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O Brasil já está isolado, diz o ex-embaixador Sérgio Amaral

Diego Viana entrevista para o Valor o experiente ex-embaixador e jurista, vale conferir, na íntegra, abaixo.


O jurista Sérgio Amaral assumiu a embaixada brasileira em Washington em 2016, poucos meses antes da eleição de Donald Trump à Casa Branca. Em três anos como embaixador, acompanhou a transição de governo que deu uma guinada radical na política americana para a China: da cooperação com Barack Obama para o confronto sob Trump.

O presidente republicano buscará ser reconduzido ao cargo, contra o democrata Joe Biden, que tem vantagem nas pesquisas. Essa eleição é decisiva para o futuro do confronto de potências, que, segundo Amaral, determinará a geopolítica do século XXI. Como a população americana favorece os esforços para conter a emergência chinesa, Biden não deve reverter por inteiro as políticas de Trump. Por outro lado, tenderá a buscar mais apoio multilateral, retornando à Parceria Transpacífica (TPP) e aproximando-se dos europeus.

“Estamos assistindo a um momento histórico: a emergência de uma nova superpotência. Pude ver de perto uma parte importante desse processo, que se passou em Washington”, diz. O Brasil, por sua vez, corre risco de ser apanhado no fogo cruzado, caso as potências não entrem em acordo; os demais países podem ser obrigados a escolher um lado.

Valor: Qual é peso da China na eleição?

Sérgio Amaral: A questão para o futuro, independentemente de quem ganhar, é se a sociedade americana está pronta a aceitar a China como um igual, um condômino da nova ordem. Essa questão está no fundo das tensões, não a guerra comercial, nem a tecnológica. A questão de fundo é que os objetivos são conflitantes. A China não vai abrir mão de sua emergência. Os EUA, até agora, não deram sinal de que podem aceitar esse condomínio com a China. Seja pela cooperação ou o conflito, a relação entre China e EUA vai plasmar as relações internacionais do século XXI. O governo Obama, como o governo [de Bill] Clinton, optou pela cooperação. O lema era: cooperar, mas cuidadosamente. Obama, ciente da ameaça que a China poderia ser, fez o movimento do “pivô para o Pacífico” [na política externa].

Valor: Trump reverteu essa política, adotando sanções e uma retórica agressiva.

Amaral: Trump fez diferente não só porque mudou tudo em relação a Obama, mas também porque, na mesma época, os americanos concluíram que os EUA tinham se equivocado ao acreditar que a evolução natural da China, após a abertura econômica de Deng Xiaoping [1904-1997], levaria à abertura política. Acredito que, no início de seu mandato, Xi Jinping quis promover uma maior abertura política, mas isso não ocorreu por diferentes motivos. Mas, se Trump ganhar a eleição, será que vai dobrar a aposta? Isso combinaria com seu temperamento, embora ele também tenha um lado pragmático. A escalada das tensões com a China poderia levar a um acidente, por exemplo no mar do Sul da China. Uma vez dentro desse processo, não se sabe onde vai acabar.

Valor: Esse acidente seria militar? Poderia dar origem a uma guerra?

Amaral: Seria militar, mas não creio em guerra, porque seria uma catástrofe mundial e existe a dissuasão nuclear. Se na Guerra Fria, que foi mais grave, a dissuasão evitou o conflito direto, agora tem mais razão. O atual conflito cobre um dos canais apenas, o comercial e econômico. Mas pode haver um acidente. No mar do Sul da China, navios militares de ambos os países chegaram a uma proximidade de 40 metros.

“Os ventos do mundo estão mudando. A questão ambiental é mais do que a proteção da natureza. É a utopia do século XXI”, diz Amaral

Valor: Que mudanças traria a vitória de Biden?

Amaral: A diferença não seria tão grande, a princípio. A contenção da China é apoiada por 70% dos americanos. Certamente veremos uma busca de alianças com outros parceiros, que ficaram marginalizados por algumas políticas de Trump, sobretudo a Europa. Se Trump tivesse buscado uma aliança com a Europa para a reforma da OMC, teria conseguido. Em vários temas, sobretudo sobre a China, Biden teria condições de levar adiante uma política menos agressiva. Especificamente no caso chinês, pode ter mais êxito na contenção, se fizer as parcerias que Obama vinha construindo.

Valor: Biden provavelmente tentaria retomar o TPP. Após quatro anos de Trump, é mais difícil?

Amaral: Biden tenderá a retomar alguns pontos da política externa de Obama, inclusive porque era parte dela. O multilateralismo será um deles. A busca da retomada do TPP será uma das iniciativas. Note que nenhuma alternativa ao TPP prosperou. O acordo com o Japão não foi adiante. A retomada do TPP tem boas chances.

Valor: Como isso nos afetaria? Na agenda ambiental, os EUA são um dos poucos países com que estamos alinhados. Sem Trump, estaríamos isolados.

