“Vigarista”, “irresponsável”, “trapaceiro”, “desequilibrado mental”, “fraudulento”, “mentiroso”, “despreparado”. Quase não faltam adjetivos no vocabulário do economista Jeffrey Sachs, Ph.D. em Harvard, para dedicar ao presidente dos Estados Unidos, o republicano Donald Trump. Diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável na Universidade Columbia, Sachs considera difícil pensar em qualquer futuro para o planeta, antes que o presidente americano deixe o poder, escreve Ricardo Lessa no Valor, em ótima matéria publicada dia 11/9. Vale conferir a entrevista com Sachs. Íntegra abaixo.
Conselheiro de Bernie Sanders, que disputou a indicação à Presidência pelo Partido Democrata, Sachs, de 65 anos, atribui a classificação de extremista do senador ao exagero dos meios de comunicação que apoiam Trump, “que querem meter medo nas pessoas, divulgam mentiras e incitam o ódio”.
Para o economista, consultor-sênior desde 2001 do secretariado-geral da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, as eleições de novembro são cruciais porque “os Estados Unidos são um país muito importante e também muito perigoso, em termos dos efeitos para o resto do mundo”.
O fracasso no combate à pandemia, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil se deve, segundo Sachs, à desigualdade: “Temos várias subnações e, quando um líder é divisionista, joga um grupo contra outro”.
Na entrevista a seguir, o economista que já foi qualificado como um dos três mais influentes do mundo pela revista “The Economist”, autor de livros como “O Fim da Pobreza” e “A Era do Desenvolvimento Sustentável”, traça outros paralelos entre os Estados Unidos e o Brasil.
Valor: O senhor imagina que o mundo possa ter alguma mudança depois da pandemia?
Jeffrey Sachs: Pode, porque há mais gente decente do que vigaristas neste mundo. Assim, Trump, por exemplo, que é uma pessoa absolutamente horrível e tem um comportamento horroroso, mentiroso, um trapaceiro, uma fraude, tem o apoio de um terço do eleitorado americano. Isso é muito triste. É gente muito ingênua. E Trump tenta apelar para o ódio deles. Especialmente contra os negros. Mas ele não tem a maioria o apoiando. Por outro lado, ele é um tipo traiçoeiro, que se envolve em fraudes e trapaças. Não é fácil tirá-lo do poder. Vamos ter uma grande eleição dentro de pouco tempo, em novembro. Muito crítica, crucial. Muitos já disseram nos últimos dias, e é importante pensar nisso, que a democracia nos Estados Unidos está em risco.
Valor: É possível imaginar um futuro antes de passar pela eleição de novembro?
Sachs: É difícil imaginar ir para frente com esse homem ainda na Casa Branca. Porque é uma posição muito poderosa. Provavelmente mais ainda do que no Brasil. Trump governa por decretos. Eu não sei em quantos lugares na nossa legislação há essa regra que permite essas medidas de emergência. É um tipo de ditadura entre eleições. Porque Trump assina seguidas “executive orders” [equivalentes a decretos], que não submete ao Congresso. Isso é realmente chocante: tanto poder concentrado num homem só. É como se os Estados Unidos fossem um império, e o poder imperial fosse para uma só pessoa.
Valor: Isso é uma brecha na Constituição americana?
Sachs: Se eu fosse reescrever a nossa Constituição, iria para o parlamentarismo. Não para o presidencialismo. Porque um primeiro-ministro, como Trump ou Bolsonaro, já teria sido afastado por voto de desconfiança do Parlamento há muito tempo. Como presidentes, eles têm mais poderes. Mas acho que Trump tem mais poder do que Bolsonaro. Porque Bolsonaro ainda tem que ir ao Congresso algumas vezes. Enquanto Trump só assina “executive orders”. É um sistema terrível. Presidencialismo é um sistema ruim de início.
Valor: A desigualdade social é uma semelhança entre os dois países. O número de óbitos em relação à população na pandemia também é bem próximo. O senhor relaciona um fato ao outro?
Sachs: Sim, uma das principais razões pelas quais Brasil e Estados Unidos foram tão horrivelmente no combate à pandemia foi que os dois países são muito desiguais. Brasil, um dos mais desiguais no mundo, e Estados Unidos, o mais desigual entre os países ricos. Há tantas subnações diferentes dentro dos Estados Unidos e no Brasil. Quando tem um homem de ódio no poder, isso cria maiores divisões entre os grupos. A desigualdade é uma das razões pelas quais não funcionamos direito como país. É por isso que temos que voltar a uma maior normalidade na política. Com uma sociedade menos desigual, nossa sociedade vai funcionar melhor e as divisões poderão ser reduzidas.
