Ben Smith escreve no The New York Times uma reportagem demolidora sobre o Intercept, traduzida e publicada na Folha de S. Paulo na segunda, 14/9. Vale a leitura, íntegra a seguir.
A enorme invasão do programa de vigilância doméstica da Agência de Segurança Nacional, em junho de 2013, foi um dos momentos de maior orgulho do jornalismo moderno e um dos mais puros: um denunciante corajoso e indignado, Edward Snowden, revelou a vigilância generalizada de cidadãos americanos e estrangeiros pelo governo.
Dois jornalistas protegeram a fonte, revelaram seus segredos e assim ganharam as bênçãos do sistema —um prêmio Pulitzer e um Oscar.
Uma das pessoas que se apaixonaram por essa história foi Pierre Omidyar, o bilionário que fundou o site de compras eBay. Em outubro daquele ano, ele prometeu US$ 250 milhões (R$ 1,32 bilhão) para uma nova instituição liderada por esses dois jornalistas, Glenn Greenwald e Laura Poitras.
Omidyar foi o patrono dos sonhos dos jornalistas. Prometeu independência total para um novo site de notícias sem fins lucrativos, The Intercept, sob a égide de sua companhia First Look Media.
O Intercept foi fundado na crença de que "o principal valor do jornalismo é que ele exige transparência e, portanto, prestação de contas daqueles que detêm o maior poder governamental e corporativo".
A primeira missão da publicação foi criar um arquivo seguro com os documentos de Snowden e usá-los como fonte para reportagens.
A história recente do setor jornalístico tem sido sobre o que acontece quando uma empresa tradicional é perturbada pela internet e suas receitas diminuem. Mas em The Intercept e First Look, a história é de uma força desestabilizadora diferente: dinheiro a rodo.
Em 2017, o ramo comercial da empresa tinha reservado US$ 40 milhões (R$ 212 milhões) para ampliar a equipe e investir em filmes e programas de televisão, disse um ex-executivo, enquanto o braço sem fins lucrativos gastou cerca de US$ 26 (R$ 138 milhões) milhões em 2017 e novamente em 2018, de acordo com seus registros públicos, a maior parte no Intercept.
Estrelas renomadas recebiam grandes salários —Greenwald ganhou mais de US$ 500 mil (R$ 2,6 milhões) em 2015— e às vezes entravam em confronto público com seus patrões por causa dos árduos esforços para formar uma organização.
Os jornalistas brigavam em mensagens no Twitter e no Slack sobre Donald Trump, racismo e políticas de esquerda. Greenwald continua enfurecendo os colegas mais jovens com tuítes como um no qual denunciou "ideólogos de velório".
Não muito depois de Omidyar ter enviado seu primeiro dólar, ele se viu presidindo um caos tão público que a revista Vanity Fair perguntou em 2015 "se a First Look Media consegue fazer manchetes que não sejam sobre si mesma".
Todo o drama faria desta mais uma história pitoresca sobre a disfunção extrema da Redação se o Intercept não tivesse chamado a atenção de uma linguista ingênua da Agência Nacional de Segurança (NSA na sigla em inglês) com o nome improvável de Reality Winner, em 2017.
Winner, então com 25 anos, estava ouvindo o podcast do site. Ela imprimiu um relatório secreto sobre os ataques cibernéticos russos ao software de votação americano que parecia responder a algumas dúvidas de Greenwald sobre a interferência russa na campanha de 2016 e o enviou para a caixa postal do Intercept em Washington no início de maio.
O Intercept correu para publicar uma reportagem sobre o relatório, ignorando as precauções de segurança mais básicas. O principal repórter enviou uma cópia do documento, que continha marcações mostrando exatamente onde e quando ele tinha sido impresso, para o escritório de assuntos de mídia da NSA, praticamente identificando Winner como a vazadora.
Em 3 de junho, cerca de três semanas depois que Winner enviou a carta, dois agentes do FBI apareceram em sua casa na Geórgia para prendê-la. Eles anunciaram a prisão logo após a publicação do artigo do Intercept, em 5 de junho.
"Eles a entregaram e bagunçaram tudo para que ela fosse pega, e não protegeram sua fonte", disse a mãe de Winner, Billie Winner-Davis, em uma entrevista por telefone na semana passada. "Os melhores anos de sua vida estão sendo passados em um sistema ao qual ela não pertence."
Deixar de proteger uma fonte anônima é um pecado capital no jornalismo, mas o mais notável neste caso é que o Intercept não pareceu tentar proteger sua fonte.
