Vale a leitura do colunista da Folha de São Paulo, Contardo Calligaris. Escreve o autor: estou convencido de que os anos 1960 continuam cruciais para entender nosso mundo. Meu interesse por eles não é só nostálgico —um entendimento melhor daqueles anos poderia nos ajudar, por exemplo, a interpretar a agitação das ruas de hoje, na Europa, na América Latina e na China.
Talvez entender o que surgiu de novo nos 1960 nos permita entrever o que surge hoje. E peguntar: o que eles querem?
Vivi os anos 1960 em parte na Europa e em parte nos Estados Unidos. Participei da militância política estudantil (sobretudo na Itália), mas hoje me parece que a contracultura americana me moldou mais do que a militância política.
Essa separação entre contracultura e militância, de qualquer forma, não era estanque. Nos EUA, não havia só desbunde, mas também militância —pelos direitos civis e contra a guerra no Vietnã. E, inversamente, no maio francês ou na Itália em 1969, não havia só militância sisuda, mas sexo, droga e rock n’ roll (quem participou de uma ocupação de universidade em 1968 ou 1969 só pode concordar).
Mais tarde, tentando definir os anos 1960, coexistiram duas vulgatas —uma dizia que o que importou foi o desbunde, outra dizia que o essencial foi o esquerdismo.
Os que resumem a contracultura dos anos 1960 ao desbunde parecem sofrer por não terem sido convidados. Eles não se consolam de ter perdido a festa —porque não tinham nascido ou porque eram chatos demais—, por isso acham que todo o mundo pegava todo o mundo e se divertia loucamente. De qualquer forma, como já lembrei outra vez, o tal desbunde não era uma exclusividade da contracultura: nas casas de Los Angeles e nos apartamentos de Nova York, nos anos 1960, a festa corria mais solta do que nos acampamentos de hippies.
E do lado da militância política? O 1968 europeu não foi a inspiração da luta armada na Alemanha e na Itália nos anos 1970?
Minha resposta, hoje, é que os anos 1960 não inventaram nem o desbunde nem a militância radical —que nasceu como ramificação das esperanças frustradas da esquerda tradicional. Então, os 1960 não inventaram nada? Inventaram, sim, e praticaram uma maneira original de estar no mundo.
Para os amigos heideggerianos: os anos 1960 inventaram um novo “ser-aí-no-mundo”. Que maneira era essa? Era um encantamento, um despertar da atenção e, enfim, uma disposição à errância e à liberdade.
Por isso, as grandes testemunhas da época não foram os teóricos ou os programáticos, mas os poetas.
Aliás, para entender imediatamente o espírito dos anos 1960, basta ler hoje os dois últimos livros de Patti Smith, “Devoção” e “O Ano do Macaco” (Companhia das Letras). Smith é a última grande intérprete de um espírito que nasceu nos anos 1960 e que ainda vive, por exemplo, nos escritos dela.
Ler os dois livros basta para sentir a tal maneira diferente de estar no mundo. Qual?
Um novo jeito de estar no mundo sempre passa por uma mudança de valores. E qual teria sido a principal mudança de valores proposta pelos anos 1960?
Segunda passada, fui convidado a participar da comemoração dos dez anos da Empiricus -Publicações Financeiras. Escolhi tratar um pouco o dilema clássico dos últimos anos: a dificuldade de nossas sociedades é a desigualdade (como parecemos acreditar desde que Piketty publicou “O Capital no Século 21”) ou é a pobreza —seja qual for a desigualdade?
Cheguei à conclusão que a desigualdade só é relevante porque, desde o começo do século 19, grosso modo, Nietzsche se confirma: o sentimento social dominante parece ser o ressentimento.
A ponto que toda esperança revolucionária está atrelada à esperança de uma revanche: os de baixo se mudarão para o andar de cima.
Que tal se a verdadeira revolução pouco tivesse a ver com uma revanche, mas consistisse em cada um descobrir nele mesmo as condições de realizar quem ele é? Nesse caso, de fato, a desigualdade se tornaria apenas uma forma possível de diferença.
Claro, estou sonhando: para isso acontecer, precisaria que, primeiro, acabássemos com todas as formas de miséria que são impeditivas da vida concreta.
Mas, se isso acontecer um dia, talvez a gente se lembre que os anos 1960 sonharam com uma igualdade maior do que a igualdade econômica e maior do que a igualdade perante a lei. Os anos 1960 sonharam com a igualdade na possibilidade de cada um seguir o seu desejo.
