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Dica da semana: Mais Preta Que Nunca, stand up comedy

Nesta semana, a dica é da jornalista Denise Brito, colaboradora do blog. Boa leitura.

Histórias de uma estrela de carne e osso 

Das histórias contadas por uma celebridade, filha de um gênio da MPB e que desde o nascimento conviveu com os mentores da Tropicália, talvez se espere cenas de glamour do mundo artístico. Ocorre o inverso, no entanto, em boa parte dos casos relatados pela cantora, atriz e apresentadora Preta Gil, no monólogo autobiográfico e musical, o stand up comedy “Mais Preta Que Nunca”, atualmente em cartaz no Rio de Janeiro. Várias histórias contadas de sua trajetória de vida permitem, de algum modo, a qualquer um se identificar e, talvez, apreciar o estilo próprio da artista lidar com elas.
Da primeira infância à vida adulta emergem situações que poderiam se converter em dramas para uma criança pequena, como o bullying na escola e a discriminação racial. Situações que poderiam deixar marcas dolorosas, não estivesse presente na cantora desde cedo ingredientes úteis para desmontar cenários desfavoráveis a ela, como personalidade forte, autoconfiança e a prontidão para fazer shows e provocar aplausos.
Ela conta que desde cedo teve presente a convicção de seu valor. Aos 4 anos de idade, essa característica foi reforçada pelo hit “Perigosa”, gravado pelas “Frenéticas” (1977) que, estourado nas rádios, ela ouvia e repetia, dia e noite. Como ela diz, “sei que eu sou bonita e gostosa” era uma espécie de canção de ninar, que embalou sua infância com a mensagem de "eu posso tudo".
 A mudança da família de Preta de Salvador (BA) para o Rio de Janeiro (RJ) rendeu várias histórias sobre o período de adaptação. Logo no primeiro dia de aula, foi apresentada à turma pela professora como uma “coleguinha nova de nome estranho. Preta Maria, né..., mas que diferente...” Perguntada se já estava alfabetizada, a novata já se levantou, orgulhosa do próprio conhecimento, pronta para recitar o abecedário em autêntico e sonoro baianês. E mandou: “A, b, c, d, ê, fê, gê, lê, me, ne, q, re, si...”.  Não. Aquilo não estava correto, disse a professora. A menina teria de repetir de ano, voltar à 1º série par a aprender o alfabeto certo.
Contou o ocorrido em casa e, sendo filha de Gilberto Gil e de uma leoa chamada Sandra Gadelha, “Drão”, no dia seguinte a mãe estava na escola pondo ordem nas coisas. “Olhe aqui, pró: Preta não vai repetir. Preta fala certo. Ela é filha de nordestino. Aprendeu assim e você vai ter que aguentar Preta, entendeu?" Virando para a filha: "E você, Preta, você vai pra escola e dê o seu showzinho.” A filha não entendeu o que significava o tal showzinho. Talvez vestir uma roupa de artista, como as de Gal, esfuziantes, que ela sempre via.
No dia seguinte, a aluna nova era o assunto no recreio. A fofoca corria solta em grupinhos que olhavam para ela. O que uma criança faz em uma situação de hostilidade e exclusão pelos colegas? No caso desta criança, ao perceber o cenário, foi até as meninas fuxiqueiras e ouviu: “Você é a menina esquisita que fala errado, não é”? Não, respondeu, ela falava certo. “Ah, fala um pouco pra gente ver.”  E ela, já saindo da toca: “Falo, sim. Mas deixa juntar mais gente.” Quando juntou uma plateia maior, veio a lembrança do conselho da mãe. Subiu então em um tamborete e deu seu showzinho recitando o abecedário nordestino com sonoridade mais carregada ainda, improvisando uma coreografia para cada letra. Foram chegando mais e mais crianças, aumentando o entusiasmo da performer que ao final foi aplaudidíssima em um curioso episódio de conversão de bullying escolar numa apresentação artística.
