Pular para o conteúdo principal

Demétrio Magnoli: Bolsonaro e Trump representam a política dos idiotas

"À medida em que a democracia é aperfeiçoada, o cargo de presidente representa, cada vez mais adequadamente, a alma profunda do povo. Em algum grande e glorioso dia, a gente simples dessa terra realizará, finalmente, a plenitude de sua vontade e a Casa Branca será adornada por um completo idiota." A profecia, de H.L. Mencken, foi escrita em 1920, durante uma cinzenta campanha eleitoral, e realizou-se em 2016, com Trump (e, no Brasil, dois anos depois, com Bolsonaro). A culpa é mesmo da "gente simples" dessas terras, questiona o colunista da Folha de S. Paulo em texto publicado neste sábado, 12/9. Continua a seguir.

O termo "idiota", de raízes gregas, foi usado, num passado já distante, como diagnóstico psicológico do indivíduo com moderada incapacidade intelectual. Os psicólogos o abandonaram e ele passou a descrever uma pessoa estúpida ou, ainda, alguém presunçoso. Os dois qualificativos aplicam-se aos ocupantes da Casa Branca e do Planalto.
Mencken, porém, não escrevia sobre algum presidente singular, mas sobre a democracia e a "alma profunda do povo". Será que tinha razão?
Na sua frustrada campanha presidencial, saiu da boca de Hillary Clinton o adjetivo "deploráveis" para fazer referência aos eleitores de Trump —que não eram a maioria numérica mas constituíram a maioria eleitoral. Nos fóruns petistas brasileiros, diante do triunfo de Bolsonaro, não faltaram acusações ao povo "ingrato" (além das rituais condenações à "mídia"). Hoje, frente a uma parcial recuperação da popularidade do presidente, não poucos analistas sugerem que o fenômeno derivaria da "compra de consciências" pelo auxílio emergencial. O povo tem, então, os idiotas que merece?
O populista venera o povo. Mencken, exato oposto, enxerga a sociedade pelas lentes de um plebeu aristocrático. O erro dele mereceria extenso exame filosófico mas, na prática, empresta um álibi às elites políticas bem pensantes: a culpa pela ascensão dos idiotas não seria delas, mas da "gente simples" incapaz de distinguir os bons dos maus.
Os bons precisam de um espelho. Nos EUA, os democratas batidos em 2016 ignoraram, anos a fio, a maioria do eleitorado branco do Meio-Oeste, que forma uma classe média açoitada pela transição tecnológica e pela crise estrutural da indústria tradicional. O partido contava com as graças da alta finança e falava para uma nação imaginária, definida como coleção de minorias. Trump venceu esgrimindo um discurso nativista, conspiratório e preconceituoso que apelava aos ressentimentos do "americano esquecido". Eleitores democratas desencantados refugiaram-se atrás do candidato da direita nacionalista, fazendo as diferenças mínimas que decidiram a eleição. Quem, na esfera política, agiu como idiota?
As fontes circunstanciais de Bolsonaro encontram-se no populismo fiscal dilmista, na exposição da macrocorrupção, na estratégia eleitoral de Lula e até na facada de um ninguém. Mas suas fontes profundas têm algo em comum com as de Trump.
No Brasil governado pelos bem pensantes, o Estado foi capturado por poderosos grupos empresariais e corporações do alto funcionalismo. Ao longo da bonança internacional que acompanhou os governos de esquerda, as castas de privilegiados receberam créditos, financiamentos, isenções, gordos salários e benefícios, às custas da saúde, da educação, do transporte de massa, dos equipamentos culturais. Como moeda de troca eleitoral, os pobres ganharam o Bolsa Família. A ascensão do idiota estava escrita nas estrelas.
A política da idiotia tem duas faces. O Bolsonaro que circula sem máscara entre ambulantes, enquanto emite cheques emergenciais, só ganha pontos porque, do lado oposto, os bem pensantes fingem residir na Nova Zelândia e clamam por quarentenas eternas. A "gente simples" dessas terras já elegeu Collor, FHC e Lula, Maluf, Erundina e Marta, Haddad, Serra e Doria. O idiota não é produto de sua "alma profunda", mas da idiotia dos bacanas.
Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...