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Como a pandemia vai afetar as eleições municipais

Crise econômica, polarização e pandemia serão temas-chave das eleições, que pela primeira vez vedam vereador de concorrer por coligações, escreve Amália Safatle em longa e interessante reportagem publicada no Valor na sexta, 4/9. Íntegra a seguir.

As primeiras eleições que ocorrem no Brasil sob a covid-19 serão atípicas por fatores que vão além da pandemia. Fora o adiamento no calendário para novembro, o reduzido tempo de campanha e a necessidade de rearranjo no conteúdo e nas formas de alcançar o eleitor, será vedada a coligação de partidos nas candidaturas a vereador. Para especialistas, há sinais importantes para a reconfiguração partidária brasileira e um possível fortalecimento dos partidos e nomes mais conhecidos, favorecendo a reeleição e afastando neófitos.
Há quem veja também o maior grau de nacionalização em uma disputa municipal desde a Nova República. É o caso do sociólogo e cientista político Antonio Lavareda, para quem três fatores nacionais vão atravessar as disputas principalmente nas grandes cidades: crise socioeconômica, polarização política exacerbada e pandemia. “São fatores tão relevantes que fica impossível não se fazerem presentes no conteúdo das campanhas e até mesmo nas intenções de voto”, afirma.
Renato Dorgan Filho, sócio-proprietário do Instituto Travessia, especialista em pesquisas qualitativas e marketing político, diz que em janeiro e fevereiro os estudos apontavam para tendência de continuação da eleição de 2018, com candidatos outsiders desafiando quem era da situação. “As pesquisas [realizadas pelo Travessia para clientes] mostravam prefeitos muitas vezes mal avaliados e com risco de derrota. Mas, com a crise e a pandemia, o eleitor ficou assustado, com medo, e passou a considerar que é melhor ficar com o prefeito que está prestando alguma assistência do que arriscar mudanças.” Historicamente, eleições municipais tendem a favorecer reeleições. Mas, segundo ele, desta vez essa característica deve se acentuar.
Lavareda, que acaba de lançar “Eleições Municipais: Novas Ondas na Política” (editora FGV) com Helcimara Telles, frisa que a pandemia conferiu protagonismo grande aos atuais gestores, devendo levar a uma surpreendente taxa de reeleição dos prefeitos - diferentemente do que se poderia esperar em uma eleição travada em plena crise econômica. Crises reduzem os cofres municipais e os prefeitos ficam com menos capacidade de atender as promessas que fizeram quatro anos antes. A consequência é o mau humor do eleitorado, que sofre com mais desemprego e renda diminuída. “A fermentação disso, em geral, leva à derrota dos incumbentes”, diz.
Mas, neste ano, ao menos na largada, a pandemia parece ter produzido um efeito contrário, mostrando que os prefeitos em geral saíram bem no enfrentamento da pandemia, em contraposição ao discurso negacionista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “A população quer solução. Negar o problema com mais de 120 mil mortes não existe. As estatísticas de infectados e de óbitos põem por terra qualquer atitude negacionista”, diz.
Em um levantamento feito pelo cientista político, dos 12 prefeitos de capitais candidatos à reeleição, dez lideram as pesquisas e dois estão na segunda colocação: Marcelo Crivella (Republicanos), atrás de Eduardo Paes (Democratas) no Rio, e Bruno Covas (PSDB), tecnicamente empatado com o deputado federal Celso Russomanno (Republicanos) em São Paulo.
No Rio, a corrida eleitoral sofre impacto da Operação Freedom contra os “Guardiões do Crivella”, em referência ao prefeito. O caso levou o presidente da Câmara de Vereadores, Jorge Felippe (DEM), a decidir que levaria um pedido de impeachment ao plenário. A base é a ação de um grupo de servidores públicos que faziam serviço ilegal na porta de hospitais municipais. O esquema, que tenta atrapalhar o trabalho da imprensa e impedir queixas da população, foi denunciado nesta semana em reportagem da Rede Globo.
