“O homem de bem” tem mais de 35 anos, é de classe média, adota um forte discurso contra a corrupção, mostra-se “terrivelmente” conservador em questões morais e parte deles defende a volta da ditadura militar. Este foi o mais abrangente dos 16 perfis de brasileiros da base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), recenseados na pesquisa de Isabela Kalil, diretora do Núcleo de Etnografia Urbana da Fundação Escola de Sociologia e Política, reporta Helena Celestino em matéria publicada no Valor na sexta, 11/9. Continua a seguir.
Neste ano, esse perfil perdeu a proeminência para “os ‘nerds’, ‘gamers’, hackers e ‘haters’”, jovens que incorporam o discurso de ódio, têm intensa conexão com a “alt-right” (direita alternativa americana) e grande presença na internet. A mudança aconteceu depois da queda, em abril, do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), usado como símbolo do combate à impunidade, que, ao sair, levou com ele parte dos “lava-jatistas”.
“Bolsonaro se comporta como caleidoscópio, porque isso corresponde à diversificação de sua base. Ele é ambíguo e moldável para responder às demandas de cada grupo. E se desresponsabiliza de tudo”, diz Isabela.
É com olhar de antropóloga que Isabela analisa a política. O seu tema é o neoliberalismo, mais especificamente o bolsonarismo que começou a pesquisar antes de o movimento existir com esse nome. Testemunhou nos EUA a crise do capitalismo em 2008 e a posterior rearrumação política. Percebeu o nascimento do que qualifica de extrema-direita no Brasil em 2010 e 2011, cerca de dois anos antes dos protestos considerados por estudiosos como o marco do novo rumo do país.
Fiel a uma das regras de ouro do seu campo de saber, pela qual o antropólogo deve seguir os atores sociais, foi ouvir os manifestantes nas ruas. Com uma equipe de até 60 pesquisadores, entrevistou mil dos apoiadores da extrema-direita entre 2016 e 2018. Quando, após as eleições, muitos viraram deputados e assessores parlamentares ou foram ganhar dinheiro na internet, ela e seu grupo continuaram acompanhando-os nas redes sociais e, eventualmente, nas ruas de novo. Há 18 meses segue as políticas emanadas dos Ministérios da Economia e da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Na sua pesquisa de campo, Isabela constatou que a articulação bolsonarista entre conservadorismo moral - especialmente o religioso - neoliberalismo e “alt-right” fragmenta-se em múltiplos perfis. Etiquetou-os com base nos marcadores de classe, renda, raça e gênero, além das aspirações e irritações que os fizeram aderir ao bolsonarismo. “O núcleo duro é formado por militares, religiosos e ‘gamers’. Só depois chegaram os liberais e ‘lava-jatistas’”, diz a professora.
Segundo ela, os “gamers” foram os primeiros a aderir. Funcionam como exército para manter a comunicação de Bolsonaro, não são tão visíveis no espaço público e não têm nenhum apreço pela democracia. Os outros três grandes grupos - conservadores, liberais e religiosos - fragmentam-se em muitas outras tribos. Por exemplo, “o macho man” simbolizando os defensores da liberação das armas e da justiça feita com as próprias mãos. Ou “a mãe conservadora”, aquela contra o ensino de “ideologia de gênero” nas escolas. E ainda “o gay de direita, que tenta conciliar os ideais da família tradicional com a orientação sexual”.
“Esses não são em grande número, mas a presença deles tenta contestar a visão de que Bolsonaro é homofóbico”, escreve Isabela na apresentação da pesquisa.
Função semelhante cumprem “as minorias étnicas de direita”, ao tornarem-se visíveis para contrastar acusações de que a extrema-direita não tem negros, índios ou asiáticos, embora as afirmações sejam confirmadas pelas várias falas de Bolsonaro. Na longa lista, sobressaem-se também “os estudantes pela liberdade”, grupo contra as cotas e a suposta dominação marxista nas universidades; as “as mulheres e bolsogatas”, solteiras, independentes, contra as feministas, dizendo-se “empoderadas” pelo discurso bolsonarista. Também recenseada foi a “periferia de direita”, unida pelo repúdio à violência e impunidade vivida nas comunidades, com críticas à esquerda, aos governantes e aos serviços públicos. Da base, fazem parte também os “isentões”, os “meritocratas” e os “monarquistas”.