Contardo Calligaris, psicanalista, é autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
Talvez entender o que surgiu de novo nos 1960 nos permita entrever o que surge hoje. E peguntar: o que eles querem?
Vivi os anos 1960 em parte na Europa e em parte nos Estados Unidos. Participei da militância política estudantil (sobretudo na Itália), mas hoje me parece que a contracultura americana me moldou mais do que a militância política.
Essa separação entre contracultura e militância, de qualquer forma, não era estanque. Nos EUA, não havia só desbunde, mas também militância —pelos direitos civis e contra a guerra no Vietnã. E, inversamente, no maio francês ou na Itália em 1969, não havia só militância sisuda, mas sexo, droga e rock n’ roll (quem participou de uma ocupação de universidade em 1968 ou 1969 só pode concordar).
Mais tarde, tentando definir os anos 1960, coexistiram duas vulgatas —uma dizia que o que importou foi o desbunde, outra dizia que o essencial foi o esquerdismo.
Os que resumem a contracultura dos anos 1960 ao desbunde parecem sofrer por não terem sido convidados. Eles não se consolam de ter perdido a festa —porque não tinham nascido ou porque eram chatos demais—, por isso acham que todo o mundo pegava todo o mundo e se divertia loucamente. De qualquer forma, como já lembrei outra vez, o tal desbunde não era uma exclusividade da contracultura: nas casas de Los Angeles e nos apartamentos de Nova York, nos anos 1960, a festa corria mais solta do que nos acampamentos de hippies.
E do lado da militância política? O 1968 europeu não foi a inspiração da luta armada na Alemanha e na Itália nos anos 1970?
Minha resposta, hoje, é que os anos 1960 não inventaram nem o desbunde nem a militância radical —que nasceu como ramificação das esperanças frustradas da esquerda tradicional. Então, os 1960 não inventaram nada? Inventaram, sim, e praticaram uma maneira original de estar no mundo.
Para os amigos heideggerianos: os anos 1960 inventaram um novo “ser-aí-no-mundo”. Que maneira era essa? Era um encantamento, um despertar da atenção e, enfim, uma disposição à errância e à liberdade.
Por isso, as grandes testemunhas da época não foram os teóricos ou os programáticos, mas os poetas.
Aliás, para entender imediatamente o espírito dos anos 1960, basta ler hoje os dois últimos livros de Patti Smith, “Devoção” e “O Ano do Macaco” (Companhia das Letras). Smith é a última grande intérprete de um espírito que nasceu nos anos 1960 e que ainda vive, por exemplo, nos escritos dela.
Ler os dois livros basta para sentir a tal maneira diferente de estar no mundo. Qual?
Um novo jeito de estar no mundo sempre passa por uma mudança de valores. E qual teria sido a principal mudança de valores proposta pelos anos 1960?
Segunda passada, fui convidado a participar da comemoração dos dez anos da Empiricus -Publicações Financeiras. Escolhi tratar um pouco o dilema clássico dos últimos anos: a dificuldade de nossas sociedades é a desigualdade (como parecemos acreditar desde que Piketty publicou “O Capital no Século 21”) ou é a pobreza —seja qual for a desigualdade?
Cheguei à conclusão que a desigualdade só é relevante porque, desde o começo do século 19, grosso modo, Nietzsche se confirma: o sentimento social dominante parece ser o ressentimento.
A ponto que toda esperança revolucionária está atrelada à esperança de uma revanche: os de baixo se mudarão para o andar de cima.
Que tal se a verdadeira revolução pouco tivesse a ver com uma revanche, mas consistisse em cada um descobrir nele mesmo as condições de realizar quem ele é? Nesse caso, de fato, a desigualdade se tornaria apenas uma forma possível de diferença.
Claro, estou sonhando: para isso acontecer, precisaria que, primeiro, acabássemos com todas as formas de miséria que são impeditivas da vida concreta.
Mas, se isso acontecer um dia, talvez a gente se lembre que os anos 1960 sonharam com uma igualdade maior do que a igualdade econômica e maior do que a igualdade perante a lei. Os anos 1960 sonharam com a igualdade na possibilidade de cada um seguir o seu desejo.
Contardo Calligaris, psicanalista, é autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)
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