Em São Paulo, com menos sobressaltos, a hipótese de Lavareda é que Covas chegue ao segundo turno. “Estamos falando de uma taxa de reeleição bastante elevada.” Mesmo quando não são candidatos, tendem a fazer sucessores. São os casos de Iris Rezende (MDB), que estava à frente em Goiânia, mas anunciou a saída da disputa e indicará alguém no lugar; e Teresa Surita (MDB), de Boa Vista, onde o vice-prefeito, Arthur Henrique Machado (PSD), está 25 pontos à frente do segundo colocado. Para Lavareda, a vitória dos candidatos da situação pode ocorrer já no primeiro turno em Natal, Campo Grande, Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia.
A favor da reeleição também estão fatores como a alta abstenção prevista por causa da pandemia, as regras de financiamento eleitoral que passaram a viger desde 2018 e a campanha curta, de 45 dias, com 35 dias de televisão e rádio, à qual 11 partidos pequenos não terão acesso.
Para Lucio Rennó, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, a abstenção alta - verificada em eleições de outros países durante a pandemia - reduz o número de votos válidos. “São necessários menos votos para eleger prefeitos em primeiro turno e para se atingir o coeficiente eleitoral nas casas legislativas. A campanha mais rápida, com menos dinheiro e financiamento restrito favorece nomes conhecidos. A vida do candidato desconhecido, que está se lançando na vida política agora, ficou muito mais difícil”, diz Rennó.
“Aquele efeito que a gente viu na eleição nacional, de ‘arrastão’ de novidades, não deve acontecer de novo”, diz Jairo Nicolau, professor titular e pesquisador da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC). “Houve uma mudança na estrutura de comunicação da sociedade que foi muito bem aproveitada por Bolsonaro e seus candidatos. Mas não se pode ganhar todas as eleições com uma surpresa”, afirma.
De 2018 para cá, Jairo Nicolau vê a imprensa tradicional mais fortalecida para lidar com as “fake news”, a Justiça Eleitoral mais preparada, um eleitor com maior capacidade de filtrar informações e mídias sociais mais vigilantes, com limites para compartilhamento de mensagens.

“Tendo a pensar as eleições municipais fechadas em si, voltadas a questões localizadas, apenas com alguns respingos e uma reacomodação muito leve no quadro político nacional. Mas esta eleição, que veda as coligações no âmbito legislativo, deve promover uma fusão partidária em 2021. Este é o efeito que importa para a eleição federal”, afirma Nicolau. Segundo ele, como muitos partidos vão “desaparecer” nas cidades, os deputados federais que negociavam com os cabos eleitorais que não se elegeram provavelmente terão de buscar outras alianças.
Lavareda diz acreditar que as eleições vão cumprir, de certa forma, um papel de reerguimento e reconstrução do sistema partidário eleitoral que foi profundamente abalado em 2018, com a emergência de forças como o PSL e o bolsonarismo. A perspectiva, agora, é de uma efetiva redução no número de partidos representados nas câmaras municipais, o que deve repercutir nas assembleias legislativas nos Estados e na Câmara dos Deputados em 2022. “São eleições bem importantes por esse motivo”, diz.
“Além disso, pela primeira vez, os partidos vão aparecer com uma cara própria. Antes tinha aquela coligação com um monte de partidos. Agora a construção das identidades partidárias ganhará um forte alento por conta dessa regra”, avalia.
Outra característica da eleição, na visão de Dorgan Filho, é a volta da discussão sobre saúde, emprego e renda. “O empobrecimento da grande massa de eleitores é a pauta de 2020”, diz. É o que o Instituto Travessia vem detectando nas pesquisas qualitativas: enorme insatisfação por causa do desemprego e da queda de renda, ao mesmo tempo em que o custo de vida sobe, com encarecimento de alimentos, água, luz e remédios.