“O principal achado da pesquisa foi perceber a segmentação da base de apoio do bolsonarismo, com grupos diferentes, motivações diferentes, muitas nuanças diferentes”, diz. Para ela, a aparente falta de coerência nas mensagens do presidente, a reduzida capacidade de articulação de frases, a tomada de posições sem sentido, que tanto incomodam o campo progressista, é sua forma de conectar-se com as aspirações diversas dos vários grupos de apoiadores.
Na linha do tempo do bolsonarismo, a antropóloga marca os anos 2010 e 2011 como o início da formação de uma extrema-direita, cooptada entre os incomodados com o Plano Nacional de Direitos Humanos por questões sobre o racismo, sexo, o papel da mulher na sociedade. É dessa época a chegada de Bolsonaro aos microfones rotulando o material anti-homofobia do MEC como “kit gay”. Logo depois, a Comissão da Verdade, criada pelo governo Dilma Rousseff (PT) para apurar os crimes da ditadura - sem prever punições -, gera desconforto em parte dos militares e os leva para oposição de extrema-direita.
“Fomos para a rua, vimos no campo uma direita nascer em 2013 e começamos a ver em 2016 uma novíssima direita que rejeitava o MBL, os Revoltados On-line e os outros descendentes dos protestos de junho. Essa novíssima direita conectava-se às demandas surgidas no início da década com os conservadores religiosos e os militares.”
Da eleição para cá, Isabela identificou o início de um outro ciclo a partir de 15 de março de 2020, dia marcado para uma manifestação contra o STF e o Congresso. A OMS decretara a pandemia no dia 11, havia dúvidas se Bolsonaro iria ou não aos protestos, os manifestantes se dividiram, alguns pretendiam ficar na internet, outros iriam para as ruas. O presidente foi, e os mais radicais também. “Vi surgir aí o ‘novo patriota’, um perfil relativamente novo e mais radicalizado. Eram pessoas que falavam em morrer pelo capitão, como se estivessem numa guerra ou numa cruzada. O 15 de março foi a primeira de uma série de manifestações antidemocráticas, com Bolsonaro declarando guerra às instituições e fazendo ameaças de golpe”, diz.
As várias mudanças no primeiro escalão também mostram Bolsonaro transformando-se. “É como se cada ministro fosse um caquinho do caleidoscópio. Sob pressão, ele muda a configuração. Assim saíram [Luiz Henrique] Mandetta, da Saúde, e Sergio Moro, da Justiça, sem causarem maiores estragos”, diz.
Com a pandemia, os atores sociais deixaram as ruas e o foco de Isabela voltou-se também para as políticas dos Ministérios da Economia e da Mulher, Família e Direitos Humanos. A tese dela é de que as pautas liberais, articuladas pelo ministro Paulo Guedes, são complementares à agenda moral - sobre gênero, sexo e raça - da ministra Damares Alves. Quando todos estão analisando as últimas medidas para a economia, ela está olhando também a “boiada” passar no ministério comandado por Damares. Em junho, percebeu que uma portaria criava retrocesso nas políticas públicas, ao dar prioridade à família a partir da noção de “casamento e conjugalidade”. Com isso, ficaram excluídos todos os outros arranjos estatisticamente predominantes na sociedade brasileira desde 2014, segundo pesquisa do Ipea - por exemplo, a família da avó morando com o neto, a dos casais do mesmo sexo ou a de duas mães com filhos.
Em outros documentos do ministério, cita Isabela, a família é vista como a unidade empreendedora que deve buscar em si alternativas para o desemprego e ser geradora de renda. Essa visão é complementada por textos em que a entrada da mulher no mercado de trabalho é considerada uma das causas da “destruição da família” e dos valores morais tradicionais.