Valor: A troca de gerações pode ajudar?
Sachs: Há uma promissora mudança geracional, pelo menos nos Estados Unidos. Os mais jovens tendem a ser menos racistas, mais tolerantes, mais comprometidos com a responsabilidade social do que as pessoas mais velhas. A maior base política de Trump é de pessoas brancas mais velhas que sentam diante da televisão e assistem à Fox News contando mentiras para elas. Quando tivemos os protestos neste verão, tivemos jovens brancos ao lado de jovens negros protestando contra o racismo da polícia. Eles protestaram juntos. A mudança geracional pode ser um fator impulsionador, porque os jovens já cresceram numa sociedade multirracial. Isso pode ser de grande ajuda.
Valor: Essa fragmentação de reivindicações, por gênero, raça, sexo, que foi importante para a derrota da ex-senadora Hillary Clinton em 2016, pode atrapalhar os planos dos democratas?
Sachs: Não acho que essa divisão pode ser um problema. A oposição vai ficar unida. Trump não vai conseguir puxar esse eleitorado para seu lado. A grande questão nos Estados Unidos é se essas pessoas vão votar. Muitos dos que não gostam de Trump não acreditam que a eleição possa mudar alguma coisa. Além disso, o governo Trump está tentando impedir os votos de muitos eleitores. Está procurando ativamente afastar muitos eleitores, bloqueando os votos pelo correio. Está tentando trapacear para ficar no poder.
Valor: Até agora, a pandemia não parece ter favorecido grandes mudanças no sistema econômico...
Sachs: Na verdade, esta pandemia piorou a acumulação de riquezas e renda dramaticamente, especialmente porque as pessoas que trabalham nas lojas, nas ruas, perderam seus empregos. As pessoas que têm seus negócios on-line viram sua riqueza aumentar. Então os ricos ficaram mais ricos. Os pobres ficaram mais pobres. Jeff Bezos, dono da Amazon, só neste ano aumentou sua fortuna em US$ 8 bilhões. Só uma pessoa, só neste ano, nesta crise. Total da sua fortuna hoje é em torno de US$ 190 bilhões. Ninguém ouviu dele nenhuma palavra sobre o que pretende fazer com esse dinheiro. Falou-se que ele podia ir para Marte, porque não presta muita atenção sobre o que acontece com as pobres pessoas aqui na Terra.
Valor: Esperava-se uma mudança de consciência maior em relação ao ser humano?
Sachs: Essa é uma grande a questão - até agora, a crise piorou as coisas -, se as pessoas vão se conscientizar que num mundo de riqueza não há necessidade de haver tanto sofrimento. Mas as pessoas que possuem as riquezas precisam compartilhá-las. Essa é a questão básica que vai ser o eixo da luta política mais para frente. Tenho certeza de que estaremos no meio desse debate nos próximos anos, num profundo debate, possivelmente até numa disputa política.
Valor: O senhor acha que a lógica do mercado financeiro, concentrado em poucas pessoas e instituições, esteja para mudar?
Sachs: Os mundos das finanças e da alta tecnologia não vão mudar por eles mesmos. Eu conheço Wall Street porque vivo em Nova York e conheço os principais líderes de Wall Street. Não pensam sobre a sociedade. Pensam na riqueza deles. Isso não vai mudar em qualquer momento próximo. A indústria “high-tech” da Califórnia é o que chamamos politicamente de “libertarians”, o que no Brasil se chama neoliberal. Eles agem como se dissessem “É nosso dinheiro, venha pegar, fazemos o que queremos com ele”. A reforma não virá de dentro. Virá quando as pessoas e a sociedade chegarem à conclusão de que essa não é uma boa maneira de se organizar a sociedade. Para poucas pessoas acumularem centenas de bilhões de dólares de riqueza e dezenas de milhões de pessoas no mundo não ficarem com qualquer dinheiro ou ainda estar devendo. Mas é o que temos atualmente nos EUA, o mesmo é verdade no Brasil.
Valor: Por que os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil mantêm bases fiéis de apoio?
Sachs: Essa é realmente uma realidade muito intricada. Temos nos Estados Unidos e no Brasil presidentes com problemas mentais, irresponsáveis, que têm algum apoio entre as pessoas que precisam de ajuda, os mais pobres. Trump de alguma maneira tem algum apoio em trabalhadores que sofrem muito. Eu não entendo direito a mentalidade dessas pessoas. Pode ser porque Trump é racista, se os apoiadores dele são brancos, pobres, trabalhadores de classe média. Isso explicaria o ódio contra os afro-americanos. Se são evangélicos, os pastores dizem: “Deem 10% dos seus salários, e Jesus vai salvá-lo”. E eles dizem que Trump vai defender Jesus. É inacreditável. É um tipo de fraude. É muito triste. Difícil entender essa mentalidade. Mas é verdade. Ao mesmo tempo, é uma minoria da população. Assim, se a maioria que pensa que Trump é horrível e for votar, usar seu poder politicamente e a democracia for defendida, então a gente pode estar logo numa situação diferente.