A saúde, que já era o foco da agenda da opinião pública brasileira, ganhará mais relevância no pós-pandemia, segundo Lavareda. O sociólogo preside o Conselho Científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Econômicas e Políticas (Ipespe), que realiza pesquisas com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), intituladas Observatório Febraban. A edição do Observatório de julho mostra que a saúde é a principal preocupação das famílias brasileiras (62%), seguida por questões financeiras (dívidas, orçamento e poupança, com 53%) e trabalho e renda (30%). “Essas eleições deverão girar primordialmente em torno da estrutura de saúde dos municípios, o acesso ao sistema, a qualidade da rede hospitalar e dos profissionais de saúde”, diz.
Mas Rennó, da UnB, aponta que isso ocorre justamente quando grande parte dos municípios, já de longa data, não tem fôlego fiscal para prometer uma atuação contundente do Estado, desafiando as promessas dos candidatos à reeleição. Como a folha de salários compromete quase todo o orçamento e os fundos vêm carimbados, o prefeito tem pouca autonomia para ofertar políticas de assistência. “Em uma economia desativada por causa da pandemia, a arrecadação vai lá embaixo, dada a dependência dos municípios por comércio e serviço. O argumento que os atuais prefeitos têm em mãos para a reeleição é o da experiência como gestores para lidar com essa situação”, diz.
Diante de um cenário trágico como o da pandemia, Rennó diz acreditar que nestas eleições, até mais que em outras, a postura otimista na campanha será muito importante. “Eleição é um momento para vender esperança, e quem vier com um discurso positivo de que conseguirá implementar as soluções será beneficiado”.
É exatamente o tom que Wilson Pedroso, coordenador-geral da campanha de Bruno Covas, pretende adotar. “O Bruno e o [governador João] Doria escolheram preservar vidas, e agora é hora de recuperar a economia. Vamos fazer uma campanha alegre”, diz ele.
Segundo Marco Vinholi, presidente estadual do PSDB em São Paulo, a estratégia no Estado paulista, onde o partido ocupa cerca de 200 prefeituras, será dizer que os gestores enfrentaram a pandemia de modo responsável, sem negacionismo, e também explorar as propostas dos candidatos para a retomada econômica. “O ano de 2021 ainda será de recuperação. O debate principal vai girar em torno de como municípios vão gerar emprego e fazer frente às incertezas que continuam, pois o ‘timing’ da vacina e da ciência não é o mesmo da política”, diz.
Fora a recuperação econômica, o PSDB vai reforçar na campanha a identidade com políticas de cunho liberal, como desestatização e enxugamento da máquina pública, e uma posição progressista nos costumes. “O campo moderado é que fará a retomada econômica do país”, diz. A aposta será em uma campanha massivamente digital e em meios tradicionais como televisão e rádio.
Essa, segundo Lavareda, é uma tendência no Brasil e no exterior: as populações durante a pandemia deram grande importância a canais tradicionais de informação, considerando a credibilidade dos dados e das informações sobre saúde. “As pessoas na hora H correram para a TV e o rádio buscando notícias confiáveis de como proceder.” Por isso, nas grandes cidades, além das redes sociais, ele vê um papel revigorado das campanhas políticas em mídias tradicionais, que tiveram e, a seu ver, continuarão tendo mais audiência, até mesmo por conta do isolamento.
As campanhas digitais, na avaliação de Dorgan Filho, devem ser mais usadas da classe C1 até a A. “Com o empobrecimento, o povo está com um pacote cada vez menor de internet, ou não tem internet, enquanto a audiência da TV aberta está aumentando.”
Mas Laércio Ribeiro, presidente municipal do PT e coordenador da campanha de Jilmar Tatto à Prefeitura de São Paulo, lembra que o programa eleitoral passa no horário em que justamente os trabalhadores de baixa renda estão voltando do trabalho. “Essas pessoas levam 2h30 para chegar onde moram e têm pouco acesso a internet. Por isso, algum tipo de campanha tradicional vai continuar existindo nesses lugares. Em vez do corpo a corpo, estamos pensando em carro de som com o candidato falando.”
