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Época: farmacêuticas na bolsa, para o alto e avante

O preço das ações das companhias que estão em busca da vacina contra o coronavírus não para de subir, escreve João Sorima Neto na edição desta semana da revista Época. Íntegra a seguir.

Não fosse a pandemia do novo coronavírus, é possível que a Novavax, uma empresa americana fundada há 33 anos no estado de Maryland, ficasse na categoria das empresas pouco conhecidas do grande público para todo o sempre. Com apenas 370 funcionários, seria mais uma companhia de porte médio dos Estados Unidos. Acontece que a Novavax anunciou testes em humanos de uma candidata a imunização contra a Covid-19. É a terceira fase do desenvolvimento da vacina, em que milhares de voluntários recebem o medicamento. Se os resultados confirmarem os testes anteriores, ela poderá começar a ser produzida em grande escala. Mesmo com poucos empregados, a Novavax está num jogo de gente grande, que inclui a britânica AstraZeneca, as americanas Pfizer e Johnson & Johnson, a alemã BioNtech, a francesa Sanofi, além das chinesas Sinovac e Sinopharm e dos russos do Instituto Gamaleya.
Com ações negociadas na Bolsa americana de empresas de tecnologia, a Nasdaq, a Novavax atingiu em agosto a cifra de US$ 8,5 bilhões em valor de mercado, o que a coloca ao lado de companhias gigantescas como Caterpillar e Heineken. Desde janeiro, as ações da Novavax saltaram mais de 2.300%. A empresa não recebeu dinheiro somente de investidores. O governo dos Estados Unidos colocou US$ 1,6 bilhão em seus cofres para acelerar os processos de desenvolvimento e produção da vacina. Em ano de eleição e com os Estados Unidos liderando o número de casos e de mortes, o presidente Donald Trump quer uma resposta rápida dos cientistas, se possível antes da votação marcada para novembro. Foi a maior cifra da chamada “Operação Warp Speed”, algo como “dobrar a velocidade”, uma parceria público-privada iniciada pelo governo dos Estados Unidos. O objetivo da “Warp Speed” é que o medicamento já esteja disponível à população no início de 2021, por valores entre US$ 20 e US$ 42 a dose, dependendo do fabricante.
Além de se juntar à Novavax, Trump também despejou US$ 1 bilhão em investimentos na gigante Johnson & Johnson e mais US$ 1,2 bilhão na AstraZeneca, que trabalha em parceria com a Universidade de Oxford. E fechou acordos milionários também com a Pfizer e a Sanofi, que vem trabalhando com a britânica GlaxoSmithKline.
Não por acaso, são as empresas que já estão na fase 3 da vacina. Países como Reino Unido, Japão e Canadá também fizeram investimentos similares nessas companhias, mas nenhum com a dimensão dos Estados Unidos. “As ações das empresas que estão desenvolvendo vacinas contra a Covid-19 apresentaram desempenho superior às demais nos últimos meses. Isso reflete o otimismo dos investidores quanto à probabilidade de uma vacina ou algumas vacinas serem aprovadas” disse a ÉPOCA Vamil Divan, analista sênior da Mizuho Securities, em Nova York, analista especializado no setor de saúde.
Além da comunidade médica e da indústria farmacêutica, o mercado financeiro também considera a vacina contra a Covid-19 a invenção mais concorrida da história recente. Estima-se que serão necessárias entre 6 bilhões e 8 bilhões de doses para que de 60% a 70% da população global seja imunizada, se tudo correr bem, em 2021 e 2022. São números que potencializam os ganhos para a empresa que der o tiro certeiro.
A pandemia já provocou a morte de 820 mil pessoas no mundo, e esse número cresce a cada dia. O coronavírus também causou um colapso do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, com economias encolhendo entre 10% e 30%, em índices anualizados, no segundo trimestre. A economia americana, a maior do planeta, encolheu 33% nesse período. No Brasil, o PIB caiu 9,7% entre abril e junho na comparação com os três primeiros meses do ano. Assim, a cada notícia positiva divulgada pelas empresas que pesquisam um medicamento capaz de prevenir o ataque do coronavírus, as ações dessas companhias dão um salto na Bolsa porque cresce a esperança de que a pandemia possa ser controlada em breve.
Segundo o Banco Mundial, a turbulência econômica decorrente da pandemia de Covid-19 só seria superada pelas crises ocorridas no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, na Grande Depressão, em 1930-32, e com a desmobilização de tropas após a Segunda Guerra Mundial, em 1945-46. A instituição prevê que o PIB per capita global encolha 6,2% neste ano, mais que o dobro do registrado na crise financeira de 2008.
Isso explica os investimentos bilionários das empresas e de governos, que querem ter exclusividade na produção do medicamento. A euforia dos investidores com as ações das farmacêuticas traduz a expectativa de obter ganhos milionários numa tacada só. A consultoria Dealogic calcula que as ações do setor já captaram mais de US$ 9 bilhões neste ano em Wall Street, uma cifra nunca vista anteriormente.