“A defesa de um certo modelo restrito de família não é apenas parte da ‘defesa da moralidade’. É também parte de um projeto econômico baseado numa lógica individualista e privada. Essa família definida por Damares é essencial quando se reduz os investimentos em educação, saúde e seguridade social. Pelo projeto liberal, o Estado se desresponsabiliza dos investimentos públicos no cuidado de crianças, idosos e doentes. Esta responsabilidade é transferida para as famílias”, afirma Isabela.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirma que o “eixo casamento e conjugalidade da portaria busca conhecer a natureza das relações e os desafios presentes em todas as famílias brasileiras”.
Já a análise da antropóloga brasileira está em linha com a das filósofas americanas Wendy Brown, professora de ciência política da Universidade da Califórnia, e Melinda Cooper, professora na Universidade de Sydney. Ambas mostram que gênero, raça e sexualidade não são independentes das decisões e políticas econômicas quando há aliança entre liberais e conservadores. Em “Family Values, Between Neoliberalism and New Social Conservatism”, Melinda relembra que essa articulação se deu em diferentes momentos da história recente dos EUA “para restringir direitos das mulheres e da população LGBT”. Em “Ruínas do Neoliberalismo”, Wendy defende que “a família tradicional ressurge como núcleo moral e econômico fundamental ao projeto neoconservador e ultracapitalista”.
Segundo Isabela, um exemplo da desresponsabilização do Estado com a saúde durante a pandemia foi explicitado pelo presidente, com a frase “as famílias que cuidem dos seus idosos”. Ocorreu o mesmo quando as escolas fecharam, as crianças ficaram sem alimentação e a Unesco constatou que cerca de 9 milhões passaram fome. Ou ainda quando mais de 4 mil pessoas morreram por não conseguirem lugar numa UTI, segundo levantamento do jornal “El País”.
“As mulheres foram tratar das crianças e idosos, mas como isso fica no campo do afeto, não parecia que o Estado estava se desresponsabilizando”, diz. Isabela constatou nas pesquisas que, até abril, as mulheres religiosas estavam “horrorizadas” com o descaso de Bolsonaro com as famílias e mortes pela pandemia. A rejeição começou a diminuir em maio e, em junho, o presidente habilmente reverteu o auxílio emergencial a seu favor, embora tenha sido a oposição a elevar o valor inicial de R$ 200 proposto pelo governo.
“A pandemia passou a ser considerada uma fatalidade, culpa de um virus chinês que atacou o mundo inteiro, diziam. Ou entre religiosos como algo merecido porque não quiseram tomar cloroquina ou não rezaram. Não era mais por causa da má administração da pandemia: ‘Vai fazer o quê?’, Bolsonaro perguntou.”
Para Isabela, não há contradição entre o modelo de Estado liberal e o auxílio emergencial distribuído para quase um terço da população durante a pandemia e estendido agora até o fim do ano. Também não o acha incompatível com o Renda Brasil, projeto bolsonarista com ambição de ampliar o valor e o número de beneficiados do Bolsa Família dos governos petistas. “Esse projeto é travestido de certa justiça social, mas ele é um neoliberalismo muito bruto. O Estado vai se desresponsabilizando ao fazer esse projeto de renda mínima, que, entretanto, pode ser suspenso a qualquer momento”, diz.
A transferência de renda aos mais pobres, antes de ser rebatizada de Renda Brasil e de virar um recurso político para sustentar a popularidade do presidente, já constava do programa de Bolsonaro registrado no Tribunal Superior Eleitoral - aparecia etiquetado como projeto liberal, compatível com as ideias de economistas como Milton Friedman (1912-2006).
A antropóloga aponta duas diferenças básicas entre o Bolsa Família e o Renda Brasil. Nos governos anteriores, o Estado transferiu renda para a parte da população abaixo da linha da pobreza e manteve investimento em outras políticas públicas para a redução da desigualdade, como as cotas nas universidades, os pontos de cultura, as clínicas da família, a Farmácia Popular. “Este novo projeto é diferente. É transferência de renda com desinvestimento público em educação e saúde”, diz.
