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Nove anos depois, meu pai...

A morte do Thiago Nery acabou fazendo o autor destas linhas, entrelinhas, procurar o texto que leu na missa de sétimo dia da morte do seu pai, o diretor do Colégio Santa Cruz, no qual Thiago estudava..
E publico então pela primeira vez o texto na íntegra, tal como li na missa, quase dez anos atrás. Os erros são todos meus, os acertos são todos deles, desculpem qualquer coisa. Ainda me emociona, dez anos depois.

Na sexta-feira passada, o meu pai, depois de retomar uma conversa que havíamos tido dias antes, sobre literatura, imprimiu algumas poesias e um aforismo que estavam arquivados em seu computador e me deu as cópias. Uma das poesias, de autoria de Manuel Bandeira, leva o título de Consoada e diz o seguinte:
Quando a Indesejada das gentes chegar 
(Não sei se dura ou caroável), 
talvez eu tenha medo. 
Talvez sorria, ou diga: 
- Alô, iniludível! 
O meu dia foi bom, pode a noite descer. 
(A noite com os seus sortilégios.) 
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, 
A mesa posta, 
Com cada coisa em seu lugar. 

Meu pai deixou o campo lavrado, a casa limpa, cada coisa em seu lugar. Mas muito mais importante do que isto foi ter nos ensinado a lavrar o campo, limpar a casa e deixar a mesa posta, com as coisas todas em seus lugares. 
Para cada um de nós, que estivemos ao lado dele ao longo de toda uma vida, este é o legado mais forte, mais presente. Para ensinar, é preciso aprender, e meu pai tinha uma capacidade admirável de aprender ouvindo o outro, entendendo o que era preciso explicar. Ele também aprendeu lendo, pesquisando, foi um curioso por natureza, mas este dom de escutar e perceber as questões dos seus interlocutores era algo muito próprio dele. Para cada filho, amigo, colega havia uma conversa, um interesse particular, uma palavra generosa. 
Eu gostaria de dar um testemunho pessoal. Na minha relação com meu pai, sempre conversávamos muito, discutíamos sobre quase tudo que havia para ser discutido. E muitas vezes eu gostava de testar os meus argumentos, quando ia escrever um texto, um artigo. Ele era um debatedor sempre atento e ágil, usava a lógica para reafirmar suas posições, de maneira que se eu conseguisse convencê-lo, tinha certeza que os meus argumentos precisavam ser fortes e consistentes. Bem, devo confessar que só consegui realmente convencer o meu pai umas duas ou três vezes...
Voltando ao poema, pode parecer paradoxal, mas na verdade meu pai se foi com a casa em ordem, porém em construção. Aqui neste Colégio, no extremo oposto deste Teatro que era um de seus grandes orgulhos, correm as obras de um novo pavilhão. E muito mais importante do que a iniciativa de melhorar as instalações físicas desta escola, o que esteve em permanente construção, nesses anos todos que ele dedicou ao Santa Cruz, foram os esforços para aprofundar os ideais dos padres Corbeil e Charbonneau de oferecer aqui uma educação de fundo humanista, voltada para a formação de cidadãos éticos e atuantes, com consciência crítica do mundo em que vivemos. 
A contribuição que meu pai deu para esta comunidade do Colégio Santa Cruz certamente não termina com o seu desaparecimento. Ele deixou seu legado, mas deixou também muitas tarefas. Afinal, as obras continuam e a vida segue seu curso, o futuro é hoje.

Já estou com muita saudade do meu pai. E carrego também comigo um sentimento forte de orgulho dele. Nos últimos quatro anos e meio, ele nos revelou uma outra característica, bonita de se ver. A obstinação com que lutou pela vida e a aproveitou, mesmo nas adversidades; a firmeza com que enfrentou as privações que a doença foi lhe impondo eram comoventes para todos os que acompanharam as batalhas que travou. Só que ele não lutou sozinho. Ao lado do meu pai havia uma verdadeira tropa de elite, corajosa e competente, comandada pelo doutor Antonio Carlos Buzaid.
Em nome da minha mãe e dos meus irmãos, eu quero aqui fazer um agradecimento muito especial aos doutores Buzaid, Rodrigo Guedes e demais assistentes. A Antonio Carlos Buzaid, em particular, gostaria de dizer que foram dois os guerreiros, dois os gigantes. Obrigado, doutor, pela parceria.

Gratidão, aliás, é um sentimento que nós, da família, temos por muita gente. Nesses últimos anos, e na verdade ao longo dos 11 anos da luta contra a doença, meu pai sempre esteve acompanhado e cercado de muita energia positiva. 
Aqui no Santa, eu gostaria de personificar a nossa gratidão em relação a todos vocês, diretores, professores, funcionários e alunos, na figura do Valdir Aparecido dos Santos, que esteve tão próximo em todos os momentos, bons e ruins, na dor e na alegria, diariamente. Como diria o Paulo Mendes Campos, “o que a gentileza gentilmente oferece, agradecimento nenhum pode pagar”. 

Eu gostaria de finalizar com um breve texto, do livro Encontro Marcado, que meu pai leu bem jovem, de uma sentada, viajando de ônibus de São Paulo para o Rio de Janeiro. Texto, aliás, de outro mineiro –  e meu pai era filho de mineiro –, o Fernando Sabino, autor que ele me recomendou cedo, para aprender a gostar de ler. 

De tudo na vida ficam 3 coisas:
A certeza de que estamos sempre começando 
A certeza de que precisamos continuar 
E a certeza de que seremos interrompidos antes de terminar.
Portanto, devemos fazer da interrupção um caminho novo
da queda, um passo de dança 
do medo, uma escada 
do sonho, uma ponte 
E da procura, um encontro

Luiz Eduardo, muito obrigado por tudo. Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar.

Luiz Antonio Magalhães, na madrugada de  27/10/2010, um dia após o falecimento do LECM.
Lido na missa de sétimo dia do Luiz Eduardo, meu pai.




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