A lógica da Bolsa mostra, entretanto, que os melhores retornos acontecem no longo prazo, quando as ações se desvalorizam em determinados períodos, mas se recuperam em outros. Mas, num momento como o atual, com chances de um ganho extraordinário em tão pouco tempo, todo investidor esquece essa regra. O efeito colateral é que o risco de prejuízo é diretamente proporcional à possibilidade de lucro. Mesmo investindo alto, nenhuma farmacêutica pode garantir que terá um produto eficaz contra a pandemia.
“Há uma corrida em escala global pela descoberta das vacinas e a valorização das ações das farmacêuticas nas Bolsas de Valores reflete esse movimento. A expectativa dos investidores é que a empresa que largar na frente ficará com a maior parte da demanda e o lucro crescerá dez ou 20 vezes. Mas existe um certo exagero do mercado em colocar tanta expectativa no preço das ações. É uma aposta muito arriscada para algo ainda incerto”, avaliou William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue Securities, baseada em Miami.
Neste momento, há 164 tentativas de desenvolver a vacina no mundo todo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). As gigantes do setor farmacêutico e biotecnologia concorrem com institutos de pesquisa e universidades, que também estão trabalhando com esse objetivo. Elas ganharam ainda a concorrência das chamadas “biotechs”, startups do setor de saúde. Entre as biotechs, a Moderna é uma das que estão na linha de frente das pesquisas.
Fundada em 2010, a Moderna é uma empresa de biotecnologia localizada em Cambridge, ao lado do campus do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, com cerca de 800 empregados. Foi criada pelo biólogo Derrick Rossi para oferecer ao mercado suas pesquisas sobre células-tronco. Rossi conseguiu sócios e obteve investimento de fundos de venture capital, modalidade de investimento focada em empresas médias, mas que possuem alto potencial de crescimento.
De lá para cá, a Moderna não desenvolveu nenhum produto comercial, mas ganhou notoriedade na pandemia por usar uma técnica considerada mais moderna na produção de vacinas. Nas vacinas tradicionais, o vírus inativo ou atenuado (alterado para não causar infecção) é injetado no organismo para produzir anticorpos. A vacina da Moderna usa um pequeno fragmento do código genético do coronavírus, o chamado RNA mensageiro.
Ao absorver esse código, as células humanas geram uma resposta do sistema imunológico, protegendo-as do vírus. Na prática, a vacina da Moderna dá a “receita” para que o organismo se defenda. Se essa técnica funcionar, será a primeira vacina a empregar esse método. Por isso, o risco também é maior. Mesmo assim, as ações da Moderna já se valorizaram 237% neste ano, mais que as da alemã BioNTech, que subiram 47% no ano, e da Johnson & Johnson, que apresentam ganho de 41% desde janeiro.
“Empresas grandes do setor farmacêutico têm muitos produtos no mercado e receita diversificada. Não dependem só da vacina contra a Covid-19. Já para a Moderna é tudo ou nada”, disse William Castro, da Avenue.
A euforia é tamanha em relação à vacina da Moderna que executivos da companhia já embolsaram milhões de dólares antes mesmo de o medicamento ter sido aprovado pelos órgãos reguladores de saúde. Em maio, depois de anunciar testes com resultados positivos da vacina em apenas oito pacientes, dois executivos da empresa lucraram, juntos, US$ 25 milhões ao exercer opções previstas sobre ações da companhia.
O próprio presidente da empresa, Stéphane Bancel, embolsou US$ 1,2 milhão com a venda de papéis na Nasdaq. No dia do anúncio dos testes positivos, em 25 de maio, as ações da Moderna subiram 30%, embora um dia depois o site médico StatNews tenha publicado contestações de especialistas aos resultados dos testes, avaliando que somente com a aplicação em mais voluntários seria possível ter resultados confiáveis do medicamento. O revés imediatamente derrubou as ações na mesma proporção.
A aposta dos investidores para que uma das biotechs seja a vencedora da corrida pelo coronavírus pode ter uma razão no comportamento das empresas farmacêuticas ao longo dos anos. Essa é a opinião do consultor de investimentos Paulo Bittencourt, que acompanha o mercado de ações há mais de 30 anos. Ele observa que o setor é concentrado em pouquíssimas companhias, de grande porte, que trabalham com “assimetria de informação”. Na prática, isso significa que nem sempre essas empresas divulgam com clareza o estágio de pesquisas ou desenvolvimento de novos medicamentos. Mesmo com investimentos muito elevados em pesquisa, há o risco de essas gigantes serem ultrapassadas pela concorrência. “É um setor obscuro para o investidor comum. Há sempre a sensação de que as empresas operam as informações. Nunca se sabe quem está na frente no desenvolvimento de um ou outro medicamento”, disse Bittencourt.
Há um outro elemento importante na corrida pela vacina. A expectativa é que o país que cruzar a linha de chegada com eficácia comprovada do produto ganhe importância geopolítica. Na avaliação dos especialistas, haverá grande chance de que a economia do país vencedor tenha uma recuperação mais rápida. Isso explica a Rússia ter anunciado sua vacina, antes mesmo de ter completado as três fases de testes exigidas pela comunidade científica.


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