O Renda Brasil ainda não foi formatado, não consta do Orçamento de 2021 mandado para o Congresso, nem tem fonte de recursos alocada. Sob pressão, os gastos da saúde e educação acabaram não sendo cortados para aumentar o dinheiro do Ministério da Defesa, mas especialistas alertam que no pós-pandemia faltará verba para vacinação e outras demandas. Na comparação entre o Bolsa Família e o projeto a ser lançado por Bolsonaro (provavelmente em janeiro), Isabela Kalil assinala outra mudança marcante: no Bolsa Família, as grandes beneficiárias eram as mulheres pobres, o que lhes deu maior controle sobre o próprio corpo e mais espaço para denunciar violência doméstica. Já o auxílio emergencial e o Renda Brasil repõem determinados valores, nos quais os homens recebem o auxílio e voltam a ter o papel de provedores. “Não é só o valor monetário, é auxílio com a mensagem ‘nós vamos resolver os problemas da sua família’. Quem não quer isso? É como se você pudesse pôr a família no seu lugar perdido”, diz.
A antropóloga percebeu, nas entrevistas, como a insegurança e o trabalho precarizado trazem nostalgia do Estado provedor e de um capitalismo com necessidade de mão de obra, diferente do atual, com cada vez mais as pessoas se transformando em empreendedoras de si. Há uma nostalgia, diz ela, de uma família imaginária que atormenta, por exemplo, o “homem obsoleto”, aquele que costumava influir nas escolhas políticas na família. Agora a opinião dele não tem mais valor. Ou o jovem que não acha seu lugar no mundo e se pergunta: “Vou estudar para quê, trabalhar onde?”.
“Bolsonaro foi hábil ao parecer que dá a essas pessoas um lugar. Como ele consegue se metamorfosear, ele aparece uma hora como alguém que vai cuidar das famílias, dos pobres e, no momento seguinte, manda cada um cuidar dos seus idosos.” No modelo atual, a ideia é tirar o Estado para uma parte da população, mas a face punitiva continuará presente, com o discurso de armar a população e ter uma polícia forte, afirma a antropóloga.
Como ela vê os próximos passos do bolsonarismo? “Se Donald Trump perde as eleições, pode haver um impacto nas camadas médias da base de apoio de Bolsonaro. Existe no imaginário delas a certeza de que ele e o presidente são superamigos, e isso favorece o Brasil.” Mas acha que ainda é cedo para avaliar quem pode disputar poder com Bolsonaro nas próximas eleições.
Neste ano, esse perfil perdeu a proeminência para “os ‘nerds’, ‘gamers’, hackers e ‘haters’”, jovens que incorporam o discurso de ódio, têm intensa conexão com a “alt-right” (direita alternativa americana) e grande presença na internet. A mudança aconteceu depois da queda, em abril, do ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), usado como símbolo do combate à impunidade, que, ao sair, levou com ele parte dos “lava-jatistas”.
“Bolsonaro se comporta como caleidoscópio, porque isso corresponde à diversificação de sua base. Ele é ambíguo e moldável para responder às demandas de cada grupo. E se desresponsabiliza de tudo”, diz Isabela.
É com olhar de antropóloga que Isabela analisa a política. O seu tema é o neoliberalismo, mais especificamente o bolsonarismo que começou a pesquisar antes de o movimento existir com esse nome. Testemunhou nos EUA a crise do capitalismo em 2008 e a posterior rearrumação política. Percebeu o nascimento do que qualifica de extrema-direita no Brasil em 2010 e 2011, cerca de dois anos antes dos protestos considerados por estudiosos como o marco do novo rumo do país.
Fiel a uma das regras de ouro do seu campo de saber, pela qual o antropólogo deve seguir os atores sociais, foi ouvir os manifestantes nas ruas. Com uma equipe de até 60 pesquisadores, entrevistou mil dos apoiadores da extrema-direita entre 2016 e 2018. Quando, após as eleições, muitos viraram deputados e assessores parlamentares ou foram ganhar dinheiro na internet, ela e seu grupo continuaram acompanhando-os nas redes sociais e, eventualmente, nas ruas de novo. Há 18 meses segue as políticas emanadas dos Ministérios da Economia e da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Na sua pesquisa de campo, Isabela constatou que a articulação bolsonarista entre conservadorismo moral - especialmente o religioso - neoliberalismo e “alt-right” fragmenta-se em múltiplos perfis. Etiquetou-os com base nos marcadores de classe, renda, raça e gênero, além das aspirações e irritações que os fizeram aderir ao bolsonarismo. “O núcleo duro é formado por militares, religiosos e ‘gamers’. Só depois chegaram os liberais e ‘lava-jatistas’”, diz a professora.