A estratégia do PT na capital paulista será radicalizar a defesa de políticas públicas voltadas para a periferia, que, segundo Ribeiro, está sofrendo demais neste período, e combater as políticas liberais. A vice-candidatura de Tatto ainda não estava definida até o fechamento desta edição, mas, segundo Ribeiro, a preferência é por uma candidata negra, que reforce a defesa das minorias e dos mais vulneráveis.
A gestão de Fernando Haddad em São Paulo (2012-2016) recebeu críticas por ter se distanciado das periferias. “Colou no Haddad a ideia de que ele era um cara de classe média, que ele fazia mais no centro do que na periferia. Mas, se você olhar a execução do orçamento e o processo inteiro de discussão do governo, a gestão foi toda voltada para as periferias”, afirma Ribeiro.
Diante da baixa popularidade de Tatto nas sondagens, Ribeiro lembra que Haddad venceu em 2012, embora tivesse apenas 4% das intenções de voto faltando um mês e meio para a eleição. “Essa é uma característica do PT, do seu trabalho de base, das reuniões, que agora são virtuais. Essa possibilidade de movimentar as bases muitas vezes não é identificada por institutos de pesquisa”, diz.
Tatto aparece com apenas 2,3% das intenções de voto, conforme levantamento feito em agosto pelo Paraná Pesquisas para as eleições municipais em São Paulo. Russomanno (20,5%) está tecnicamente empatado com Covas (20,1%). Em seguida estão Marta Suplicy (9,8%), Paulo Skaf (8%), Márcio França (7,6%), Guilherme Boulos (6,2%), Andrea Matarazzo (2,1%), Arthur do Val - Mamãe Falei (1,9%), Levy Fidelix (1,1%), Joice Hasselmann (1%), Vera Lúcia (0,9%), Orlando Silva (0,8%), Filipe Sabará (0,5%) e Marcos da Costa (0,3%).
Fora a baixa adesão a seu candidato, um desafio importante do PT será lidar com a divisão na frente de esquerda e, mais que isso, um desempenho melhor do PSol de Guilherme Boulos - que, se confirmar, será um feito histórico da dissidência petista na capital paulista. A chapa puro-sangue do PSol, com a vice Luiza Erundina, ex-prefeita em São Paulo, tem recebido apoio de intelectuais, artistas e personalidades que foram importantes na formação do PT.
Boulos, entretanto, logo atinge um teto, segundo diagnóstico de Dorgan Filho, pois representa um voto essencialmente ideológico. Um eleitor caricatural do PSol, diz ele, seria o arquiteto que mora no bairro descolado da Vila Madalena e defende a causa LGBT. É diferente de um voto em outro campo da esquerda, o do lulismo, que abarca um voto mais assistencial e popular. “Além disso, quando fazemos pesquisa qualitativa, o Boulos assusta na questão dos costumes, porque o Brasil é predominantemente religioso - evangélico ou católico”, afirma.
Diante de cenário tão indefinido, o PT ainda não sabe identificar qual será seu principal adversário, se o PSDB de Covas ou um candidato bolsonarista. “Ainda não há um candidato abertamente bolsonarista, mas certamente terá. O Doria era esse candidato nas eleições passadas, mas agora pode ser o Russomanno, que possui boa ponte com a Igreja Universal, por sua vez alinhada ao governo Bolsonaro”, diz o presidente municipal do PT.
No início da semana, tanto a ex-bolsonarista Joice Hasselmann (PSL) quanto Andrea Matarazzo (PSD) oficializaram candidatura. Uma fonte ligada à campanha de Joice, que preferiu não se identificar, disse que sua entrada na disputa seria uma forma de se fortalecer para a reeleição na Câmara dos Deputados em 2022. Mas que pesquisas internas encomendadas pelo PSL indicariam que há espaço de crescimento, notícia que a teria deixado animada para a corrida na prefeitura.
