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As falhas geniais de Churchill

Winston Churchill (1874-1965) é o cidadão mais conhecido do mundo nos últimos 200 anos. Somente Napoleão Bonaparte (1769-1821) pode lhe ser comparado. Aliás, idolatrava de tal forma o imperador francês que manteve até morrer um busto dele na escrivaninha. Diferentemente de Napoleão, seu admirador britânico colecionou poucas derrotas e adquiriu uma aura de unanimidade. Atingiu a maior parte das metas a que se propôs, obteve as maiores honrarias e venceu os rivais que encontrou pelo caminho de sua ascensão, até chegar por duas vezes ao mandato de primeiro-ministro, escreve Luís Antônio Giron em resenha para o Valor, publicada sexta, 4/9. Continua a seguir.

Mesmo racista, opositor ao voto feminino e à libertação das colônias britânicas, é ainda reverenciado como salvador de valores do Ocidente, como a cultura, o humanismo e o livre mercado. Um prestígio inabalável. Nem mesmo teve sucesso a recente tentativa de derrubar sua estátua em Londres por parte do movimento Black Lives Matter, pois o ato foi rechaçado pela maioria da população londrina.
Churchill foi um político espetacular em pelo menos dois campos: na estratégia militar, enfrentou duas guerras mundiais, das quais saiu vitorioso; no Parlamento britânico, soube se converter em protagonista da história e lançou mão de ferramentas de marketing político e autopromoção. Além de escritor premiado com o Nobel de Literatura de 1953, trabalhou como jornalista e roteirista de cinema. Nas horas vagas, pintava óleos com destreza.
Tinha consciência do papel que representava na política, sem descuidar da função de escritor e protagonista de uma história que se pôs a redigir desde o início de sua trajetória. “Demasiado se escreveu e está sendo escrito sobre mim”, disse Churchill nos anos 1920 ao amigo e físico Frederick Lindemann (1886-1957). Desde então, muito se produziu sobre o assunto, inclusive Churchill, autor de 37 livros de não ficção, repletos de passagens autobiográficas.
Seus primeiros biógrafos sabiam que o material era abundante, mas insuficiente para uma biografia. Isso só foi possível a partir da década de 2010, quando vieram a público as últimas peças que faltavam ao quebra-cabeça. Entre os documentos revelados, constam íntegra dos diários do rei George VI (1895-1952), as transcrições das reuniões do gabinete de guerra e documentos de filhos e amigos.
Essas e outras fontes impulsionaram a elaboração de “Churchill - Caminhando com o Destino”, do jornalista inglês Andrew Roberts, um volume com mais de mil páginas. “Cinquenta anos após a morte de Churchill, enfim, se torna possível pintá-lo como algo que se aproxima de suas verdadeiras cores”, diz Roberts. Ele também consultou documentos que ainda não entraram em domínio público, como diários e cartas.
O objetivo da pesquisa foi demonstrar que Churchill tratou de honrar a memória do pai, lorde Randolph Churchill (1859-1895), derrotado por rivais no parlamento e morto aos 45 anos. Imbuído de um sentido de destino, Winston Churchill achava que morreria cedo e tinha pressa de mostrar que sua linhagem possuía valor além do título ducal. Igualmente queria provar ao pai de que era digno de um orgulho que jamais demonstrou por ele.
O livro traz revelações que ajudam a nuançar um perfil turbulento e idealista. Em muitas ocasiões, Churchill agia com grosseria, impulsividade, e não sentia vergonha de chorar, algo visto em sua época como indecoroso. Outro hábito, o alcoolismo, faz parte da lenda que espalhou sobre si mesmo. Não passou de um bom copo com a sede típica de seus contemporâneos, mas nunca passou por clínicas de desintoxicação.
Outro estigma é de que se tratava de um ambicioso desajuizado, capaz de passar por cima de quem fosse para atingir seus objetivos e cometer erros, como o ataque à península de Galípoli em 1915, que representou a derrota dos britânicos para os turcos. Ele também deu a palavra final sobre o uso da bomba atômica no Japão em conversa secreta com o presidente Harry Truman (1884-1972) durante a conferência de Potsdam em 1945.
 O biógrafo argumenta que o fracasso em Galípoli foi obra de almirantes despreparados. Churchill demonstrou sabedoria e senso prático, essenciais para superar três ameaças mortais à civilização ocidental: o militarismo prussiano em 1914, os nazistas nas décadas de 1930 e 1940 e o comunismo soviético depois da Segunda Guerra. A bomba atômica teria sido fundamental para conter o avanço da barbárie.
Tampouco a corrupção integrou seu estilo de vida. Nos tempos de falta de dinheiro, empregou-se como membro da diretoria de uma multinacional e arrecadou milhares de libras com turnês de palestras, venda de livros e artigos para jornais e revistas, para não citar uma dezena de roteiros de cinema. Num dos trechos mais pitorescos da biografia, Andrews conta como ele fez o script de um longa-metragem sobre a vida de Napoleão, encomendado aos estúdios dos irmãos Alexander e Zoltán Korda, que até hoje não foi produzido.
A chave do triunfo de Churchill talvez seja encontrada no carisma pessoal e no comportamento cambiante que o levou a tomar decisões aparentemente irracionais e imprevisíveis. Não tinha medo de errar e de se ironizar. Como disse certa vez a lorde Roseberry: “Não importa quantos erros se cometem na política, desde que se continue a cometê-los. É como jogar bebês aos lobos: quando você para, a matilha alcança o trenó”. Os erros calculados construíram a sua glória até o fim.
Churchill - Caminhando com o Destino Andrew Roberts. Trad.: Denise Bottmann e Pedro Maia Soares. Companhia das Letras, 1,2 mil págs, R$ 129,90 / AAA
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco



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