Pular para o conteúdo principal

Aborto abre crise no PSOL

O artigo abaixo, de Gilberto Maringoni, foi publicado no Correio da Cidadania, dirigido pelo ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio, candidato do PSOL ao governo de São Paulo em 2006. Maringoni integra o Diretório Nacional do partido e tornou pública a desavença com a presidente da agremiação, a ex-senadora Heloísa Helena, sobre a questão do aborto no Brasil. É bom lembrar que Helena já foi vaiada em um Congresso do PSOL por conta da defesa que faz da proibição da prática. Leia abaixo o artigo de Maringoni.


O que quer Heloísa Helena?

O PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL) ESTÁ SOB ATAQUE. A agressão não vem da direita, do governo ou da imprensa. Ela parte de quem, em tese, deveria ser a principal defensora das decisões da agremiação, sua presidente Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho. Derrotada democraticamente no debate sobre o direito ao aborto, no Congresso do partido, ela está, publicamente, investindo contra e desqualificando a posição coletiva. Se formos ao pé da letra, a ex-senadora está abrindo uma dissidência.

Vamos explicar o caso. Entre os dias 7 e 10 de junho último, o PSOL realizou seu I Congresso Nacional, no Rio de Janeiro. Foi o mais importante esforço coletivo que o partido realizou até hoje. Uma das principais resoluções, debatida e aprovada por ampla maioria, diz o seguinte:“O PSOL defende a descriminalização e legalização do aborto, conjugadas a uma política de saúde sexual e reprodutiva nos marcos do SUS (Sistema Único de Saúde), universal, pública, de qualidade”.

Como afirma uma nota aprovada pelo Diretório Regional de São Paulo, dois meses depois: “Além de esta resolução representar um grande avanço para o partido e de sintonizá-lo com uma bandeira histórica das lutas das mulheres brasileiras, ela integra um conjunto de deliberações que visam construir uma alternativa à esquerda em nosso país, baseada numa cultura política solidária, fraterna, democrática e coletiva”.

Pois bem. Qual não foi a surpresa da militância ao saber, pela imprensa, que a presidente do partido foi uma das principais oradoras no lançamento de um certo “Movimento Brasil sem Aborto", no último dia 1º de agosto, e de uma “Marcha Nacional da Cidadania em Defesa da Vida”, sobre o mesmo tema, quinze dias depois, em Brasília. Presentes , estavam alguns dos setores mais conservadores de diversas igrejas. Entre várias declarações, a ex-senadora afirmou que “A legalização do aborto não é uma proposta moderna. É conservadora e reacionária” (ver em www.cnbb.org.br/index.php?op=noticia&subop=16111 ).

Ninguém pode exigir que a ex-senadora Heloísa Helena contrarie suas legítimas convicções individuais e se engaje numa campanha pela descriminalização do aborto. Ao mesmo tempo, por suas responsabilidades no PSOL, ela não pode militar publicamente contra uma deliberação da maior instância partidária. Questiona-se aqui a possibilidade de um dirigente atacar externamente uma resolução interna.

Quatro diretórios estaduais – São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Ceará – aprovaram notas protestando contra a atuação da presidente do PSOL e solicitando explicações à Executiva Nacional. Embora a ex-senadora tenha ventilado suas opiniões abertamente, os quatro diretórios decidiram não fazer um debate público.

Executiva ignorou assunto

Após o Congresso, a Executiva Nacional reuniu-se uma única vez e não tratou do assunto. Mesmo assim, após Heloísa Helena ter recebido as mensagens dos estados, vários militantes acharam que ela, sensível ao apelo, acataria a resolução congressual.

Não é o que vem acontecendo. No último dia 10 de outubro, a ex-senadora participou de uma audiência pública da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Segundo o portal da instituição, a pauta era a “Descriminalização do aborto provocado pela própria gestante ou com o seu consentimento (Projeto de Lei 1135/91). Atualmente, a legislação prevê detenção de um a três anos para esses casos”. Na sessão, a dirigente ampliou sua militância anti-partidária e anti-feminista. Segundo o noticiário da Câmara, “a ex-senadora Heloísa Helena afirmou que o aborto não pode ser classificado como um dos principais temas de saúde pública, pois considera que a quantidade de mortes provocada pela prática é muito pequena”.

Mais adiante, ela declarou que elevar o assunto ao topo dos problemas de saúde pública é uma "farsa técnica e uma fraude política". (www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.html?pk=111708&searchterm=heloisa )

É lamentável que uma dirigente socialista externe posições tão obscurantistas e atrasadas, aliando-se nessa empreitada a setores sociais reacionários. Com tal gesto, Heloísa Helena coloca-se à direita do Ministério da Saúde e da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, que emitiram opiniões favoráveis ao direito à interrupção da gravidez.

O pior é que, ao fazer isso, a ex-candidata à presidência da República desmoraliza o que centenas de delegados de todo o Brasil aprovaram, após uma extenuante jornada de debates. O gesto da presidente do PSOL é individualista, autoritário e desmoraliza esforços para a construção de uma nova cultura política de esquerda.

Tradição patrimonialista

Infelizmente, é larga a tradição brasileira de chefes partidários colocarem-se acima dos coletivos. Isso vem do período imperial, no qual oligarcas regionais dominavam arremedos de agremiações e faziam o que bem entendiam. No século XX, incontáveis caciques políticos abusaram dessa prática. Suas raízes estão no patrimonialismo das classes dominantes, pródigas em enxergarem a coisa pública como extensão de seus domínios. O PSOL não precisa de chefes. Precisa de dirigentes democráticos e socialistas, que rompam com os vícios da política tradicional.

Este tema deve ser um dos principais da pauta do Diretório Nacional do partido, ainda não reunido, quatro meses após o Congresso. Lá, deve-se oferecer à presidente do PSOL duas opções:

1. Não atacar mais publicamente decisões partidárias ou;

2. Licenciar-se de suas funções dirigentes enquanto desejar fazer sua pregação pública contra o partido.

Deve-se debater livremente e depois votar. É o mais democrático.

Uma observação final. Foi dito linhas atrás que esta é uma questão interna. Este artigo só está sendo publicado fora das instâncias partidárias pelo fato de a ex-senadora ter decidido fazer uma disputa pública em matéria na qual foi derrotada internamente. Por larga margem.
Gilberto Maringoni é membro do Diretório Nacional do PSOL.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And

OCDE e o erro do governo na gestão das expectativas

O assunto do dia nas redes é a tal negativa dos Estados Unidos para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Enquanto os oposicionistas aproveitam para tripudiar, os governistas tentam colocar panos quentes na questão, alegando que não houve propriamente um veto à presença do Brasil no clube dos grandes, a Série A das nações. Quem trabalha com comunicação corporativa frequentemente escuta a frase "é preciso gerenciar a expectativa dos clientes". O problema todo é que o governo do presidente Bolsonaro vendeu como grande vitória a entrada com apoio de Trump - que não era líquida e certa - do país na OCDE. Ou seja, gerenciou mal a expectativa do cliente, no caso, a opinião pública brasileira. Não deixa de ser irônico que a Argentina esteja entrando na frente, logo o país vizinho cujo próximo governo provavelmente não será dos mais alinhados a Trump. A questão toda é que o Brasil não "perdeu", como o pobre Fla-Flu que impe