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Reforma administrativa de Bolsonaro parece boi de piranha

A reforma administrativa de Jair Bolsonaro até pode vir a prestar, quando e se a gente souber o que de fato vai ser a mudança. Até agora, foram apresentados apenas uns princípios gerais, explicações confusas para omissões importantes e uns jabutis problemáticos, escreve Vinicius Torres Freire em sua coluna na Folha de S. Paulo, em texto publicado dia 3/9. Continua a seguir.

Politicamente, parece um boi de piranha, um pobre bicho idoso que, diz a lenda, era sacrificado e jogado no rio para distrair os peixes e evitar que eles comessem o resto do gado que atravessava as águas. Não resolve problema imediato nenhum —ao contrário.
A reforma terá efeito sobre o grosso do funcionalismo daqui a uns dez anos, a julgar pela rotatividade implícita (dadas aposentadorias e contratações). Não lida imediatamente com problema algum de despesa e, em parte relevante, no futuro. Por exemplo, explicita na Constituição que não se pode reduzir salário de carreiras típicas de Estado, o que inclui militares, juízes, procuradores etc., o puro creme do milho da burocracia. Apenas os militares, por exemplo, levam 27% da despesa federal com pessoal. Profissional de saúde e professor poderá levar talho no salário, porém.
Como vai ficar então a redução de salários prevista na emenda constitucional “emergencial” enviada pelo governo ao Congresso no final do ano passado? Foi para o vinagre, como queria Bolsonaro? Esse é um dos “gatilhos” para salvar o teto de gastos sem paralisar o governo. Isto é, se a despesa estourar o teto, por exemplo seriam reduzidos salários e jornadas dos servidores, dizia a PEC “emergencial”.
A PEC da reforma administrativa tem jabutis. Por exemplo, uma “emenda Bolsonaro”. O presidente poderá extinguir por decreto ministérios, fundações e autarquias (atualmente precisa de autorização do Congresso), entre outros empoderamentos. Ou seja, em tese, Bolsonaro poderia dar cabo do Banco Central, do Ibama, da Fiocruz ou mesmo de universidades. Hum.
Por falar em jabuti, a PEC tem também uma emenda de um “governo capitalista”, como um secretário qualificou o governo Bolsonaro na apresentação da reforma. O Estado fica proibido de “instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados [...] ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência”.
Para começar, a emenda acabaria com políticas de compras dos governos (aquelas que beneficiam fornecedores nacionais), entre outras tentativas de política industrial. Vaga do jeito que é, permite judicialização encrenqueira até da regulamentação de profissões. E “adoção de novos modelos” lá é texto para entrar em Constituição? Só faltou escrever na Carta que vão fazer um “call” para “alinhar” as “laws” com o “governo capitalista”. Reserva de mercado costuma dar besteira, mas é preciso refazer ou eliminar essa emenda.
A reforma tem princípios gerais razoáveis, como acabar com certos privilégios indevidos e estabilidades injustificadas, incentivar a produtividade e permitir remanejamentos racionais da força de trabalho pública (hoje imobilizada em funções determinadas com base em regulamentos medievais).
Em tese, a reforma diz respeito também ao funcionalismo de estados e municípios, muitos deles uma baderna perdulária.
No entanto, não mexe com a casta judicial ou similar (juízes e procuradores têm os maiores privilégios) e não toca na corporação que o militante Bolsonaro defende, os militares. Enfim, sem saber da regulamentação, a gente teme que se abra espaço para arbítrios e favoritismos de outra espécie.
Vinicius Torres Freire é jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).


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