Amaral: O Brasil já está isolado. [O presidente da França, Emmanuel] Macron apoia a iniciativa de criar a figura do ecocídio no Tribunal Penal Internacional. A rejeição ao Brasil nesse campo está se generalizando. Está ocorrendo uma convergência entre a UE e o programa de Biden em torno do Green New Deal. É uma nova visão de sociedade, que concilia a participação do Estado, do New Deal, com uma economia mais verde. Não acredito que a eleição de Biden traga hostilidade ao Brasil. Ele conhece bem política externa, conhece o país e a América Latina. Mas não ter hostilidade não quer dizer que ele não vai ser pressionado a tomar atitudes. Com a Europa e os EUA caminhando juntos, nossa situação pode ficar mais difícil.

Valor: O Brasil seria obrigado a reverter as políticas ambientais atuais?

Amaral: É uma decisão de política interna, mas a meu ver faria sentido. Seria uma maneira de tomar conhecimento de que os ventos do mundo estão mudando. A questão ambiental é mais do que a proteção da natureza. É a utopia do século XXI. Se na minha geração a utopia era social, hoje é ambiental. Esse movimento só vai se fortalecer. No setor empresarial, crescem os investimentos na economia verde. O Fundo Europeu de Recuperação tem €750 bi, que serão investidos sobretudo em tecnologias verdes.

Valor: O atual alinhamento completo aos EUA estaria ameaçado?

Amaral: Não podemos ser meros caudatários dos EUA. Temos que levar em conta, primeiro, os interesses nacionais. Devemos ter boa relação com Washington, mas não em detrimento de outros relacionamentos importantes. Hoje, estamos nessa situação, mas não chegou a hora da verdade. O ponto nevrálgico é a questão da tecnologia 5G, que foi adiada e envolve a Huawei.

Valor: Pode chegar a uma situação em que a decisão leve a romper com um ou com o outro?

Amaral: Acredito que não [em discurso nesta semana na assembleia da ONU, Bolsonaro sinalizou apoio a Trump]. Já há algum tempo, foi anunciado que a decisão sobre a tecnologia 5G seria técnica, preservando investimentos já feitos - 30% a 40% do setor de telecomunicações tem tecnologia Huawei atualmente.

Valor: O acordo entre o Mercosul e a União Europeia ainda tem salvação?

Amaral: Tem. Economicamente, interessa aos dois lados. Politicamente, também. A questão ambiental, hoje, é um obstáculo intransponível. Na Alemanha, por exemplo, sua representação no Parlamento Europeu tem 25% de deputados do Partido Verde. Espero que o Brasil não mantenha sua política ambiental dessa maneira por muito tempo. A escolha do [vice-presidente Hamilton] Mourão para comandar o Conselho Nacional da Amazônia Legal revela a disposição de parte do governo em avançar nesse tema, que é do interesse nacional.

Valor: Trump mudou radicalmente a política americana para a China, em relação ao que fazia Obama. Foi mera decisão pessoal?

Amaral: Trump foi informado de que a China já era a primeira potência comercial e em uma década seria a primeira potência econômica, avançando em tecnologias sensíveis que lhe dariam autonomia industrial e militar. Os empresários estavam divididos. Parte queria continuar no engajamento com a China, porque estavam ganhando muito. Outra parte não estava ganhando tanto e temia a aproximação. Em reunião de que participei, um militar disse: “Se é para mudar de política, que seja logo. Logo eles nos passarão inclusive na inteligência militar”. Aí começam as sanções comerciais e a escalada de tensão. Na campanha, Trump falava em tarifas de 43%. Mas esse não era seu objetivo final, e sim a contenção. A guerra comercial é a ponta do iceberg. Os EUA tomam medidas, e os chineses retrucam com retaliação sempre proporcional. Em certos casos, decibéis abaixo.

Valor: Os americanos falam também em “descolar” as economias. De que se trata?

Amaral: Da negociação comercial, a disputa passou aos investimentos. Através do Cfius (Comitê de Investimento Estrangeiro nos EUA), os EUA impuseram restrições ao investimento chinês em áreas sensíveis. Foram escalando também qualitativamente, pondo em questão o modelo da economia de empresas estatais, que consideram ter um subsídio implícito. Daí, passaram à tecnologia da Huawei e ao “decoupling”. Esta é a tentativa de reduzir a transferência de tecnologia para a China, separando, nas cadeias de valor, os componentes chineses. A ideia é fazer uma progressiva separação das economias nas áreas de maior sensibilidade.

Valor: Como entra nessa conta o acordo “Fase 1”?

