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Iran Gonçalves Jr.: Crenças que distorcem dados estatísticos

Excelente texto do cardiologista e colunista do Valor, publicado sexta, 4/9, no caderno Eu&Fim de Semana, vale a leitura. Íntegra a seguir.

Amigo leitor, amiga leitora, nesta altura você já está apto a fazer uma entrevista para um Ph.D. em estatística médica. O que você já leu ou ouviu sobre letalidade, incidência, prevalência, médias móveis de 7, 14 ou mais dias, modelos Bayseanos ou não fez de você um especialista em epidemia de coronavírus de invejável currículo!
Some-se as infindáveis discussões sobre quando e como deve ser o retorno às aulas de todo e qualquer grupo etário, isso deve ser suficiente para habilitá-lo a uma vaga na Unesco.
Modelar a realidade a partir da análise dos dados que dela conhecemos é um dos grandes anseios do cientista. Modelar a realidade permitiria prever catástrofes naturais, descobrir a cura do câncer ou acertar com grande precisão o comportamento de determinada ação nas bolsas de valores.
Como é fácil constatar que qualquer desses exemplos é difícil de se conseguir, o cientista que realiza seu trabalho com seriedade coteja os dados estatísticos que dispõe com a realidade, mas nunca se esquece de que é a realidade, como ela se apresenta a nós, o que existe de fato.
Se o modelo é adequado para algumas predições, ótimo: se transforma em ferramenta útil. Se não é, o cientista retorna aos seus esforços para conseguir um melhor modelo. Os dados não podem ser distorcidos para produzir um modelo que se adeque à crença de cada um. Um ditado muito utilizado pelos cientistas é “Não torture os números, porque eles acabam dizendo a mentira que você quer ouvir...”.
As questões que se pretendem discutir dizem respeito ao ponto de evolução da epidemia no qual estamos e o que acontecerá com a diminuição do isolamento com o retorno às aulas presenciais.
O gráfico desta página é da respeitada Our World in Data, da Universidade de Oxford (ourworldindata.org) e revela o extenso platô que tem sido mantido no país no número de óbitos e no número de casos novos da doença.
No gráfico estão os dados de China, Japão, França, Itália, Espanha e Reino Unido, além de Brasil e EUA. Os dados estão atualizados até 31 de agosto e representam a média móvel de sete dias de casos novos e óbitos confirmados.
Repare que após os 30 primeiros dias de isolamento restrito, há queda rápida e consistente do número de óbitos e novos casos. O que sobra são surtos esporádicos onde a política de detectar novos casos e isolar contactantes funciona muito bem, para a saúde e para a economia.
Nos Estados Unidos, reabrir, diminuir isolamento e fazer campanhas contra o distanciamento social de modo precoce se manifestaram claramente nas curvas de novos casos e mortes após os primeiros cem dias. Estados tiveram que voltar atrás nas suas decisões tal o aumento de mortes e número de casos.
Aqui, apenas com políticas regionalizadas fomos subindo aos poucos e mantemos este padrão de platô que cada comentarista, médico ou não, interpreta como quer, mas as curvas são nitidamente diferentes daquelas vistas nos países que fizeram tudo corretamente.
O que segura este nosso platô, apesar do cansaço da população, é o isolamento social. Quanto mais gente protegida do vírus, menos ele se manifesta. As políticas de reabertura econômica devem levar estes fatos em consideração. A utilização de máscaras e as medidas de isolamento seguem fundamentais neste contexto.
É mais provável que se observe, à semelhança de outros países, um aumento do número de casos, que pode ser explosivo se realizado em um platô ainda tão elevado.
Wuhan é uma cidade do tamanho e de importância regional muito semelhantes à cidade de São Paulo, polo de transporte regional e nacional. Hoje em dia a vida segue praticamente normal em Wuhan.
A realidade deve ser observada cuidadosamente nesses grandes centros urbanos antes que modificações calcadas em modelagens sejam implementadas, daí o cuidado com liberações amplas de eventos esportivos, sociais e reabertura de escolas e universidades.
Wuhan é São Paulo e outros centros regionais também. Milhões de pessoas se deslocam para trabalhar e estudar em cidades contíguas.
O mais prudente é observar atentamente como a realidade está se comportando, e não ceder à tentação de torturar os números.
Iran Gonçalves Jr, médico intensivista, cardiologista do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e responsável pelo PS de Cardiologia do Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina, escreve neste espaço mensalmente


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