Valor: Mas não vão resolver todos os problemas de uma hora para outra...
Sachs: Claro que, se Trump perder, há grandes interesses financeiros poderosos que apoiam a outra parte. Ainda haverá muita disputa, mas não será tão louca como atualmente. Porque Trump é o pior presidente que já tivemos. Provavelmente Bolsonaro é um dos piores da história do Brasil. Mas é bem interessante, porque no Brasil parece que as pessoas não ligam Bolsonaro com a epidemia, mesmo que ele tenha assumido tanta responsabilidade por todas as mortes. Mas as pessoas continuam apoiando mesmo assim, ignorando tantas mentiras. Isso é nossa experiência também com Trump. Por isso é um problema tão intrigante, quando as pessoas não se dão conta de seus interesses muito claramente. [Procurado pela reportagem, o Planalto não comentou as declarações.]
Valor: No Brasil também há uma grande base de evangélicos em apoio a Bolsonaro. Como essa parcela da sociedade agiu durante a pandemia nos Estados Unidos?
Sachs: Temos experiência com os evangélicos brancos aqui nos Estados Unidos. Os pastores disseram em suas igrejas: “Não usem máscaras, venham para os cultos, não façam distanciamento social”. Depois que os fiéis compareceram aos cultos e ficaram doentes, os pastores continuaram rindo daqueles que usam máscaras, dizendo que eram esquerdistas. É uma mentalidade muito louca e realmente antissocial. Na verdade é o oposto de Jesus, não tem nada a ver com cristianismo. É só um tipo de corrupção. É atordoante.
Valor: Nessas eleições ouvimos falar muito do crescimento dos socialistas como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Lopez, a mais jovem deputada da história, eleita com 29 anos. Que tipo de socialismo estão propondo para os EUA?
Sachs: Conheço muito bem esse assunto, porque fui conselheiro do senador Bernie Sanders. É o socialismo do tipo que existe nas sociais-democracias dos países do norte europeu, como Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia. Esses são os modelos para os Estados Unidos. Naqueles países, a ideia é que todas as pessoas na sociedade devem ter assistência de saúde, educação de qualidade, trabalhos decentes, direito a férias. Em outras palavras, todas as coisas boas da vida, básicas, devem ser para todos. Não importa que sua diferença de riqueza vá influenciar na escola que você vai frequentar, a assistência de saúde que vai receber, porque isso são direitos humanos, não algo que a riqueza de cada um deva influenciar. São coisas que os países do norte europeu proveem a seus cidadãos. E isso pode funcionar de forma muito eficiente em economias de mercado. São países de alto nível de vida e muito eficientes como economia. Já nos Estados Unidos não temos nem sequer o básico. Em família com crianças, uma entre cinco dessas famílias tem fome atualmente - e isso aqui, um dos países mais ricos do mundo. Temos muita riqueza, mas se uma pessoa tem bilhões de dólares e dezenas de milhões não tem nada, a gente acaba numa sociedade perversa. Isso é o que Bernie Sanders defende.
Valor: Bernie Sanders, porém, é descrito como um radical socialista.
Sachs: Claro que a mídia corporativa tenta caracterizá-lo como extremista. Não é extremista. Mas a mídia corporativa também está cheia de propaganda. Se você diz que todos devem ter assistência médica nos Estados Unidos, você é chamado, por essa mídia, de comunista. Se você diz que todos devem ter educação de qualidade, é chamado de extremo-socialista. É um jogo para assustar as pessoas. E é basicamente o que acontece neste país.
Valor: O que chama de mídia corporativa?