Amaral: O acordo recebeu esse nome porque não avançou nas questões que não fossem comerciais. O déficit americano com a China era de US$ 350 bilhões. Para Trump, o comércio deve zerar: valores iguais dos dois lados. O acordo compreende vários setores, tratando de subsídios também, mas o grosso é comercial. A China se comprometeu a comprar US$ 32 bilhões de produtos do agronegócio americano. Aquilo que vinha comprando do Brasil, viu-se obrigada a comprar dos EUA. Esse é o ponto mais importante, para Trump: a área produtora de soja no Meio Oeste tem forte eleitorado trumpista. O acordo estabelece várias obrigações para a China, mas traz ao final uma frase segundo a qual todos os itens serão cumpridos em conformidade com as obrigações dos signatários na Organização Mundial do Comércio. Mas a OMC não reconhece tratados bilaterais. O acordo, embora seja amplo e contenha questões de interesse dos EUA, põe em questão o resto dos compromissos. É um modo chinês de negociar. Apesar de toda a tensão que prossegue hoje, os chineses em nenhum momento questionaram o cumprimento do acordo.

Valor: O Brasil é uma vítima colateral da disputa entre EUA e China?

Amaral: Para o Brasil, do ponto de vista econômico, o cerne do problema está no compromisso chinês de comprar produtos agrícolas americanos que competem com a nossa produção. Esse problema ainda não se manifestou pois, no início deste ano, os chineses compraram muito do agronegócio brasileiro, porque o preço estava bom e porque estavam fazendo estoques, preparando-se para um cenário de comércio mundial menos favorável.

Valor: E do ponto de vista mais amplo?

Amaral: Minha preocupação é que, se China e EUA não chegarem a um acordo, vão em direção a um confronto, e os demais países vão ter que escolher um lado. Temos interesses dos dois lados. Não só econômicos, mas também relações políticas. Não temos por que optar por um em detrimento do outro. Devemos tomar decisões em função dos interesses nacionais. Mesmo se a pressão for enorme, o Brasil tem condições de defender seus interesses. Não é um pequeno país, nem um país de grande sensibilidade estratégica. Pode apresentar seus pontos de vista para os dois lados. Se não conduzirmos bem nossos interesses diplomáticos, vamos perder espaços de autonomia, depois que toda a nossa política externa foi construída com esse objetivo. Poderíamos resolver isso nos associando a países com igual preocupação. Na nova ordem, haverá espaços de cooperação, em que os interesses soberanos dos países podem caminhar juntos ou divergir. Há países na Europa e na América Latina preocupados com isso. A opção por um ou outro lado será um fator de divisão da América Latina, que, em um mundo polarizado, é uma parceira importante.

Valor: A expressão “nova Guerra Fria” é adequada?

Amaral: Apesar de usada pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, não é tecnicamente correta. A Guerra Fria foi oposição entre dois polos de poder antagônicos. Mas o Departamento de Defesa qualifica a China como “competidora estratégica”. A Guerra Fria foi totalizante. Abrangeu todos os campos do relacionamento: era econômica, política, cultural, tecnológica. Na maior parte dos campos, a relação entre a China e os EUA é normal. A China vê sua emergência como natural. Tem sido moderada nas represálias. Não é por falta de munição. Não quer adotar represálias contra as empresas, porque muitas são aliadas nas discussões com o governo americano. E a presença delas na China é importante, porque trazem investimentos e promovem treinamento da mão de obra em tecnologias avançadas. Analistas perguntam por que os chineses não reagem às sanções. Mas a China opera diferente, com pouca retórica e grande visão estratégica. Fechou acordos com Rússia e Irã, área em que evitava se envolver. Dá os primeiros passos em seu “soft power”, com a distribuição de materiais na pandemia. A principal iniciativa é a “nova rota da seda”. Está ampliando seu escopo.

Valor: O renminbi caminha para ser moeda de reserva internacional, ameaçando o dólar?

Amaral: Sim, mas como possibilidade remota. Já existem mecanismos pelos quais é possível fazer comércio em moedas locais, inclusive entre real e renminbi, mas com o dólar como referência. A China já assinou acordos em moeda local com mais de 30 países. A dimensão das trocas em dólar ainda é maior. A China assinou um acordo com a Rússia para que esta última use o renminbi como moeda para reservas internacionais. Os russos se dispõem a aumentar a participação do renminbi em suas reservas para algo como 20%, o que já é considerável. A China vê essa questão com grande paciência.

Valor: Trump se manifestou negativamente em relação a instituições como a OMC, a OMS e a Otan. A China tem investido em diálogos paralelos às instituições multilaterais. Elas estão em risco?

Amaral: São cada vez mais relevantes, porque está claro que há temas da agenda internacional que não podem ser tratados dentro de um só país ou por um número reduzido de países, nem equacionados mediante a negociação bilateral, como Trump preconiza. Não se pode tratar do clima em poucos países, não é possível combater o crime organizado sem organização internacional. Não tem como enfrentar pandemias sem coordenação entre países. O esforço contra a covid-19 seria mais bem-sucedido se houvesse, desde o início, coordenação internacional. Tendo a acompanhar Macron quando diz que há questões que implicam o bem comum da humanidade e só podem ser tratadas em contexto multilateral. E há outras que dizem respeito ao conflito entre soberanias e não podem ser tratadas apenas no contexto multilateral.




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