As intolerâncias aparecem em histórias de homofobia e racismo.  Uma delas quando Preta ainda era criança e achava o máximo andar de condução escolar, até que fez o pedido à mãe e foi atendida. Como a motorista do veículo era mãe de uma coleguinha, ela pediu que a avisasse, passaria a usar o transporte dela. No dia seguinte, a resposta chegou pela amiguinha. “Minha mãe disse que filho de macaco não entra no carro dela.” A inocência protegeu a menina que ouviu e não entendeu o significado das palavras. Em casa, contou o ocorrido para a mãe, que se recuperava de uma fratura com a perna engessada. Para surpresa de Preta, no dia seguinte sua mãe estava esperando por ela na saída, com as respectivas muletas. “Cadê a tia da condução?”
A filha percebeu a cena, via o sol reluzindo no alumínio das muletas da mãe, como se fossem raios chispando. “Acho que hoje ela não vem não...”  Inútil. Logo alguém apontou o veículo e Preta assistiu à cena da mãe abordando a motorista escolar em uma espécie de papo reto. “Foi a senhora quem disse que ‘filho de macaco’ não entra no seu carro, foi? Pois a partir de hoje não entra mais filho de puta (golpeando o carro com as muletas por todos os lados), não entra filho de vaca, nem filho de porra nenhuma no seu carro”.
Mais tarde, na adolescência um caso protagonizado por Preta no colégio dava pista da causa que viria defender, a dos direitos dos LGBTs. Em uma aula, a professora discorria sobre problemas relacionados ao homossexualismo, afirmando tratar-se de uma doença que podia ser curada. Sentada ao lado da colega Amora Mautner (hoje diretora de televisão), ela levantou a mão para falar. “Professora, é o seguinte: ‘o meu pai namora o pai dela. A minha mãe namora a mãe dela. E a gente se namora”. E deram um chupão de língua no meio da sala. Tensão no ambiente, professora sem ação. No dia seguinte, na presença das duas mães chamadas pela direção da escola, as alunas ouviram a diretora ponderar que talvez a escola não atingisse “o nível de modernidade” das duas moças e que seria melhor encontrarem outra escola. 
As duas garotas consideraram o máximo a experiência de “ser convidada” pela diretora a se retirar da escola. Muito tempo depois alguém explicou a elas que se tratara de uma expulsão. “Hoje eu sinto muito orgulho de ter sido expulsa de uma escola aos 16 anos por beijar uma colega em protesto à homofobia”.
Hoje aos 45 anos de idade, mãe de Francisco, 24, e avó de Sol, 4, Preta comenta tranquila o forte abalo em sua autoestima provocado por um episódio em sua carreira e que a levou a repensar valores e convicções. Em 2003, entusiasmada com o lançamento de seu primeiro álbum (Preta Gil - Prêt à Porter), posou nua para a capa do disco. Muito confiante e satisfeita com o trabalho artístico, logo foi mostrar o resultado ao pai. Para sua surpresa, o viu soltar um lacônico “desnecessário, Preta...”.  Mais tarde, diante de reações duras que enfrentou ao lançar o disco no mercado, compreendeu a atitude do pai como a de um sábio querendo protegê-la, antevendo o que viria. Ela conta ter lançado o disco achando que estava abafando, que era bonita e gostosa, até que vieram muitas críticas, de muito conservadorismo e a capa do disco virou um escândalo.
A partir disso, entrou em um momento de questionamento sobre sua real aparência, ser atraente ou não, sobre ter ou não o direito de posar nua para o disco e até querer emagrecer para conseguir a aceitação das pessoas, parar de ser alvo de críticas. O período de reflexão rendeu amadure cimento à artista que extraindo o melhor das adversidades mostra que abalos a autoconfiança podem servir para reforçá-lo em novas bases, mais maduras e consistentes.
Por Denise Brito em 15/11/19.




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