Sachs: A pior pessoa na mídia nos países de língua inglesa é Rupert Murdoch, magnata australiano. Nos Estados Unidos, ele é proprietário do “Wall Street Journal” e da Fox News. E tem também tabloides no Reino Unido e na Austrália. Ele é uma pessoa repugnante. É uma força muito, muito destrutiva, nos países de língua inglesa. Controla muitos meios de comunicação, que enchem os leitores de mentiras diariamente. Eu sei porque eu leio o “Wall Street Journal” diariamente, tenho que ler para meu trabalho. As páginas de opinião são muito repulsivas, pelas mentiras que contam. Mas isso é como as coisas estão funcionando hoje em dia. Os seguidores do Trump assistem às notícias da Fox News. Ele capturou aquelas pessoas brancas, mais velhas, evangélicas, que recebem essas notícias cheias de ódio, na estação que pertence a Rupert Murdoch. Essa é uma parte importante de sua base política. É um fenômeno impressionante. É uma coisa tão perversa, que o filho de Murdoch, James, demitiu-se da cadeia de comunicação do pai, tão contrariado que estava. Deixou o comando das empresas recentemente porque considera que seu pai não faz nada além de divulgar propaganda de mentiras e ódio, só para ganhar dinheiro. [Até o fechamento desta edição, a Newscorp não havia se manifestado.]
Valor: Qual será o futuro se Trump ganhar, por exemplo, as eleições?
Sachs: O futuro é o seguinte. Primeiro a gente se livra do Trump. Porque até que ele esteja fora do poder político, vamos estar numa situação maluca. Teremos uma eleição em novembro. É extremamente importante que Trump seja derrotado por Joe Biden e pela senadora Kamala Harris [candidatos a presidente e vice pelo Partido Democrata]. Se ele for derrotado, o que acho que há uma grande chance que ocorra, isso pode iniciar um processo para que tenhamos um país mais normal de novo. Onde possamos não mais ficar ouvindo mentiras e mensagens de ódio do presidente todo dia. Depois disso, a gente vai ter muitos desafios nos Estados Unidos: recorde de desigualdade, pandemia, economia baseada no petróleo em vez de energia renovável, mudança climática - muitos problemas. Mas não podemos resolver esses problemas com mentiras e ódio na Casa Branca. Primeiro estamos numa crise política. Segundo, numa crise moral. Precisamos entender que a ética do egoísmo e da ganância deixou os EUA de joelhos. Precisamos de um princípio ético diferente, de uma sociedade mais partilhada, em que o bem comum seja defendido. Se a gente resolver o problema político e abordar a questão da crise moral, há soluções práticas que são muito razoáveis: para sistema de energia mais sustentável; gastos na cobertura da assistência médica; a taxação dos mais ricos. São medidas práticas que podemos tomar se tivermos oportunidade para isso. É realmente uma luta, primeiro política e depois ética.
Valor: O senhor vai estar envolvido num governo democrata, se vitorioso?
Sachs: Não vou estar dentro do governo. Certamente estarei presente com sugestões, ideias e discussões o tempo inteiro. Trabalho tanto com tantos governos ao redor do mundo e quero contribuir para uma solução global, não a de um só país. Mas quero que os Estados Unidos fiquem melhor. São o meu país, onde moro com minha mulher, onde estão meus filhos. É muito importante e também um país perigoso, em termos dos efeitos para o resto do mundo. Se temos um líder ruim, como Donald Trump, ele cria um grande sofrimento em outras partes do mundo. Gostaria que os Estados Unidos parassem de criar tantos danos em outros países.
Valor: O senhor faz uma campanha desde 2005 para que os países ricos doem parte do seu Produto Interno Bruto aos países pobres. O que aconteceu desde lá?
Sachs: Venho implorando há anos aos países ricos por uma pequena parcela de sua riqueza para os pobres e famintos. Infelizmente, os países ricos, especialmente, têm ficado cada vez mais e mais gananciosos. Mais corruptos, mais egoístas. Os Estados Unidos, atualmente, repartem menos do que há dez anos. Se é que doa realmente alguma coisa. Trump teve como lema “America First”. Mas isso significa realmente Trump em primeiro lugar. Ele é tão nojento, vulgar e corrupto, que não liga o mínimo para o resto do mundo. É interessante que uma das ligações entre Trump e Bolsonaro, o empresário e estrategista político Steve Bannon, foi preso por fraude, porque estava levantando recursos e roubando o dinheiro. Esse é o tipo de gente que estamos lidando: vigaristas, vagabundos, gente suja. Um ser humano pode implorar ajuda, mas vão simplesmente rir na cara deles.
Valor: Qual era a percentagem do PIB dos ricos que o senhor pedia?
Sachs: Apenas 0,1% do PIB dos países ricos seria suficiente para garantir saúde básica para todas as crianças pobres do mundo, já asseguraria que todas fossem para a escola básica. Um pouco mais, 0,7%, seria suficiente para atingir todas as Metas de Desenvolvimento do Milênio daquele tempo. E agora seria o suficiente para alcançar as Metas Sustentáveis do Milênio. Mas posso garantir, porque tenho feito isso por um longo tempo, que implorar por uma fração de 1% da renda de países que são mais ricos do que o imaginável é tremendamente difícil. Porque a política está nas mãos dos mais egoístas oligarcas, e tudo que eles fazem é se preocupar com eles mesmos. Eles são egoístas e corruptos. E isso é uma combinação muito ruim.
