Pular para o conteúdo principal

Os erros da esquerda sobre Tropa de Elite

O autor destas Entrelinhas já estava se sentido um verdadeiro ET, mas finalmente viu o filme que todo mundo anda comentando. E achou Tropa de Elite excelente, bem acima da expectativa que tinha a respeito da fita. É violento? Sim, Tropa de Elite é violento, mas não mais do que Pixote ou Carandiru, por exemplo. Na verdade, a polêmica que o filme causou se deve muito menos à violência presente na tela do que a um certo esforço de setores da intelectualidade em estigmatizar Tropa de Elite e o protagonista, o capitão Nascimento, como uma fabricação da direita a serviço da visão linha-dura da política de segurança no país, especialmente no Rio de Janeiro. Ou, em outras palavras, que o filme é "fascista" porque estaria a indicar medidas de força como as únicas possíveis para o problema da violência.

Vamos por partes. Primeiro, dá para compreender este tipo de leitura do filme, mas ela é profundamente injusta. Na verdade, intelectuais de esquerda têm uma dificuldade grande para formular idéias razoáveis na área de segurança pública. Em geral tratam a questão a partir do que escreveu o filósofo Michel Foucault, autor de Vigiar e Punir – e mesmo isto está presente no filme, em uma passagem que se revela bastante irônica com Foucault. Portanto, para a maior parte da militância de esquerda, segurança é sinônimo de "aparelho repressor do Estado" (capitalista, naturalmente). Partindo deste referencial, de fato sobra muito pouca coisa além de pregar a melhoria das condições de vida dos mais pobres, como se isto pudesse significar necessariamente uma diminuição da violência. É até óbvio que a violência seja menor com a redução da desigualdade social, mas isto não é suficiente e deixa de fora fenômenos importantes como o tráfico de drogas. Afinal, que outra atividade – concessões de estradas em gestões do PSDB à parte – tem taxa de retorno tão alta? Em outras palavras, não basta apenas trazer perspectivas de educação e emprego para os pobres, porque o tráfico é uma máquina de fazer dinheiro a serviço de uma melhoria rápida e profunda na vida dos que com ele se envolvem, em que se pesem os riscos envolvidos na atividade.

A questão das drogas

A esquerda certamente se irrita com a forma com que os estudantes maconheiros e cheiradores são apresentados no filme. Mas o que se apresenta ali é uma caricatura, necessária para o que o diretor se propôs a discutir. Afinal, não é simplismo algum dizer que o sujeito que cheira cocaína está, em última análise, financiando um esquema criminoso que resulta nas mortes e verdadeiras carnificinas nos morros. Isto é fato, não é simplificação. Quem toma Red Label pode eventualmente matar alguém no trânsito, mas jamais terá fornecido recursos ao crime organizado (a menos, é claro, que compre a bebida de contrabandistas)...

No fundo há duas formas de ver as coisas quando o assunto é droga: ou se defende a liberação total e completa de todo tipo de substância tóxica, como defendem muitos economistas liberais da Escola de Chicago, sob a alegação de que o custo para combater o tráfico é mais alto do que os benefícios deste combate; ou se enfrenta o tráfico e se reprime o consumo. Uma parte da esquerda aceita bem a idéia da liberação das drogas e pode assim ter motivos para a indignação com a maneira como o filme trata os jovens consumidores. A parte da esquerda que concorda com a proibição dos tóxicos, porém, também reclama e se apega na questão dos "direitos humanos" – exige da polícia tratamento, digamos, mais civilizado com o tráfico e também alguma tolerância com os consumidores. A segunda postura, no fundo, é apenas uma fuga do debate real.

Herói para quem precisa


Voltando ao filme, o que o diretor José Padilha fez foi mostrar as várias faces de uma questão bastante complexa, qual seja a da violência urbana que em boa parte, mas não apenas, se deve ao tráfico de drogas. O capitão Nascimento, protagonista de Tropa de Elite, não é retratado de forma alguma como um super-herói: tem síndrome do pânico, bate em mulher, faz uso da tortura e é assumidamente um justiceiro.

Aliás, alguém já escreveu, em observação bastante perspicaz, que Padilha não utiliza certas artimanhas, muito comuns em filmes norte-americanos, para fazer o público simpatizar com o "herói": ninguém ameaça o filho do capitão ou mexe com a mulher dele. Pode-se acrescentar que também não há nenhum momento em que Nascimento sofra uma emboscada ou apareça em situação difícil da qual consegue se livrar milagrosamente.

Na verdade, o fato de boa parte do público aceitar o capitão Nascimento como herói diz mais a respeito de um estado de espírito presente na população, especialmente no Rio e São Paulo, do que é propriamente fruto da intenção do diretor. É evidente que para quem já sofreu ou sofre com a violência urbana, o modo de agir do Batalhão de Operações Policiais Especiais acaba sendo celebrado como solução, até porque na polícia convencional, como o filme deixa claro, poucos confiam...

Assim, não se pode dizer que o filme seja fascista, embora parte do público esteja ávida por soluções fascistas para a tragédia da violência brasileira. Quando o capitão Nascimento diz que que entra no Bope está indo para guerra, isto é apenas verdadeiro e não havia outra forma para o diretor de Tropa de Elite retratar tal realidade.

No fundo, do ponto de vista da esquerda, melhor do que discutir se o filme está a serviço da direitosa política linha-dura da segurança é tentar formular com alguma clareza o que deve ser uma política cidadã de segurança pública. Nas atuais circunstâncias, o autor destas mal traçadas entrelinhas duvida que fosse possível prescindir de gente como o capitão Nascimento e de uma tropa de elite tal e qual a do Bope. Por uma razão simples: há mesmo, nas duas maiores cidades do país e em alguns entrepostos ou municípios estratégicos para o tráfico, como Campinas, uma guerra urbana em andamento. Infelizmente, é esta a realidade hoje e dá para entender o motivo de tamanho entusiasmo com o Bope. Em tempos de paz quem sabe o Batalhão de Operações Policiais Especiais seja simplesmente desnecessário e o capitão Nascimento compreendido apenas e tão somente como um personagem de dias confusos que o país enfrentou. É pelo que nos resta torcer.

Comentários

  1. Desculpe, Luis, mas não consigo concordar com a sua argumentação de que seriam "erros da esquerda" acusar o filme de ser fascista.

    Quando assistia "Tropa de Elite" procurei, como sempre faço, ver o filme como qualquer outro espectador, deixando ele me levar, independente da minha ideologia política e de preconceitos.

    E, infelizmente, a construção narrativa adotada pelo diretor me levou a "torcer" para que o esquema de vingança do capitão Nascimento tivesse sucesso. O fato dele estar torturando e matando friamente e acima da lei ficou em segundo plano ali no calor dos fatos narrados. O que importava era ver ele e seus amigos vingando a morte do parceiro e matando os vilões monstruosos da favela.

    Ao adotar esse tipo de construção estética pobre e maniqueísta, "Tropa de Elite" não fica muito diferente de um filme como "Rambo II" e similares. O fato de eu achar tudo isso repugnante tem a ver com minha ideologia política, mas é fato que os manipulados pela mídia de direita e os fascistas (enrustidos ou não) estão todos torcendo pelo Nascimento e sua gangue de policiais - vide os comentários acima. E isso é grave.

    É por isso que eu acho que o diretor falhou em suas pretensões. E falhou feio. E estão aí a Veja e o Luciano Huck batendo palmas para o filme...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.

Postagens mais visitadas deste blog

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe