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Pausa literária

Abaixo, artigo do autor do blog para o Jornal de Resenhas.


Em ritmo de making off
Teoria e prática do jornalismo investigativo

VIDA DE ESCRITOR
Gay Talese
Tradução: Donaldson M. Garschagen
COMPANHIA DAS LETRAS
512 p., R$ 59,00


A recente decisão do Supremo Tribunal Federal de acabar com a exigência de diploma para o exercício do jornalismo só reforça a necessidade de ler Gay Talese. Qualquer livro do jornalista norte-americano, um dos pioneiros do new journalism, merece a atenção de quem deseja abraçar a agora desregulamentada profissão. Na verdade, profissionais experientes também aprendem com Talese e mesmo quem não tem o menor interesse por essa área certamente vai se encantar com o estilo preciso e envolvente do repórter.
Se a indicação for para um jovem que pretende um dia se tornar jornalista, Vida de escritor é com certeza o melhor livro para começar a conhecer a carreira. Paradoxalmente, é a sua última obra, publicada originalmente em 2006. E é o melhor início não por ser uma autobiografia – no fundo, nem é bem disso que se trata –, mas porque apresenta praticamente todo o restante da obra de Gay Talese em ritmo de making off, com passagens importantes para uma melhor compreensão de seus outros escritos.
Na verdade, Vida de escritor é a segunda parte de uma triologia iniciada em 1992 com Unto the sons (ainda não traduzido no Brasil). Se no primeiro volume Talese procura as suas origens ao narrar a saga da imigração italiana nos EUA, Vida de escritor é dedicado ao seu trabalho – de jornalista e, é claro, escritor. O terceiro deverá ser sobre o casamento do autor, de mais de 50 anos e que aparece discretamente no final do livro.

Autobiografia não convencional

Talese começou cedo, ainda na faculdade, no Alabama, no final dos anos 1940, fazendo reportagens e editando o jornal universitário. Logo após o término do curso, em 1953, ingressou como estagiário no The New York Times, onde trabalhou por dez anos, sempre na função de repórter. Essas e todas as demais informações factuais relevantes sobre a carreira do autor do livro aparecem em Vida de Escritor, mas não são apresentadas de maneira convencional, cronológica, como em uma autobiografia tradicional. Ao contrário, a graça toda do livro é a forma que ele encontra para contar sua história.
Os leitores de autobiografias sabem que em geral os autores seguem a tal “lei de Ricúpero” – “o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde” –, mas este não é o caso de Talese, que fez dos fracassos o fio condutor de sua narrativa. Fracassos, é bom que se diga, exaustivamente apurados, com o rigor que é a marca de toda a sua obra. A história da jogadora de futebol chinesa que errou a cobrança do pênalti decisivo em uma final de Copa do Mundo, contra os EUA, abre e encerra um livro que traz outros tantos saborosos casos de personagens nada bem-sucedidos – tanto quanto, aliás, as tentativas do autor de escrever sobre eles. Um prédio em que misteriosamente tudo dá errado; a trajetória de John Bobbitt, o fuzileiro que teve o pênis decepado por sua mulher Lorena e o livro sobre restaurantes que jamais foi publicado (mas consumiu anos de preparação) são alguns dos temas de Vida de Escritor que trazem o fracasso como foco central.

Os fracassos

Em nenhum momento, porém, há qualquer tentativa de martirização do autor em relação aos fracassos – seus ou dos personagens –, muito menos o sentimento de autocomiseração. Não é este o seu objetivo. As coisas simplesmente aconteceram, e ao longo do livro o leitor vai sendo informado com detalhes minuciosos não apenas da apuração que foi realizada em cada um dos casos como também do método de trabalho de Talese.
Está tudo lá, o rigor para apurar e relatar os fatos, o tempo dispensado à investigação de detalhes e a maneira de construir o texto, que lembra o processo de amadurecimento dos melhores vinhos – Talese escreve a lápis, em papel amarelo, bate a massa de texto que produziu à mão em uma de suas máquinas elétricas ou mesmo no computador (neste caso, imprime o que escreveu) e depois larga o material descansando, às vezes por anos, até reler tudo e, invariavelmente, reescrever mais algumas vezes até o texto final.
Mas o que leva, afinal, um autor reconhecido como um dos maiores jornalistas do planeta se fixar justamente nos fracassos? A resposta tem tudo a ver com o exercício do jornalismo, não porque nesta profissão se erra mais do que acerta, mas porque muitas histórias (e horas de trabalho investigativo) simplesmente não se sustentam, não resultam em reportagens “publicáveis”. E isto vale até mesmo para um Gay Talese, como o leitor poderá perceber ao longo do livro.
No fundo, ao eleger o fracasso como fio condutor da sua própria história em Vida de escritor, ele brinca com a outra característica tão presente no jornalismo – a arrogância de quem se acha mensageiro da verdade absoluta.
Jornalismo é antes a busca da verdade do que a crença em estar revelando a verdade. E isto fica claro no livro quando o leitor percebe que o autor praticamente não emite opiniões, apenas conta histórias. Não há crença em Vida de Escritor, mas há muita fé na apuração, no trabalho suado de investigação dos fatos. Uma diferença crucial.
No posfácio da edição brasileira, Mario Sergio Conti informa que Vida de escritor não foi bem recebido nos EUA. A crítica norte-americana não gostou, provavelmente o público também não. Dá para entender. Americanos preferem finais felizes, está aí Holywood que não me deixa mentir, e em geral só gostam de fracassados quando eles são vítimas de alguma maldade perpetrada por agentes do mal ou se o flagelo acontece em nome de uma causa nobre.
Nada na Vida de escritor de Gay Talese é assim, não há final feliz nem os fracassos ocorrem para redimir uma causa maior ou se dão em nome do sonho americano. As coisas simplesmente aconteceram. E Talese investigou. Parece simples, e de fato é. Escrito por Gay Talese, tudo é sempre muito preciso e envolvente. Como deveriam ser todos os textos jornalísticos.

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