Conselheiro de Bernie Sanders, que disputou a indicação à Presidência pelo Partido Democrata, Sachs, de 65 anos, atribui a classificação de extremista do senador ao exagero dos meios de comunicação que apoiam Trump, “que querem meter medo nas pessoas, divulgam mentiras e incitam o ódio”.
Para o economista, consultor-sênior desde 2001 do secretariado-geral da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, as eleições de novembro são cruciais porque “os Estados Unidos são um país muito importante e também muito perigoso, em termos dos efeitos para o resto do mundo”.
O fracasso no combate à pandemia, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil se deve, segundo Sachs, à desigualdade: “Temos várias subnações e, quando um líder é divisionista, joga um grupo contra outro”.
Na entrevista a seguir, o economista que já foi qualificado como um dos três mais influentes do mundo pela revista “The Economist”, autor de livros como “O Fim da Pobreza” e “A Era do Desenvolvimento Sustentável”, traça outros paralelos entre os Estados Unidos e o Brasil.
Valor: O senhor imagina que o mundo possa ter alguma mudança depois da pandemia?
Jeffrey Sachs: Pode, porque há mais gente decente do que vigaristas neste mundo. Assim, Trump, por exemplo, que é uma pessoa absolutamente horrível e tem um comportamento horroroso, mentiroso, um trapaceiro, uma fraude, tem o apoio de um terço do eleitorado americano. Isso é muito triste. É gente muito ingênua. E Trump tenta apelar para o ódio deles. Especialmente contra os negros. Mas ele não tem a maioria o apoiando. Por outro lado, ele é um tipo traiçoeiro, que se envolve em fraudes e trapaças. Não é fácil tirá-lo do poder. Vamos ter uma grande eleição dentro de pouco tempo, em novembro. Muito crítica, crucial. Muitos já disseram nos últimos dias, e é importante pensar nisso, que a democracia nos Estados Unidos está em risco.
Valor: É possível imaginar um futuro antes de passar pela eleição de novembro?
Sachs: É difícil imaginar ir para frente com esse homem ainda na Casa Branca. Porque é uma posição muito poderosa. Provavelmente mais ainda do que no Brasil. Trump governa por decretos. Eu não sei em quantos lugares na nossa legislação há essa regra que permite essas medidas de emergência. É um tipo de ditadura entre eleições. Porque Trump assina seguidas “executive orders” [equivalentes a decretos], que não submete ao Congresso. Isso é realmente chocante: tanto poder concentrado num homem só. É como se os Estados Unidos fossem um império, e o poder imperial fosse para uma só pessoa.
Valor: Isso é uma brecha na Constituição americana?
Sachs: Se eu fosse reescrever a nossa Constituição, iria para o parlamentarismo. Não para o presidencialismo. Porque um primeiro-ministro, como Trump ou Bolsonaro, já teria sido afastado por voto de desconfiança do Parlamento há muito tempo. Como presidentes, eles têm mais poderes. Mas acho que Trump tem mais poder do que Bolsonaro. Porque Bolsonaro ainda tem que ir ao Congresso algumas vezes. Enquanto Trump só assina “executive orders”. É um sistema terrível. Presidencialismo é um sistema ruim de início.
Valor: A desigualdade social é uma semelhança entre os dois países. O número de óbitos em relação à população na pandemia também é bem próximo. O senhor relaciona um fato ao outro?
Sachs: Sim, uma das principais razões pelas quais Brasil e Estados Unidos foram tão horrivelmente no combate à pandemia foi que os dois países são muito desiguais. Brasil, um dos mais desiguais no mundo, e Estados Unidos, o mais desigual entre os países ricos. Há tantas subnações diferentes dentro dos Estados Unidos e no Brasil. Quando tem um homem de ódio no poder, isso cria maiores divisões entre os grupos. A desigualdade é uma das razões pelas quais não funcionamos direito como país. É por isso que temos que voltar a uma maior normalidade na política. Com uma sociedade menos desigual, nossa sociedade vai funcionar melhor e as divisões poderão ser reduzidas.
Valor: A troca de gerações pode ajudar?