O veículo imediatamente abriu uma investigação sobre o erro, o que confirmou os detalhes que o Departamento de Justiça anunciou alegremente depois de prender Winner.
Eles incluíam o fato de que o Intercept levou as autoridades até Winner quando distribuiu o documento na tentativa de verificar sua autenticidade e, em seguida, publicou o documento completo, com as marcas de identificação, na internet.
Emails internos e registros que obtive revelam o tumulto que levou a um dos mais destacados desastres jornalísticos na memória recente e fornecem visões mais amplas sobre os limites de uma organização de notícias dependente dos humores de um bilionário descuidado.
Uma porta-voz de Omidyar se recusou a agendar uma entrevista com ele. O New York Times não está publicando os documentos, que somam mais de cem páginas, porque incluem discussões sobre fontes e medidas de segurança.
Os documentos, entre eles dois relatórios internos sobre o incidente de Reality Winner que não foram divulgados, foram-me entregues por pessoas que eram funcionários graduados em 2017 e afirmam que a organização falhou em se responsabilizar por seus erros e pelo que aconteceu com Winner em consequência deles.
Alguns funcionários atuais e antigos que entrevistei expressaram perguntas fundamentais sobre a investigação interna do desastre, incluindo por que o Intercept não havia contratado um escritório de advocacia externo ou outra entidade independente para conduzir a investigação.
Eles também perguntaram por que Betsy Reed, a editora-chefe, atribuiu a investigação a Lynn Dombek, então chefe de pesquisa do Intercept, que se reportava diretamente a ela.
Reed, contratada para estabilizar o Intercept e controlar suas grandes personalidades em 2015, disse-me que enfrentou "uma situação traiçoeira" depois que o artigo foi publicado.
Ela precisou equilibrar uma "demanda legítima por transparência" que se alinhasse aos valores fundamentais do Intercept com o conselho insistente dos advogados para manter silêncio, e assim proteger seus repórteres e suas fontes.
Poitras disse que o Intercept deveria ter adotado um padrão mais elevado.
"Fundamos esta organização com o princípio de responsabilizar os poderosos e proteger os denunciantes", afirmou Poitras em entrevista. "Isso não foi apenas um encobrimento e traição dos valores essenciais. A falta de qualquer responsabilização significativa promoveu uma cultura de impunidade e colocou em risco futuras fontes."
As tensões internas estavam fervendo numa noite pouco antes do Dia de Ação de Graças [final de novembro] de 2017, quando os dois jornalistas americanos que ajudaram a divulgar as revelações de Snowden trocavam emails tarde da noite, os quais obtive.
Eles não estavam escrevendo sobre desvios do governo, mas sobre sua própria Redação.
A supervisão da investigação por Reed, escreveu Poitras, foi uma tentativa de "encobrir o que aconteceu por motivos de autoproteção". Foi uma "mão de cal", concordou Greenwald em resposta.
Os documentos não revelam um encobrimento conspiratório. Em vez disso, mostram uma versão extrema de erros humanos, arrogância e má gestão familiares a qualquer pessoa que já trabalhou numa Redação —e a luta do Intercept para cumprir seus elevados ideais de fundação ao enfrentar seus próprios erros.
Winner pode ter pensado que estava enviando os documentos para Greenwald e Poitras, que fizeram de tudo para proteger Snowden. Mas Greenwald estava no Brasil e, quando soube do documento, não se interessou.
Ele me disse que considerou as afirmações sobre a invasão digital russa durante a corrida eleitoral de 2016 "extremamente exageradas" e que não incluíam evidências diretas para convencê-lo do contrário.
Poitras, enquanto isso, havia deixado o Intercept e criado uma empresa de produção sem fins lucrativos, Field of Vision, uma parte da First Look Media, que também inclui o Intercept e outros empreendimentos de Omidyar.
Reed e seu vice, Roger Hodge, contaram a história a dois jornalistas de televisão consagrados: Matthew Cole e Richard Esposito. Cole, ex-NBC, havia colaborado com Greenwald nas histórias de Snowden e fazia parte da equipe.
Esposito, também veterano no jornalismo televisivo da NBC News e da ABC News, foi trazido de fora e hoje é o principal porta-voz do Departamento de Polícia de Nova York.
Reed me disse que os chamou em parte porque a postura de "outsider" do Intercept o deixou sem as fontes internas que poderiam autenticar documentos como o de Winner. Mas o reflexo deles de procurar autoridades de segurança nacional encerrava seu próprio risco.
"Se você recebe um documento que supostamente é da NSA, deveria ser um grande incêndio", disse um membro da poderosa equipe de segurança do Intercept, Erinn Clark, em sua entrevista para o inquérito interno. "Vá para uma sala segura, com um editor, congele-se. Você não está ciente de quem está expondo ou colocando em risco."