Lula Guimarães, responsável pela campanha vitoriosa de Doria para a prefeitura paulistana em 2016, diz acreditar que a histórica polarização PSDB-PT pode agora dar espaço a outro eixo, o da disputa entre Bruno Covas e Márcio França (PSB) - que, de aliado de Doria, passou a adversário e quase venceu a eleição para governador paulista em 2018, arregimentando votos de eleitores de esquerda no segundo turno.
Guimarães, que negocia com o PSB as condições para assumir a campanha de França, lembra que o candidato ganhou mais votos do que Doria na capital paulista e pode aparecer neste ano como o grande antagonista de Covas. França chegou a dar entrevistas colocando-se como uma força aliada ao bolsonarismo, para capturar os eleitores anti-PSDB e anti-Doria.
Como Doria deixou a prefeitura precocemente para se lançar ao governo do Estado e se colocar como um nome presidenciável, o marqueteiro afirma que esses sinais ainda podem estar presentes no julgamento de uma parcela do eleitorado. O atual antagonismo entre Doria e Bolsonaro poderia fazer com que um eleitor bolsonarista sem candidato de preferência na capital votasse no França por mera lealdade a Bolsonaro, especialmente no segundo turno, mesmo que não haja uma racionalidade partidária. “Temos que lembrar que o bolsonarista está mais no campo do fanatismo e segue o seu líder”, diz Guimarães. Além disso, o apoio de Doria pode não ser a melhor alavanca.
Antes da pandemia, em março, a aprovação de Doria na cidade de São Paulo era de apenas 17%, enquanto 44% consideravam a gestão ruim ou péssima, segundo o Ibope. Dorgan Filho identificou em entrevistas qualitativas realizadas em São Paulo que a condução da crise de saúde no Estado foi bem-vista por eleitores, mas entre os de perfil mais à esquerda, que não votam em Doria. E aqueles à direita também não votam, devido ao alinhamento com Bolsonaro. A conclusão é que a gestão da pandemia não teria ajudado Doria a recuperar o cacife eleitoral, com reflexos na candidatura de Covas.
De todo modo, quem disputar com Covas terá trabalho, pois sua avaliação segue alta. “O Bruno se mostrou um prefeito muito presente na pandemia”, na avaliação de Guimarães. “Com câncer, em vez de pedir licença, ele se mudou para a prefeitura. A atitude corajosa é um marco muito importante para o eleitor, que vê uma demonstração de comprometimento com a cidade. E pode ser que a candidatura do Bruno venha a ser fortalecida por um vice popular”, diz. Russomanno, inclusive, chegou a ser cotado para a vaga.
Pedroso, coordenador-geral da campanha à reeleição, diz que pesquisas encomendadas pelo partido ainda estão sendo feitas para identificar o perfil ideal de vice, pesando os prós e contras de cada um. “É um jogo de xadrez”, afirma. Alguns nomes no páreo, segundo ele, são a deputada federal Mara Gabrilli (PSDB), Ricardo Tripoli (PSDB), Marta Suplicy (Solidariedade) e o vereador Ricardo Nunes (MDB).
Na praça carioca, a situação é inversa à de Covas: Crivella segue com baixa avaliação, que vinha antes da pandemia por causa de má zeladoria e problemas na saúde e no transporte da cidade. Levantamento do Instituto Paraná Pesquisas divulgado em 21 de agosto, portanto antes da Operação Freedom contra os “Guardiões do Crivella”, mostra o ex-prefeito Paes com 29,5% da preferência e Crivella com 16,7%, seguido pela delegada Martha Rocha (PDT) com 10,1%. O prefeito é desaprovado por 65,5% dos entrevistados.
É curioso, na visão de Lula Guimarães, que ainda não tenha aparecido no Rio ou em São Paulo um candidato muito forte com a bandeira bolsonarista, como se previa depois das eleições de 2018. Talvez um dos fatores, observa, é que houve uma onda do Bolsonaro poderosa, que elegeu um grupo numeroso, mas não organizado do ponto de vista político e partidário. Com isso, não houve força suficiente para manter uma articulação nas capitais até 2020, situação agravada pelo rompimento de Bolsonaro com o PSL já em 2019.