Sachs: Há uma promissora mudança geracional, pelo menos nos Estados Unidos. Os mais jovens tendem a ser menos racistas, mais tolerantes, mais comprometidos com a responsabilidade social do que as pessoas mais velhas. A maior base política de Trump é de pessoas brancas mais velhas que sentam diante da televisão e assistem à Fox News contando mentiras para elas. Quando tivemos os protestos neste verão, tivemos jovens brancos ao lado de jovens negros protestando contra o racismo da polícia. Eles protestaram juntos. A mudança geracional pode ser um fator impulsionador, porque os jovens já cresceram numa sociedade multirracial. Isso pode ser de grande ajuda.
Valor: Essa fragmentação de reivindicações, por gênero, raça, sexo, que foi importante para a derrota da ex-senadora Hillary Clinton em 2016, pode atrapalhar os planos dos democratas?
Sachs: Não acho que essa divisão pode ser um problema. A oposição vai ficar unida. Trump não vai conseguir puxar esse eleitorado para seu lado. A grande questão nos Estados Unidos é se essas pessoas vão votar. Muitos dos que não gostam de Trump não acreditam que a eleição possa mudar alguma coisa. Além disso, o governo Trump está tentando impedir os votos de muitos eleitores. Está procurando ativamente afastar muitos eleitores, bloqueando os votos pelo correio. Está tentando trapacear para ficar no poder.
Valor: Até agora, a pandemia não parece ter favorecido grandes mudanças no sistema econômico...
Sachs: Na verdade, esta pandemia piorou a acumulação de riquezas e renda dramaticamente, especialmente porque as pessoas que trabalham nas lojas, nas ruas, perderam seus empregos. As pessoas que têm seus negócios on-line viram sua riqueza aumentar. Então os ricos ficaram mais ricos. Os pobres ficaram mais pobres. Jeff Bezos, dono da Amazon, só neste ano aumentou sua fortuna em US$ 8 bilhões. Só uma pessoa, só neste ano, nesta crise. Total da sua fortuna hoje é em torno de US$ 190 bilhões. Ninguém ouviu dele nenhuma palavra sobre o que pretende fazer com esse dinheiro. Falou-se que ele podia ir para Marte, porque não presta muita atenção sobre o que acontece com as pobres pessoas aqui na Terra.
Valor: Esperava-se uma mudança de consciência maior em relação ao ser humano?
Sachs: Essa é uma grande a questão - até agora, a crise piorou as coisas -, se as pessoas vão se conscientizar que num mundo de riqueza não há necessidade de haver tanto sofrimento. Mas as pessoas que possuem as riquezas precisam compartilhá-las. Essa é a questão básica que vai ser o eixo da luta política mais para frente. Tenho certeza de que estaremos no meio desse debate nos próximos anos, num profundo debate, possivelmente até numa disputa política.
Valor: O senhor acha que a lógica do mercado financeiro, concentrado em poucas pessoas e instituições, esteja para mudar?
Sachs: Os mundos das finanças e da alta tecnologia não vão mudar por eles mesmos. Eu conheço Wall Street porque vivo em Nova York e conheço os principais líderes de Wall Street. Não pensam sobre a sociedade. Pensam na riqueza deles. Isso não vai mudar em qualquer momento próximo. A indústria “high-tech” da Califórnia é o que chamamos politicamente de “libertarians”, o que no Brasil se chama neoliberal. Eles agem como se dissessem “É nosso dinheiro, venha pegar, fazemos o que queremos com ele”. A reforma não virá de dentro. Virá quando as pessoas e a sociedade chegarem à conclusão de que essa não é uma boa maneira de se organizar a sociedade. Para poucas pessoas acumularem centenas de bilhões de dólares de riqueza e dezenas de milhões de pessoas no mundo não ficarem com qualquer dinheiro ou ainda estar devendo. Mas é o que temos atualmente nos EUA, o mesmo é verdade no Brasil.
Valor: Por que os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil mantêm bases fiéis de apoio?
Sachs: Essa é realmente uma realidade muito intricada. Temos nos Estados Unidos e no Brasil presidentes com problemas mentais, irresponsáveis, que têm algum apoio entre as pessoas que precisam de ajuda, os mais pobres. Trump de alguma maneira tem algum apoio em trabalhadores que sofrem muito. Eu não entendo direito a mentalidade dessas pessoas. Pode ser porque Trump é racista, se os apoiadores dele são brancos, pobres, trabalhadores de classe média. Isso explicaria o ódio contra os afro-americanos. Se são evangélicos, os pastores dizem: “Deem 10% dos seus salários, e Jesus vai salvá-lo”. E eles dizem que Trump vai defender Jesus. É inacreditável. É um tipo de fraude. É muito triste. Difícil entender essa mentalidade. Mas é verdade. Ao mesmo tempo, é uma minoria da população. Assim, se a maioria que pensa que Trump é horrível e for votar, usar seu poder politicamente e a democracia for defendida, então a gente pode estar logo numa situação diferente.
