Como sempre, Pondé mandando bem em sua coluna de segunda na Folha. Um trecho: Mas, nem por isso, não temos nós as nossas razões: desemprego, imaturidade crescente —até na política, nos dois espectros ideológicos—, longevidade e solidão, devastação da privacidade, aceleração do narcisismo como cultura empoderada, chatices em geral como programa de reflexão sistemática, enfim, um bode.
E a íntegra a seguir:
Poucos dias atrás, fui indagado por uma jovem aluna sobre como evitar o medo de não ter emprego no futuro. Os jovens, na sua maioria, estão em pânico com o mundo do trabalho que enfrentarão. Não confunda seu filho na Europa brincando de evoluído —graças à grana que você tem— com o resto do mundo. Poucos anos atrás, num programa de rádio com jovens, em que eles escolheram a pauta, discutimos por que, afinal, eles sentem tanto medo.
Iniciei minha resposta à jovem aluna dizendo que temos medo porque temos muitas razões para tê-lo. Se uma jovem tem medo hoje do mercado de trabalho futuro, ela tem toda razão em ter medo.
O mercado de trabalho futuro se delineia um tanto apavorante. Para além das mentiras do povo da inovação e seus orgasmos com impressoras 3D, ninguém tem a mínima ideia de como evitar a devastação causada pela revolução cognitiva em curso: a IA vai devastar o mercado de trabalho sim. Claro que nos adaptaremos, mas, como todo mundo que entende um pouco de adaptação no paradigma darwiniano, sabemos que muitos perecerão no processo. A espécie sobrevive, não necessariamente eu.
Quem viveu na Europa entre 1939 e 1945, pra ficar num clichê, tinha mais razões para ter medo do que nós agora.
Mas, nem por isso, não temos nós as nossas razões: desemprego, imaturidade crescente —até na política, nos dois espectros ideológicos—, longevidade e solidão, devastação da privacidade, aceleração do narcisismo como cultura empoderada, chatices em geral como programa de reflexão sistemática, enfim, um bode.
Mas há um detalhe interessante no modo de vivermos o medo nesses tempos contemporâneos ridículos.
O sociólogo húngaro-britânico Frank Furedi, no seu terceiro livro dedicado ao medo (não há nada traduzido no Brasil dele) “How Fear Works: Culture of Fear in the Twenty-First Century” (como o medo funciona, cultura do medo no século 21), de 2018, identifica, entre outras grandes sacadas em termos de comportamento contemporâneo (sua especialidade sociológica), uma mudança na proposta de como lidarmos com o medo: antes, na cultura ocidental, o medo estava a serviço da coragem ou da salvação da alma, agora, o medo está a serviço de si mesmo porque tanto coragem quanto salvação da alma estão fora de moda. A moda mesmo é ser covarde chique.
O medo se tornou um oceano em si, inundando a vida, sem qualquer virtude que lhe seja oposta. A ideia é, apenas, oferecer fórmulas supostamente científicas de como lidar com ele. O medo perdeu sua estatura na dinâmica ética da vida. Virou um lixo afetivo a nos afogar cada vez mais. Tragamos o grande Aristóteles para a conversa.
Na ética de Aristóteles, a virtude é um comportamento entre dois vícios opostos, que deverá se fazer hábito, ou uma segunda natureza, pela repetição contínua. Não se trata do papinho de busca do equilíbrio comum no budismo de butique (que não é o budismo de verdade).
Fiquemos no caso da coragem, uma das maiores virtudes para Aristóteles (a maior das virtudes práticas para ele é a justiça).
A coragem é um comportamento que se constitui num embate contínuo entre os vícios opostos, temeridade e covardia. O primeiro é a não avaliação dos riscos, o segundo é o derretimento diante dos riscos. A coragem é uma força (a palavra “aretê” em grego deita raízes na ideia de força) que resiste tanto à inconsciência para com os riscos de uma determinada situação quanto à paralisação da ação pelo “excesso” de consciência desses mesmos riscos.
A virtude vai se construindo nesse embate, se fortalecendo, e ao mesmo tempo, dando sentido ao combate: os riscos são muitos na vida, e, ao final, sempre perdemos a batalha. Um combate sem virtude é um combate sem sentido.
Nós, como idiotas da ética que somos, retiramos a coragem da equação e pusemos a noção de estratégia pragmática de sucesso no seu lugar.
