Pular para o conteúdo principal

Ridley Scott: “Religião, política e tecnologia são a mesma coisa e se controlam. Devem ser separadas”

Juan Sanguino, de Madri, resenha Raised by wolves, novo projeto de Scott, um dos mais premiados cineastas da atualidade. Íntegra a seguir, texto publicado no El País no dia 17/9.


Ridley Scott, diretor de Alien e Blade Runner, e para muitos um dos pais do cinema de ficção científica contemporâneo, retorna à telinha, onde se forjou nos anos sessenta, para dirigir pela primeira vez em sua carreira um episódio piloto. Raised by wolves pode ser assistido no canal HBO Max, onde é o principal projeto da nova plataforma, e nasce com a responsabilidade de repetir o que Game of Thrones fez pela HBO. Mas desta vez não é uma série de fantasia, mas de ficção científica para que é muito viciado.

Scott entrou no projeto como produtor, mas diz que sua intuição acabou por levá-lo a dirigir os dois primeiros episódios “para ditar o ritmo e a cadência dos personagens”, diz por videoconferência, que compartilha com os latidos de seu cachorrinho. Quando se trata de androides, do alvorecer de uma civilização e de mulheres fortes, o diretor de Blade Runner, Alien e Thelma e Louise tem experiência de sobra. Também em Raised by Wolves os androides sonham com ovelhas elétricas mais do que gostariam. Depois de uma guerra mundial que destruiu a Terra, um Adão e Eva autômatos (Pai e Mãe) são designados a um novo planeta com a missão de repovoá-lo e educar um grupo de crianças em um único dogma: a tecnologia. Mas esta nova oportunidade para a humanidade será boicotada, é claro, pelos humanos. Alguns sobreviventes terráqueos encontram o planeta e o reivindicam. Travis Fimmel (Vikings) interpreta um deles, que começa não acreditando em nada e acaba convencido de que é um messias.

“Quando criança, fui criado na fé protestante e até cantava no coro da igreja”, lembra Scott. “A ideia da religião nunca foi totalmente autêntica para mim, mas sempre acreditei que existe algo mais. Então acabei sendo o que se poderia chamar de agnóstico. Em outras palavras, pelo sim, pelo não, mais vale eu acreditar em Deus. Então vi 2001 – Uma Odisseia no Espaço. No final do filme, um astronauta embarca em uma viagem com uma máquina. Kubrick era constantemente perguntado sobre o que aquilo significava e não sabia a resposta ou não queria dar. Eu pensei sobre isso e me ocorreu que o que chamamos de Deus talvez seja uma inteligência que simplesmente não podemos entender. É esse chamado poder tão específico quanto um objeto ou uma pessoa? Talvez não. Talvez seja algo que não podemos entender.”

No universo de Raised by Wolves, a tecnologia substituiu a religião porque a humanidade evoluiu e amadureceu demais para continuar acreditando em (como descrevem os androides) “contos de fadas”. Os humanos restantes são devotos de um certo Saul e se empenham em impor seu dogma, sem valores nem moral para guiar a conduta: acredita-se em Saul e ponto final. A religião é mais um conceito abstrato do que uma prática concreta. A fé na tecnologia é mais definida: envolve aceitar sua missão, exercer o pacifismo e respeitar a existência de todos os seres sem egoísmo. Mas também é preciso aceitar que a morte é o fim.

O criador de tudo isso, Aaron Guzikowski, considera que a humanidade se comporta como se os avanços tecnológicos fossem revelar um propósito ou um significado superior. “E, nesse sentido, a tecnologia não é tão diferente da fé. Há uma tendência a idolatrar a tecnologia, de se unir em torno dela. As empresas de tecnologia têm seus próprios devotos”, analisa. Scott critica que o ser humano tenha recebido várias advertências e não queira se encarregar delas. “As maravilhas da tecnologia são formidáveis, mas você deve ter seus próprios recursos e seu próprio bom senso. Fomos notificados sobre a covid-19 há cinco anos e não ouvimos. Agora não estamos melhor do que em 1919. Como isso pode acontecer? Você está brincando? As pessoas não estão prestando atenção no que está diante de seus narizes. É estúpido. Religião, política e tecnologia são a mesma coisa e se controlam entre si. Devem ser separadas”, afirma.

O conflito em Raised by Wolves acaba derivando nas crianças. Os jovens suportam como podem o peso do futuro da espécie humana sobre seus pequenos ombros, enquanto seus pais (biológicos, adotivos ou impostos) debatem sobre a melhor forma de educá-los. A androide tem certas vantagens (pode fazê-los dormir a seu bel-prazer ou rastrear sua localização), mas carece totalmente de empatia. O humano considera os filhos sua propriedade. “Minha mãe educou a mim e aos meus dois irmãos. Ela era o homem da casa, porque meu pai trabalhava em alto posto no Exército, e obviamente fez um bom trabalho. Sempre tive muito respeito por minha mãe e jamais tive uma discussão sobre a fortaleza das mulheres. Sempre contei com mulheres fortes: Sigourney Weaver, Thelma e Louise, a tenente O’Neill [de Até o Limite da Força]. Contratei Amanda Collin (Mãe) para que fosse tanto masculina quanto feminina, mas mais feminina. Para a imagem dela tive em mente David Bowie”, explica o diretor.

Segundo Raised by Wolves, dentro de alguns séculos os conflitos conjugais serão semelhantes aos de hoje: desequilíbrios de poder entre a mãe e o pai, filhos fazendo exatamente o contrário do que lhes mandam (neste caso, acreditar em Saul). A aposta da série é que o espectador não poderá ficar do lado de ninguém. Uma Virgem Maria 2.0 recebe com ira a notícia de que o fruto de seu ventre é a única esperança da humanidade (“eu não quero”) e os androides, para sua desgraça, acabam se parecendo com os humanos. Sonharão agora com as reuniões das Associações de Pais e Mestres?





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...