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Dica da Semana: Glória, livro

Nesta edição, temos a estreia de uma nova colunista, Teresa de Carvalho Magalhães, que passa a colaborar com a Dica da News da LAM Comunicação. E já no primeiro texto, uma bela resenha de um livro incrível. 

Cirúrgico e irônico, livro destrincha o mundo desonrado em que vivemos

De estilo machadiano e humor ácido, Glória, livro de Victor Heringer lançado em 2012 pela 7 Letras e reeditado pela Cia. das Letras em 2018, deixa o leitor em êxtase em cada uma de suas quase trezentas páginas. O enredo lembra Cem Anos De Solidão de Gabriel García  Márquez, porém em Glória os elementos fantásticos são, ironicamente, as vidas dos personagens comuns do Rio de Janeiro. Aliás, ironia é palavra importante para descrever a obra: do prólogo ao epílogo, Heringer manipula o leitor, constrói em uma narrativa surpreendente, todo um ambiente que mistura mundo real com ficção, apagando as fronteiras entre os dois. 

O livro narra a história da pacata família carioca Alencar Costa e Oliveira, que apresenta  uma particularidade: todos que nela nascem morrem de desgosto. É tragicômico que quem morre de desgosto, morre rindo. Sim, é um ataque de risos, um surto de risadas que faz com que a causa da morte seja diagnosticada: desgosto. 

A escolha do espaço em que a narrativa se desenvolve não deixa de ser precisa. O principal palco é o bairro carioca da Glória, em que toda água foi encanada e já não se vê o mar, a beleza da Cidade Maravilhosa. Pelo contrário, na Glória evidencia-se a desgraça e miséria humana. Um bairro congelado no tempo, que pertence ao passado da cidade e, por isto mesmo, quem nele vive está fadado ao completo esquecimento e insignificância. Um bairro dominado pelas formigas. Pelo desgosto. 

Escrito no começo dos anos 2010, o livro traz a questão da pré-história das redes sociais, de como as relações construídas na internet se entrelaçam com a realidade de quem está por trás dos avatares. O Café Aleph, web fórum em que se desenvolve quase toda a interação social da personagem principal, Benjamin Costa e Oliveira, reúne personalidades como Mário de Andrade (estudante de letras de Juiz de Fora), J. D. Salinger (aspirante a escritor de Santo André), entre outras. 

O anonimato no ambiente virtual é regra, como era no começo das redes, e cada um escolhe seu pseudônimo. É no Aleph que Benjamin (Hecateu de Mileto) conhece Paula (Paula Lavalle), suspeitando ser a vizinha por quem é apaixonado. O encontro dos avatares na vida real é, porém, um tanto quanto decepcionante. Sem dar spoilers, é possível dizer apenas que Paula de carne e osso mostra-se amargamente diferente de Lavalle. 

A partir dessa quebra na expectativa de Benjamin, há uma quebra narrativa importante: o mundo, que já era hostil e depressivo, torna-se ainda mais vazio de sentido. A desumanidade latente dos personagens é, na verdade, a humanidade em sua forma mais crua. Os valores humanos e sociais evidenciados no livro são a individualidade e o egoísmo inerentes, a falta de empatia, os afetos ilusórios. 

O que também chama a atenção do leitor são as provocações que o autor faz nas notas de rodapé, separando autor de narrador, evidenciando muitas vezes as discordâncias entre os dois. A partir deste diálogo, o leitor começa a se sentir realmente envolvido, além da narrativa, na construção do livro em si, metalinguisticamente. 

Além disso, Glória conta com uma coletânea de jargões próprios, meticulosamente escritos depois de certas cenas. “Paz na terra para todos os seres”, “Deus é, era, gago” e “Todo mundo no mundo é um Costa e Oliveira” são alguns deles. 

Os jargões contribuem para essa sensação de profundo envolvimento do leitor na narrativa. É a costura entre o autor-personagem, o narrador onisciente-personagem e as personagens em si que enriquece o livro. Mais do que uma história bem contada, a vida dos Alencar Costa e Oliveira torna-se a vida de cada um que a lê.

De forma irônica, Glória retrata um mundo extremamente cruel, depressivo, melancólico e sem sentido profundo que é, antes de qualquer outra coisa, o mundo em que vivemos, anestesiados até então. A obra rendeu o prêmio Jabuti a Heringer, em 2013, na categoria romance. (Por Teresa de Carvalho Magalhães em 22/09/2020) 





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