Valor: Mas não vão resolver todos os problemas de uma hora para outra...
Sachs: Claro que, se Trump perder, há grandes interesses financeiros poderosos que apoiam a outra parte. Ainda haverá muita disputa, mas não será tão louca como atualmente. Porque Trump é o pior presidente que já tivemos. Provavelmente Bolsonaro é um dos piores da história do Brasil. Mas é bem interessante, porque no Brasil parece que as pessoas não ligam Bolsonaro com a epidemia, mesmo que ele tenha assumido tanta responsabilidade por todas as mortes. Mas as pessoas continuam apoiando mesmo assim, ignorando tantas mentiras. Isso é nossa experiência também com Trump. Por isso é um problema tão intrigante, quando as pessoas não se dão conta de seus interesses muito claramente. [Procurado pela reportagem, o Planalto não comentou as declarações.]
Valor: No Brasil também há uma grande base de evangélicos em apoio a Bolsonaro. Como essa parcela da sociedade agiu durante a pandemia nos Estados Unidos?
Sachs: Temos experiência com os evangélicos brancos aqui nos Estados Unidos. Os pastores disseram em suas igrejas: “Não usem máscaras, venham para os cultos, não façam distanciamento social”. Depois que os fiéis compareceram aos cultos e ficaram doentes, os pastores continuaram rindo daqueles que usam máscaras, dizendo que eram esquerdistas. É uma mentalidade muito louca e realmente antissocial. Na verdade é o oposto de Jesus, não tem nada a ver com cristianismo. É só um tipo de corrupção. É atordoante.
Valor: Nessas eleições ouvimos falar muito do crescimento dos socialistas como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Lopez, a mais jovem deputada da história, eleita com 29 anos. Que tipo de socialismo estão propondo para os EUA?
Sachs: Conheço muito bem esse assunto, porque fui conselheiro do senador Bernie Sanders. É o socialismo do tipo que existe nas sociais-democracias dos países do norte europeu, como Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia. Esses são os modelos para os Estados Unidos. Naqueles países, a ideia é que todas as pessoas na sociedade devem ter assistência de saúde, educação de qualidade, trabalhos decentes, direito a férias. Em outras palavras, todas as coisas boas da vida, básicas, devem ser para todos. Não importa que sua diferença de riqueza vá influenciar na escola que você vai frequentar, a assistência de saúde que vai receber, porque isso são direitos humanos, não algo que a riqueza de cada um deva influenciar. São coisas que os países do norte europeu proveem a seus cidadãos. E isso pode funcionar de forma muito eficiente em economias de mercado. São países de alto nível de vida e muito eficientes como economia. Já nos Estados Unidos não temos nem sequer o básico. Em família com crianças, uma entre cinco dessas famílias tem fome atualmente - e isso aqui, um dos países mais ricos do mundo. Temos muita riqueza, mas se uma pessoa tem bilhões de dólares e dezenas de milhões não tem nada, a gente acaba numa sociedade perversa. Isso é o que Bernie Sanders defende.
Valor: Bernie Sanders, porém, é descrito como um radical socialista.
Sachs: Claro que a mídia corporativa tenta caracterizá-lo como extremista. Não é extremista. Mas a mídia corporativa também está cheia de propaganda. Se você diz que todos devem ter assistência médica nos Estados Unidos, você é chamado, por essa mídia, de comunista. Se você diz que todos devem ter educação de qualidade, é chamado de extremo-socialista. É um jogo para assustar as pessoas. E é basicamente o que acontece neste país.
Valor: O que chama de mídia corporativa?
Sachs: A pior pessoa na mídia nos países de língua inglesa é Rupert Murdoch, magnata australiano. Nos Estados Unidos, ele é proprietário do “Wall Street Journal” e da Fox News. E tem também tabloides no Reino Unido e na Austrália. Ele é uma pessoa repugnante. É uma força muito, muito destrutiva, nos países de língua inglesa. Controla muitos meios de comunicação, que enchem os leitores de mentiras diariamente. Eu sei porque eu leio o “Wall Street Journal” diariamente, tenho que ler para meu trabalho. As páginas de opinião são muito repulsivas, pelas mentiras que contam. Mas isso é como as coisas estão funcionando hoje em dia. Os seguidores do Trump assistem às notícias da Fox News. Ele capturou aquelas pessoas brancas, mais velhas, evangélicas, que recebem essas notícias cheias de ódio, na estação que pertence a Rupert Murdoch. Essa é uma parte importante de sua base política. É um fenômeno impressionante. É uma coisa tão perversa, que o filho de Murdoch, James, demitiu-se da cadeia de comunicação do pai, tão contrariado que estava. Deixou o comando das empresas recentemente porque considera que seu pai não faz nada além de divulgar propaganda de mentiras e ódio, só para ganhar dinheiro. [Até o fechamento desta edição, a Newscorp não havia se manifestado.]