O resultado é que buscamos fórmulas e dicas pra enfrentar o medo. Não há nenhuma que preste pelo simples fato de que temos todas as razões do mundo para ter medo. Tornamo-nos uma espécie apavorada e paranoide.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
E a íntegra a seguir:
Poucos dias atrás, fui indagado por uma jovem aluna sobre como evitar o medo de não ter emprego no futuro. Os jovens, na sua maioria, estão em pânico com o mundo do trabalho que enfrentarão. Não confunda seu filho na Europa brincando de evoluído —graças à grana que você tem— com o resto do mundo. Poucos anos atrás, num programa de rádio com jovens, em que eles escolheram a pauta, discutimos por que, afinal, eles sentem tanto medo.
Iniciei minha resposta à jovem aluna dizendo que temos medo porque temos muitas razões para tê-lo. Se uma jovem tem medo hoje do mercado de trabalho futuro, ela tem toda razão em ter medo.
O mercado de trabalho futuro se delineia um tanto apavorante. Para além das mentiras do povo da inovação e seus orgasmos com impressoras 3D, ninguém tem a mínima ideia de como evitar a devastação causada pela revolução cognitiva em curso: a IA vai devastar o mercado de trabalho sim. Claro que nos adaptaremos, mas, como todo mundo que entende um pouco de adaptação no paradigma darwiniano, sabemos que muitos perecerão no processo. A espécie sobrevive, não necessariamente eu.
Quem viveu na Europa entre 1939 e 1945, pra ficar num clichê, tinha mais razões para ter medo do que nós agora.
Mas, nem por isso, não temos nós as nossas razões: desemprego, imaturidade crescente —até na política, nos dois espectros ideológicos—, longevidade e solidão, devastação da privacidade, aceleração do narcisismo como cultura empoderada, chatices em geral como programa de reflexão sistemática, enfim, um bode.
Mas há um detalhe interessante no modo de vivermos o medo nesses tempos contemporâneos ridículos.
O sociólogo húngaro-britânico Frank Furedi, no seu terceiro livro dedicado ao medo (não há nada traduzido no Brasil dele) “How Fear Works: Culture of Fear in the Twenty-First Century” (como o medo funciona, cultura do medo no século 21), de 2018, identifica, entre outras grandes sacadas em termos de comportamento contemporâneo (sua especialidade sociológica), uma mudança na proposta de como lidarmos com o medo: antes, na cultura ocidental, o medo estava a serviço da coragem ou da salvação da alma, agora, o medo está a serviço de si mesmo porque tanto coragem quanto salvação da alma estão fora de moda. A moda mesmo é ser covarde chique.
O medo se tornou um oceano em si, inundando a vida, sem qualquer virtude que lhe seja oposta. A ideia é, apenas, oferecer fórmulas supostamente científicas de como lidar com ele. O medo perdeu sua estatura na dinâmica ética da vida. Virou um lixo afetivo a nos afogar cada vez mais. Tragamos o grande Aristóteles para a conversa.
Na ética de Aristóteles, a virtude é um comportamento entre dois vícios opostos, que deverá se fazer hábito, ou uma segunda natureza, pela repetição contínua. Não se trata do papinho de busca do equilíbrio comum no budismo de butique (que não é o budismo de verdade).
Fiquemos no caso da coragem, uma das maiores virtudes para Aristóteles (a maior das virtudes práticas para ele é a justiça).
A coragem é um comportamento que se constitui num embate contínuo entre os vícios opostos, temeridade e covardia. O primeiro é a não avaliação dos riscos, o segundo é o derretimento diante dos riscos. A coragem é uma força (a palavra “aretê” em grego deita raízes na ideia de força) que resiste tanto à inconsciência para com os riscos de uma determinada situação quanto à paralisação da ação pelo “excesso” de consciência desses mesmos riscos.
A virtude vai se construindo nesse embate, se fortalecendo, e ao mesmo tempo, dando sentido ao combate: os riscos são muitos na vida, e, ao final, sempre perdemos a batalha. Um combate sem virtude é um combate sem sentido.
Nós, como idiotas da ética que somos, retiramos a coragem da equação e pusemos a noção de estratégia pragmática de sucesso no seu lugar.
O resultado é que buscamos fórmulas e dicas pra enfrentar o medo. Não há nenhuma que preste pelo simples fato de que temos todas as razões do mundo para ter medo. Tornamo-nos uma espécie apavorada e paranoide.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.
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