Antonio Alkmim, professor da PUC do Rio e estudioso da política na cidade carioca desde as eleições de 1985, buscou entender como uma cidade de maioria católica elegeu um bispo evangélico. Um dos fatores é a formação das redes de ajuda mútua, como arrumar emprego, conseguir uma bolsa de estudos em faculdade evangélica e mediar problemas no casamento, com filhos, doença, alcoolismo. “Grande parte da Câmara de Vereadores no Rio atua com esse tipo de assistencialismo. É a velha prática política revestida de um discurso religioso.”
Segundo Alkmim, a própria Igreja Universal orienta os evangélicos a entrar para a política, dentro de um projeto internacional de expansão. “Isso explica a figura do Crivella, que é membro da família de Edir Macedo.” Outra razão para a ascensão do bispo ao poder foi que a disputa ficou polarizada entre Crivella e Marcelo Freixo (PSol). “Entre uma alternativa evangélica e uma outra considerada ‘comunista’, boa parte da população mais conservadora e católica se absteve de votar. O nível de abstenção na última eleição carioca foi maior em áreas onde há mais população católica”, diz.
Mais um fator que entra nessa equação, segundo o professor, é o fato de o PT no Rio ser uma espécie de satélite da direção nacional. Enquanto em outras capitais o PT tem presença forte e até autônoma, por vezes contrariando a direção nacional do partido, no Rio isso não acontece.
“Aqui o PT sempre foi fraco e dependente do lulismo. Quando o PT ocupou o governo, foi por meio de alianças, com a Benedita da Silva vice-governadora do [Anthony] Garotinho [PSB] e com parte do PT ocupando o governo de Sérgio Cabral e da prefeitura de Eduardo Paes”, afirma Alkmim. A baixa penetração do PT pode se explicar pela composição econômica da cidade e do Estado, mais ligada a serviços e sem uma cultura sindical forte.
Com isso, o PSol acabou ocupando o espaço do PT no Rio. Embora Freixo fosse apontado como um dos favoritos nesta eleição, Alkmim diz acreditar que dificilmente sairá candidato, porque não houve acordo entre PSol e PT para formar uma frente, e o PT acabou por lançar a pré-candidatura de Benedita.
Mas se há uma capital com alta imprevisibilidade nestas eleições, esta é Recife, administrada por Geraldo Júlio (PSB). “Tudo pode acontecer. Quem quiser fazer um prognóstico estará expressando opinião de torcedor”, diz Lavareda. É o que se chama de eleição aberta tecnicamente, ou seja, ninguém na disputa tem pelo menos um terço das intenções de voto. Ainda está na fase de disputa pela hegemonia dos campos da esquerda e da direita. A esquerda está dividida entre a deputada federal Marília Arraes (PT), neta de Miguel, e do deputado federal João Campos (PSB), filho do presidenciável Eduardo, morto na campanha das eleições de 2014 em um acidente aéreo.
Já o campo da centro-direita está congestionado pelo deputado federal Daniel Coelho (Cidadania), a delegada Patrícia Domingos (Podemos) e Mendonça Filho (Democratas), ex-ministro da Educação na gestão de Michel Temer. “Como Recife possui grande quantidade de eleitores de classes C e D, a decisão está totalmente no ramo popular”, observa Dorgan Filho. São faixas muito identificadas com o lulismo e arraesismo. “Por isso, se a direita não se unificar, não terá chance nenhuma. Se sair um para cada lado, vai dar segundo turno entre Marília e João Campos”, avalia.
O quanto as eleições municipais influenciam a nacional e vice-versa não é um ponto consensual entre os cientistas políticos. Jairo Nicolau, que não vê muita relação, cita como exemplo o PT, que nas últimas eleições municipais, em 2016, ganhou em apenas uma das cem maiores cidades do país e, dois anos depois, disputava o segundo turno da eleição presidencial. Ele diz não acreditar que questões ideológicas prevaleçam em eleições municipais, estas sim muito mais voltadas à uma avaliação sobre a qualidade dos serviços públicos locais. “O Haddad foi melhor candidato a Presidência do que para a prefeitura onde disputava a reeleição. Ou seja, não tem muita lógica”, argumenta.