Segundo ela, os “gamers” foram os primeiros a aderir. Funcionam como exército para manter a comunicação de Bolsonaro, não são tão visíveis no espaço público e não têm nenhum apreço pela democracia. Os outros três grandes grupos - conservadores, liberais e religiosos - fragmentam-se em muitas outras tribos. Por exemplo, “o macho man” simbolizando os defensores da liberação das armas e da justiça feita com as próprias mãos. Ou “a mãe conservadora”, aquela contra o ensino de “ideologia de gênero” nas escolas. E ainda “o gay de direita, que tenta conciliar os ideais da família tradicional com a orientação sexual”.
“Esses não são em grande número, mas a presença deles tenta contestar a visão de que Bolsonaro é homofóbico”, escreve Isabela na apresentação da pesquisa.
Função semelhante cumprem “as minorias étnicas de direita”, ao tornarem-se visíveis para contrastar acusações de que a extrema-direita não tem negros, índios ou asiáticos, embora as afirmações sejam confirmadas pelas várias falas de Bolsonaro. Na longa lista, sobressaem-se também “os estudantes pela liberdade”, grupo contra as cotas e a suposta dominação marxista nas universidades; as “as mulheres e bolsogatas”, solteiras, independentes, contra as feministas, dizendo-se “empoderadas” pelo discurso bolsonarista. Também recenseada foi a “periferia de direita”, unida pelo repúdio à violência e impunidade vivida nas comunidades, com críticas à esquerda, aos governantes e aos serviços públicos. Da base, fazem parte também os “isentões”, os “meritocratas” e os “monarquistas”.
“O principal achado da pesquisa foi perceber a segmentação da base de apoio do bolsonarismo, com grupos diferentes, motivações diferentes, muitas nuanças diferentes”, diz. Para ela, a aparente falta de coerência nas mensagens do presidente, a reduzida capacidade de articulação de frases, a tomada de posições sem sentido, que tanto incomodam o campo progressista, é sua forma de conectar-se com as aspirações diversas dos vários grupos de apoiadores.
Na linha do tempo do bolsonarismo, a antropóloga marca os anos 2010 e 2011 como o início da formação de uma extrema-direita, cooptada entre os incomodados com o Plano Nacional de Direitos Humanos por questões sobre o racismo, sexo, o papel da mulher na sociedade. É dessa época a chegada de Bolsonaro aos microfones rotulando o material anti-homofobia do MEC como “kit gay”. Logo depois, a Comissão da Verdade, criada pelo governo Dilma Rousseff (PT) para apurar os crimes da ditadura - sem prever punições -, gera desconforto em parte dos militares e os leva para oposição de extrema-direita.
“Fomos para a rua, vimos no campo uma direita nascer em 2013 e começamos a ver em 2016 uma novíssima direita que rejeitava o MBL, os Revoltados On-line e os outros descendentes dos protestos de junho. Essa novíssima direita conectava-se às demandas surgidas no início da década com os conservadores religiosos e os militares.”
Da eleição para cá, Isabela identificou o início de um outro ciclo a partir de 15 de março de 2020, dia marcado para uma manifestação contra o STF e o Congresso. A OMS decretara a pandemia no dia 11, havia dúvidas se Bolsonaro iria ou não aos protestos, os manifestantes se dividiram, alguns pretendiam ficar na internet, outros iriam para as ruas. O presidente foi, e os mais radicais também. “Vi surgir aí o ‘novo patriota’, um perfil relativamente novo e mais radicalizado. Eram pessoas que falavam em morrer pelo capitão, como se estivessem numa guerra ou numa cruzada. O 15 de março foi a primeira de uma série de manifestações antidemocráticas, com Bolsonaro declarando guerra às instituições e fazendo ameaças de golpe”, diz.