Valor: Qual será o futuro se Trump ganhar, por exemplo, as eleições?
Sachs: O futuro é o seguinte. Primeiro a gente se livra do Trump. Porque até que ele esteja fora do poder político, vamos estar numa situação maluca. Teremos uma eleição em novembro. É extremamente importante que Trump seja derrotado por Joe Biden e pela senadora Kamala Harris [candidatos a presidente e vice pelo Partido Democrata]. Se ele for derrotado, o que acho que há uma grande chance que ocorra, isso pode iniciar um processo para que tenhamos um país mais normal de novo. Onde possamos não mais ficar ouvindo mentiras e mensagens de ódio do presidente todo dia. Depois disso, a gente vai ter muitos desafios nos Estados Unidos: recorde de desigualdade, pandemia, economia baseada no petróleo em vez de energia renovável, mudança climática - muitos problemas. Mas não podemos resolver esses problemas com mentiras e ódio na Casa Branca. Primeiro estamos numa crise política. Segundo, numa crise moral. Precisamos entender que a ética do egoísmo e da ganância deixou os EUA de joelhos. Precisamos de um princípio ético diferente, de uma sociedade mais partilhada, em que o bem comum seja defendido. Se a gente resolver o problema político e abordar a questão da crise moral, há soluções práticas que são muito razoáveis: para sistema de energia mais sustentável; gastos na cobertura da assistência médica; a taxação dos mais ricos. São medidas práticas que podemos tomar se tivermos oportunidade para isso. É realmente uma luta, primeiro política e depois ética.
Valor: O senhor vai estar envolvido num governo democrata, se vitorioso?
Sachs: Não vou estar dentro do governo. Certamente estarei presente com sugestões, ideias e discussões o tempo inteiro. Trabalho tanto com tantos governos ao redor do mundo e quero contribuir para uma solução global, não a de um só país. Mas quero que os Estados Unidos fiquem melhor. São o meu país, onde moro com minha mulher, onde estão meus filhos. É muito importante e também um país perigoso, em termos dos efeitos para o resto do mundo. Se temos um líder ruim, como Donald Trump, ele cria um grande sofrimento em outras partes do mundo. Gostaria que os Estados Unidos parassem de criar tantos danos em outros países.
Valor: O senhor faz uma campanha desde 2005 para que os países ricos doem parte do seu Produto Interno Bruto aos países pobres. O que aconteceu desde lá?
Sachs: Venho implorando há anos aos países ricos por uma pequena parcela de sua riqueza para os pobres e famintos. Infelizmente, os países ricos, especialmente, têm ficado cada vez mais e mais gananciosos. Mais corruptos, mais egoístas. Os Estados Unidos, atualmente, repartem menos do que há dez anos. Se é que doa realmente alguma coisa. Trump teve como lema “America First”. Mas isso significa realmente Trump em primeiro lugar. Ele é tão nojento, vulgar e corrupto, que não liga o mínimo para o resto do mundo. É interessante que uma das ligações entre Trump e Bolsonaro, o empresário e estrategista político Steve Bannon, foi preso por fraude, porque estava levantando recursos e roubando o dinheiro. Esse é o tipo de gente que estamos lidando: vigaristas, vagabundos, gente suja. Um ser humano pode implorar ajuda, mas vão simplesmente rir na cara deles.
Valor: Qual era a percentagem do PIB dos ricos que o senhor pedia?
Sachs: Apenas 0,1% do PIB dos países ricos seria suficiente para garantir saúde básica para todas as crianças pobres do mundo, já asseguraria que todas fossem para a escola básica. Um pouco mais, 0,7%, seria suficiente para atingir todas as Metas de Desenvolvimento do Milênio daquele tempo. E agora seria o suficiente para alcançar as Metas Sustentáveis do Milênio. Mas posso garantir, porque tenho feito isso por um longo tempo, que implorar por uma fração de 1% da renda de países que são mais ricos do que o imaginável é tremendamente difícil. Porque a política está nas mãos dos mais egoístas oligarcas, e tudo que eles fazem é se preocupar com eles mesmos. Eles são egoístas e corruptos. E isso é uma combinação muito ruim.
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