Em vez disso, Cole colocou o documento em sua bolsa e pegou um trem para Nova York. Uma preocupação cruzou sua mente. "Na época, pensei que haveria uma auditoria se eles tivessem imprimido em uma impressora do governo", disse ele, de acordo com as notas de revisão interna. "Esqueci essa ideia."
Mais tarde, ele ligou para uma fonte da comunidade de inteligência na tentativa de verificar o documento e, casualmente, revelou seu carimbo postal.
"Minha fonte disse algo sobre 'como isso chegou até vocês?'. Eu disse 'pelo correio, da Geórgia, e minha fonte riu'", lembrou ele durante a investigação interna. Em seguida, Cole mencionou que o carimbo postal era de Fort Gordon, na Geórgia, onde fica o Centro Criptológico da NSA. "'Há uma lógica nisso'", disse a fonte.
Em 11 de julho de 2017, Reed publicou uma postagem no Intercept anunciando que a First Look pagaria pela defesa jurídica de Winner. Reed também anunciou que uma "revisão interna do relato desta história já foi concluída".
"Devíamos ter tomado mais precauções para proteger a identidade de uma fonte que era anônima até para nós", escreveu ela. "Como editora-chefe, assumo a responsabilidade por essa falha e por garantir que as questões internas da Redação que contribuíram para isso sejam resolvidas."
Mas o drama não terminou aí.
Greenwald e Jeremy Scahill, um repórter investigativo e terceiro fundador do Intercept, exigiram publicamente uma investigação mais completa e, como resposta à pressão deles, a empresa encomendou um segundo relatório interno, por um advogado da First Look, David Bralow.
O relatório de Bralow, publicado quatro meses depois, citou como questões centrais a decisão de compartilhar o documento com a NSA, a menção de Cole ao carimbo do correio e a publicação das marcas de identificação.
"Embora cada uma dessas ações possa ou não significar um erro em todos os casos, neste episódio essas ações ficaram abaixo dos objetivos do Intercept de proteger as fontes que buscam compartilhar informações de importância pública significativa", escreveu ele.
"Os procedimentos de autenticação de documentos secretos que vazaram revelam fragilidades institucionais."
Winner foi condenada a cinco anos e três meses de prisão federal em 2018, e o Intercept cobriu seu caso regularmente, sempre observando seu próprio papel —"uma parte importante da prestação de contas", disse Reed.
Mas não houve nenhuma responsabilização a mais. Nenhum relatório interno foi compartilhado com o público. Ninguém no Intercept foi demitido, rebaixado ou mesmo transferido.
Reed e Bralow argumentaram que qualquer avaliação pública ainda poderia expor outras fontes com as quais falaram sobre o documento.
A história foi claramente um golpe psíquico no idealismo que marcou a fundação do Intercept. O veículo recuou de suas ambições iniciais. O arquivo de documentos de Snowden, que recebeu de Greenwald e Poitras sob a condição de que a empresa mantivesse um protocolo de segurança complexo e específico e uma equipe para apoiá-lo, foi fechado depois que Reed reduziu seu pessoal, citando cortes no orçamento.
Poitras, que se opôs furiosamente aos cortes na época, chamou a medida de "surpreendente".
O repositório foi "o arquivo histórico mais significativo que documenta a ascensão do Estado de vigilância no século 21", escreveu ela em um memorando para a empresa matriz do Intercept. Fechá-lo prestou um desserviço ao "público para o qual Edward Snowden fez a denúncia".
O Intercept nunca recuperou totalmente sua pose altiva depois do caso de Reality Winner, embora tenha continuado a produzir reportagens notáveis. Ele ampliou sua missão original de noticiar sobre "liberdades civis, justiça social, combate à corrupção", disse Reed, e reportagens interrompidas, incluindo revelações dos arquivos de Snowden sobre o papel da AT&T na vigilância da NSA e um perfil investigativo feito por Cole de Erik Prince, o fundador da Blackwater, a empreiteira de segurança privada.
Hoje em dia, parece mais dominado pela política, tanto no Brasil, onde vive Greenwald, quanto nos Estados Unidos, onde se tornou um centro das ferozes batalhas ideológicas travadas entre a esquerda americana.
Um vazamento para Greenwald no ano passado mostrou como as investigações de corrupção foram politizadas no Brasil; a reportagem reformulou a política do país.