As várias mudanças no primeiro escalão também mostram Bolsonaro transformando-se. “É como se cada ministro fosse um caquinho do caleidoscópio. Sob pressão, ele muda a configuração. Assim saíram [Luiz Henrique] Mandetta, da Saúde, e Sergio Moro, da Justiça, sem causarem maiores estragos”, diz.
Com a pandemia, os atores sociais deixaram as ruas e o foco de Isabela voltou-se também para as políticas dos Ministérios da Economia e da Mulher, Família e Direitos Humanos. A tese dela é de que as pautas liberais, articuladas pelo ministro Paulo Guedes, são complementares à agenda moral - sobre gênero, sexo e raça - da ministra Damares Alves. Quando todos estão analisando as últimas medidas para a economia, ela está olhando também a “boiada” passar no ministério comandado por Damares. Em junho, percebeu que uma portaria criava retrocesso nas políticas públicas, ao dar prioridade à família a partir da noção de “casamento e conjugalidade”. Com isso, ficaram excluídos todos os outros arranjos estatisticamente predominantes na sociedade brasileira desde 2014, segundo pesquisa do Ipea - por exemplo, a família da avó morando com o neto, a dos casais do mesmo sexo ou a de duas mães com filhos.
Em outros documentos do ministério, cita Isabela, a família é vista como a unidade empreendedora que deve buscar em si alternativas para o desemprego e ser geradora de renda. Essa visão é complementada por textos em que a entrada da mulher no mercado de trabalho é considerada uma das causas da “destruição da família” e dos valores morais tradicionais.
“A defesa de um certo modelo restrito de família não é apenas parte da ‘defesa da moralidade’. É também parte de um projeto econômico baseado numa lógica individualista e privada. Essa família definida por Damares é essencial quando se reduz os investimentos em educação, saúde e seguridade social. Pelo projeto liberal, o Estado se desresponsabiliza dos investimentos públicos no cuidado de crianças, idosos e doentes. Esta responsabilidade é transferida para as famílias”, afirma Isabela.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirma que o “eixo casamento e conjugalidade da portaria busca conhecer a natureza das relações e os desafios presentes em todas as famílias brasileiras”.
Já a análise da antropóloga brasileira está em linha com a das filósofas americanas Wendy Brown, professora de ciência política da Universidade da Califórnia, e Melinda Cooper, professora na Universidade de Sydney. Ambas mostram que gênero, raça e sexualidade não são independentes das decisões e políticas econômicas quando há aliança entre liberais e conservadores. Em “Family Values, Between Neoliberalism and New Social Conservatism”, Melinda relembra que essa articulação se deu em diferentes momentos da história recente dos EUA “para restringir direitos das mulheres e da população LGBT”. Em “Ruínas do Neoliberalismo”, Wendy defende que “a família tradicional ressurge como núcleo moral e econômico fundamental ao projeto neoconservador e ultracapitalista”.
Segundo Isabela, um exemplo da desresponsabilização do Estado com a saúde durante a pandemia foi explicitado pelo presidente, com a frase “as famílias que cuidem dos seus idosos”. Ocorreu o mesmo quando as escolas fecharam, as crianças ficaram sem alimentação e a Unesco constatou que cerca de 9 milhões passaram fome. Ou ainda quando mais de 4 mil pessoas morreram por não conseguirem lugar numa UTI, segundo levantamento do jornal “El País”.
“As mulheres foram tratar das crianças e idosos, mas como isso fica no campo do afeto, não parecia que o Estado estava se desresponsabilizando”, diz. Isabela constatou nas pesquisas que, até abril, as mulheres religiosas estavam “horrorizadas” com o descaso de Bolsonaro com as famílias e mortes pela pandemia. A rejeição começou a diminuir em maio e, em junho, o presidente habilmente reverteu o auxílio emergencial a seu favor, embora tenha sido a oposição a elevar o valor inicial de R$ 200 proposto pelo governo.