Mas Lavareda afirma que a eleição de 2020 refletirá traços da eleição de 2018 e também influenciará, em certa medida, a de 2022. Para ele, é preciso olhar a votação que ocorreu nas cidades no segundo turno das eleições presidenciais. “Em São Paulo, por exemplo, é muito difícil a direita não eleger o prefeito agora, porque a esquerda foi massacrada na cidade, no segundo turno das eleições presidenciais: 60 a 40. No Rio, foi 66 a 34. E, no Recife, 53 a 47, uma disputa mais equilibrada, indicando quão difícil será a eleição lá.”
A esquerda, segundo ele, terá muita dificuldade nas capitais do Sudeste, de onde foi “praticamente escorraçada”. A seu ver, esse é um reflexo sobretudo do declínio do PT, que entre 2010 a 2018 perdeu 9 milhões de votos no Brasil, dos quais 7,5 milhões apenas na região Sudeste. Como nas regiões Sudeste e Sul Bolsonaro está “nadando de braçada”, conquistar o Nordeste o deixaria em uma situação bastante confortável, na avaliação de Lavareda.
No Nordeste, a nova fronteira bolsonarista, Dorgan Filho identifica, por meio de pesquisas qualitativas realizadas em Paraíba e Pernambuco, a pedido de clientes, que a população tem diminuído a rejeição contra Bolsonaro. A razão é bem pragmática, ligada ao auxílio emergencial, diante do alto empobrecimento na região. “É como se Bolsonaro fosse a reedição do coronel do Nordeste que distribuía dinheiro e água. É uma relação de estômago. Diferente do Lula, que é uma relação de coração, de amor”, compara.
No caso de candidatos a prefeitos no Nordeste, Dorgan Filho diz não acreditar que o aumento da popularidade do presidente, detectada em pesquisa Datafolha de agosto, já seja suficiente para impulsionar suas campanhas - a aprovação passou de 32% na segunda semana de junho para 37% na segunda semana de agosto. “O Bolsonaro ainda é mais odiado que amado no Nordeste”. Mas, no caso das campanhas para vereador, ajuda a impulsionar sim, e especialmente em outras regiões do Brasil. “Se a [ativista] Sara Giromini, por exemplo, sair a vereadora com o apoio de Bolsonaro, ela ganha”, pondera.
Não que o caminho seja fácil para Bolsonaro e seus candidatos. Pesquisas qualitativas realizadas pelo Instituto Travessia também identificam que Luciano Huck tem boa penetração no eleitorado em busca de assistência social. “O Huck entra no voto lulista. O eleitorado nordestino não se identifica com ele, mas gosta. Ele tem um perfil mais humano, afetuoso, que há anos ajuda as pessoas, e isso passa na televisão aberta. Enquanto isso, Bolsonaro tem um perfil mais agressivo, que assusta.”
Já Doria, para Dorgan Filho, teria queimado a largada de 2022, antecipando o rompimento com Bolsonaro. “Hoje Doria está mal avaliado nas pesquisas qualitativas, e o campo da direita se congestionou, até mesmo com possibilidade de o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta entrar no páreo”.
O adversário ideal para Bolsonaro em 2022 seria de novo o PT, e vice-versa. “Já um Huck e um Sergio Moro são muito perigosos para ele”, avalia Dorgan Filho. Isso porque Moro penetra na classe média anticorrupção e lava-jatista, que em 2018 não iria votar em Bolsonaro, mas sim em João Amoêdo (Novo), Geraldo Alckmin (PSDB), Henrique Meirelles (MDB) e uma parte em Ciro Gomes (PDT). “A união entre Luciano Huck e Sergio Moro seria uma bomba para Bolsonaro.”


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