Nos Estados Unidos, Greenwald tem se envolvido cada vez mais em duras rixas com outros da esquerda, acusando os progressistas —incluindo alguns de seus colegas no Intercept— de estarem obcecados com políticas de identidade e Rússia, ignorando a ação mais insidiosa do poder corporativo.
Suas participações mais memoráveis na televisão hoje em dia parecem ser no programa de Tucker Carlson, na Fox News, durante o qual os dois denunciam o "Estado profundo".
Enquanto isso, seus colegas remodelaram o site para defender insurgentes e críticos da corrente dominante democrata, incluindo uma mulher que acusou Joe Biden de agressão sexual, Tara Reade, enquanto os principais meios de comunicação levantavam dúvidas sobre a história.
A empresa concebida para financiar o jornalismo no Intercept —o ramo de produção de filmes com fins lucrativos— também vacilou, deixando de produzir outro sucesso desde "Spotlight", em 2015.
Os documentos que obtive mostram uma amarga disputa interna sobre a recusa dos líderes em dar crédito de produtora a uma importante executiva.
Outra de suas contratações mais destacadas, a ex-editora do Topic.com Anna Holmes, que saiu em 2019, disse-me: "Sempre admirei o compromisso declarado da First Look Media com a liberdade de expressão, transparência e falar a verdade ao poder. Portanto, nesse espírito, direi o seguinte: minha gestão lá foi criativamente compensadora —também foi pessoal e profissionalmente desmoralizante".
Reality Winner, enquanto isso, está se recuperando do coronavírus em uma prisão federal no Texas. Ela ainda fica sem fôlego às vezes, disse sua mãe, que ainda culpa o Intercept pelas consequências desastrosas do esforço incauto de sua filha para fazer uma denúncia, embora a First Look também esteja pagando a conta dos advogados.
Winner-Davis abandonou recentemente sua aposentadoria para trabalhar como agente penitenciária em uma prisão local, para se sentir mais próxima de sua filha e entender sua experiência atrás das grades.
"Fico arrasada todos os dias ao entrar naquele ambiente e saber que é isso que minha filha está passando", disse ela.
OUTRO LADO
O Intercept americano publicou em seu site nesta segunda-feira (14) uma resposta à reportagem do NYT, afirmando que admitiu seus erros em julho de 2017 e que apoia uma campanha para que Reality Winner receba um indulto.
"O New York Times, o BuzzFeed News, a Fox News e muitos outros veículos jornalísticos já tiveram fontes perseguidas por compartilhar informações com eles", diz o comunicado.
O site reconheceu que seu processo para confirmar a autenticidade do documento foi falho, mas afirmou que o artigo contém uma série de erros e de pontos que precisam ser esclarecidos.
Segundo o Intercept, sua investigação interna, assim como reportagens de outros veículos (incluindo o Washington Post), confirmaram que o relatório poderia ter sido rastreado até Winner independentemente dos erros.
"Isso não atenua os erros que cometemos, mas a sugestão de que ela foi pega por causa de nossas falhas é falsa", afirma o comunicado.
A investigação interna também é descrita de forma equivocada pelo New York Times, segundo o site.
O primeiro inquérito não foi conduzido por um funcionário que se reportava diretamente à editora-chefe, Betsy Reed, "mas sim por um advogado externo —precisamente a estrutura que o artigo do Times sugere que teria sido apropriada—, e a segunda e mais abrangente investigação foi conduzida pelo conselho interno da First Look, que chegou às mesmas conclusões da primeira", diz o comunicado.
O Intercept afirma que adotou procedimentos de segurança para casos similares ao de Winner. Entre outras iniciativas, "criamos um protocolo para determinar quando uma história é sensível a ponto de exigir os cuidados de uma equipe de reportagem investigativa, composta por um editor, o repórter ou repórteres, um advogado e um especialista em segurança".
Por fim, o site também nega que o arquivo com os documentos fornecidos por Edward Snowden tenha sido fechado por causa de cortes de pessoal. Segundo Intercept, depois de o site receber instruções da First Media Look para reduzir sua equipe, foi decidido que dois funcionários seriam demitidos, mas Poitras foi contra.
A fundadora argumentou que nenhum corte deveria ser feito, afirmou o site, ou que, havendo demissões, dois funcionários apontados por ela deveriam ser dispensados. Poitras argumentou que o arquivo não seria adequadamente protegido caso suas demandas não fossem aceitas, segundo o Intercept.
"Nós tínhamos confiança de que poderíamos proteger o arquivo com o time de segurança que seria mantido na Redação, e recusamos suas demandas. Depois disso, Poitras retirou seu consentimento à permanência do arquivo com o Intercept, o que nos forçou a fechá-lo", diz o comunicado.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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