“A pandemia passou a ser considerada uma fatalidade, culpa de um virus chinês que atacou o mundo inteiro, diziam. Ou entre religiosos como algo merecido porque não quiseram tomar cloroquina ou não rezaram. Não era mais por causa da má administração da pandemia: ‘Vai fazer o quê?’, Bolsonaro perguntou.”
Para Isabela, não há contradição entre o modelo de Estado liberal e o auxílio emergencial distribuído para quase um terço da população durante a pandemia e estendido agora até o fim do ano. Também não o acha incompatível com o Renda Brasil, projeto bolsonarista com ambição de ampliar o valor e o número de beneficiados do Bolsa Família dos governos petistas. “Esse projeto é travestido de certa justiça social, mas ele é um neoliberalismo muito bruto. O Estado vai se desresponsabilizando ao fazer esse projeto de renda mínima, que, entretanto, pode ser suspenso a qualquer momento”, diz.
A transferência de renda aos mais pobres, antes de ser rebatizada de Renda Brasil e de virar um recurso político para sustentar a popularidade do presidente, já constava do programa de Bolsonaro registrado no Tribunal Superior Eleitoral - aparecia etiquetado como projeto liberal, compatível com as ideias de economistas como Milton Friedman (1912-2006).
A antropóloga aponta duas diferenças básicas entre o Bolsa Família e o Renda Brasil. Nos governos anteriores, o Estado transferiu renda para a parte da população abaixo da linha da pobreza e manteve investimento em outras políticas públicas para a redução da desigualdade, como as cotas nas universidades, os pontos de cultura, as clínicas da família, a Farmácia Popular. “Este novo projeto é diferente. É transferência de renda com desinvestimento público em educação e saúde”, diz.
O Renda Brasil ainda não foi formatado, não consta do Orçamento de 2021 mandado para o Congresso, nem tem fonte de recursos alocada. Sob pressão, os gastos da saúde e educação acabaram não sendo cortados para aumentar o dinheiro do Ministério da Defesa, mas especialistas alertam que no pós-pandemia faltará verba para vacinação e outras demandas. Na comparação entre o Bolsa Família e o projeto a ser lançado por Bolsonaro (provavelmente em janeiro), Isabela Kalil assinala outra mudança marcante: no Bolsa Família, as grandes beneficiárias eram as mulheres pobres, o que lhes deu maior controle sobre o próprio corpo e mais espaço para denunciar violência doméstica. Já o auxílio emergencial e o Renda Brasil repõem determinados valores, nos quais os homens recebem o auxílio e voltam a ter o papel de provedores. “Não é só o valor monetário, é auxílio com a mensagem ‘nós vamos resolver os problemas da sua família’. Quem não quer isso? É como se você pudesse pôr a família no seu lugar perdido”, diz.
A antropóloga percebeu, nas entrevistas, como a insegurança e o trabalho precarizado trazem nostalgia do Estado provedor e de um capitalismo com necessidade de mão de obra, diferente do atual, com cada vez mais as pessoas se transformando em empreendedoras de si. Há uma nostalgia, diz ela, de uma família imaginária que atormenta, por exemplo, o “homem obsoleto”, aquele que costumava influir nas escolhas políticas na família. Agora a opinião dele não tem mais valor. Ou o jovem que não acha seu lugar no mundo e se pergunta: “Vou estudar para quê, trabalhar onde?”.
“Bolsonaro foi hábil ao parecer que dá a essas pessoas um lugar. Como ele consegue se metamorfosear, ele aparece uma hora como alguém que vai cuidar das famílias, dos pobres e, no momento seguinte, manda cada um cuidar dos seus idosos.” No modelo atual, a ideia é tirar o Estado para uma parte da população, mas a face punitiva continuará presente, com o discurso de armar a população e ter uma polícia forte, afirma a antropóloga.
Como ela vê os próximos passos do bolsonarismo? “Se Donald Trump perde as eleições, pode haver um impacto nas camadas médias da base de apoio de Bolsonaro. Existe no imaginário delas a certeza de que ele e o presidente são superamigos, e isso favorece o Brasil.” Mas acha que ainda é cedo para avaliar quem pode disputar poder com Bolsonaro nas próximas eleições.
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.