente o leitor deste texto será capaz de completar de memória o refrão que se segue, de uma das canções mais bonitas e conhecidas de Caetano Veloso.
Pois bem: “Narciso em Férias” - que muito simbolicamente estreou na Globoplay no dia 7 de setembro, mesmo dia de sua exibição no Festival de Veneza -, pode ser visto como um filme sobre a prisão de Caetano Veloso durante a ditadura militar ou a história da gênese de uma música.
É as duas coisas, na verdade. Não a canção composta na prisão - “Irene”, inspirado na risada de sua irmã mais nova -, mas “Terra”, concebida dez anos depois, a partir de uma experiência específica que teve “na cela de uma cadeia”.
O documentário de Renato Terra e Ricardo Calil toma como guia o capítulo do livro “Verdade Tropical”, do próprio Caetano, batizado justamente de “Narciso em Férias”, que, por sua vez, faz referência ao romance “Este Lado do Paraíso”, de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), e ao fato de Caetano ter passado quase dois meses sem se olhar no espelho.
A opção dos diretores foi radical nesse sentido: a câmera é um espelho que reflete/registra o rosto e o corpo de Caetano sobre um fundo neutro, enquanto ele se lembra de um dos episódios mais traumáticos de sua vida. No dia 27 de dezembro de 1968, em plena ditadura militar, 14 dias depois da decretação do AI-5, o cantor, aos 26 anos, recém-casado com Dedé, foi retirado de seu apartamento em São Paulo e levado para uma prisão no Rio de Janeiro.
Caetano descreve com detalhes as lembranças dos 54 dias em que esteve encarcerado; a primeira semana em uma solitária. O documentário se despe de qualquer distração e recusa procedimentos tradicionais. O material de arquivo - base do documentário “Uma Noite em 67”, da mesma dupla, sobre a explosão da Tropicália, um ano antes da prisão - é deixado de lado.
Os poucos materiais usados não são exibidos diretamente, mas passam pelas mãos do cantor: a revista “Manchete”, levada por Dedé, com as fotografias da Terra vista do espaço (que anos mais tarde inspiraria a canção), e os autos do processo.
O rigor do formato não significa que pouco se suceda. Há muitos episódios, e cada um faz emergir sentimentos diferentes. Há desde histórias anedóticas, como a do homônimo de Antonio Callado (1917-1997) que foi preso por engano e dividiu a cela com Ferreira Gullar (1930-2016) e Paulo Francis (1930-1997), a outras de tom mais patético, como os interrogatórios aos quais o cantor foi submetido, quando finalmente pôde entender os motivos de sua prisão - a falsa acusação do jornalista Randal Juliano (1925-2006) de que ele teria debochado do hino nacional durante um show.
O próprio Caetano lê trechos do interrogatório: “Perguntado se seria capaz de cantar o hino nacional em ritmo de Tropicália, o preso respondeu que não”. “Estou rindo, mas é muito triste”, emenda, explicitando o caráter tragicômico das arbitrariedades da situação.
Também no resumo do processo, está lá a definição de Caetano como um “cantor de músicas de protesto de cunho subversivo e desvirilizante”. “Esse sou eu”, diz. Há também momentos de profunda tristeza, talvez, não por coincidência, o episódio mais lacunar do filme. O sargento que permitiu a entrada de Dedé na cela, um alento revigorante que o tirou do desespero, mais tarde teria sido preso.
 Outro objeto que passa pelas mãos de Caetano, claro, é o violão. Nele, o cantor não toca apenas “Terra”, mas também músicas que marcaram esse período de forma especial. Uma delas é “Súplica”, de Orlando Silva (1915-1978), que havia tocado em casa, na noite anterior à prisão (“uma noite como todas as outras, que passamos conversando, ouvindo discos e cantando”).
Nos primeiros dias da solitária, um senhor comunista que está na cela ao lado, amante de música e conhecedor de Caetano e Gil (também preso), pede justamente que ele cante “Súplica”. A outra canção é “Hey Jude”, de John Lennon (1940-1980) e Paul McCartney, um hit que Caetano, supersticioso confesso, associará a bons presságios.
Nem é preciso lembrar, ou talvez seja mais necessário do que nunca lembrar: “Narciso em Férias” neste momento ganha um significado especial. Os fantasmas da ditadura que assombram o filme, tristemente, ganham uma concretude absurda.
“Narciso em Férias” Brasil, 2020. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Onde: GloboPlay AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...