Vale a pena a leitura o texto do editor de Cultura do jornal Valor Econômico. Escreve Borges: para ser democracia, temos de ser plurais, o que só se dá, de fato, com liberdade de expressão e uma imprensa independente, que, mesmo imperfeita, não disputa poder, defende o presidente do Supremo.
Depois de dar o seu voto decisivo e promover uma reviravolta no entendimento que permitia a execução da pena de prisão para condenados em segunda instância, Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), foi passar o fim de semana na calma Ilhabela, no litoral de São Paulo. Descontraído, vestindo calça de abrigo e camiseta, ele reuniu-se com um grupo de intelectuais na casa de Sonia e Tércio Sampaio Ferraz, um dos grandes mestres do Largo São Francisco, para discutir o quarto poder e a democracia.
Apesar do horizonte idílico, o tom às vezes era grave. “Não existe democracia sem imprensa livre. Não existe democracia sem liberdade de expressão”, disse Toffoli. “Para ser democracia, nós temos de ser plurais. Para sermos plurais, nós temos três funções de poder, mas é necessário que a sociedade tenha uma voz. A sociedade tem sua voz via imprensa.”
Os encontros promovidos pelos Sampaio Ferraz são conhecidos como seminários da Feiticeira, em homenagem à praia onde o casal tem casa. Entre os convidados, a preocupação era sobre a extensão dos efeitos colaterais das novas mídias sobre a democracia.
O ambiente se transforma radicalmente com as plataformas digitais, as milícias virtuais e a proliferação de notícias falsas, concluíram. Toffoli, que abriu inquérito para apurar notícias fraudulentas que atingem o STF e seus familiares, afirmou que as “fake news” têm um propósito: “Fazer com que ninguém acredite em mais nada, porque alguém vai substituir esse nada”.
Num país em que o primeiro imperador abdicou do trono, o segundo foi deposto e o primeiro presidente da República renunciou, há frequentemente uma desconfiança sobre a estabilidade dos governantes no cargo, afirmou Toffoli.
Duro com o Ministério Público (MP), o presidente do Supremo criticou a associação que, segundo ele, alguns meios fazem com esse braço do Estado em busca de informações para constituir a legitimidade da imprensa, que se daria na base do dia a dia. Hoje a mídia e o MP, seu “aliado preferencial”, seriam um “antipoder”, um conceito citado por Sampaio Ferraz.
Na noite anterior, o anfitrião havia dito que o papel da imprensa de assegurar o bom funcionamento da representatividade como contrapoder e metapoder, nas sociedades democráticas, está sendo afetado: a mídia estaria atuando como antipoder, muitas vezes comprometendo a capacidade dos Poderes de agir.
Para Toffoli, as mídias sociais alteraram a dinâmica da informação radicalmente. Sua tese é a de que a imprensa, que disputava sua legitimidade diária com a política e seus representantes - com seu poder legitimado a cada quatro ou oito anos nas urnas -, tem uma nova concorrência. São os eleitores que entram na disputa o tempo todo, via mídias sociais, com os três Poderes. “Esse quarto poder está na mesma situação que os outros três Poderes, que é a sua crise de representatividade”, afirmou.
As redes sociais são fundamentais para compreender a política hoje, disse o presidente da corte. Jair Bolsonaro chegou à Presidência por ter captado o fenômeno antes. Além dele, outros foram bem-sucedidos apenas usando as mídias sociais e gastando pouco. Com isso, houve grande renovação no Congresso. “Só seis senadores se reelegeram”, afirmou Toffoli.
Enquanto debatia em Ilhabela, ocorriam protestos em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília e Recife contra a decisão do STF sobre segunda instância, que beneficiou o ex-presidente Lula. Mas, para Toffoli, o tempo do Judiciário não é o da disputa política. “O Judiciário não se legitima no jornal, no Twitter”, disse ele. “Não precisa entrar nesse jogo de disputa de legitimidade. Tem o tempo a seu favor.”
Sampaio Ferraz ponderou que o Poder Judiciário não é eleito, tem outro tempo, como disse Toffoli, que não é o da política ou da imprensa, mas deveria dar estabilidade a uma forma de governo que tudo muda. “Ele não pode mudar na mesma velocidade”, disse o professor titular da USP.
Depois do almoço, Joaquim Falcão, professor da Faculdade de Direito da FGV-Rio e membro da ABL, discordou da leitura de Sampaio Ferraz sobre a imprensa como antipoder. Disse que é missão da mídia “atrapalhar o governo”, sim, e tornar “o oculto público”. Para ele, mudam-se as tecnologias, mas essa é uma resposta consolidada na democracia. Destacou que o quarto poder não é contra poderes institucionais.
“O governo Trump também usa o Twitter para atrapalhar a sociedade.” Essa é a grande novidade: o uso intensivo das mídias sociais pelos governos constituídos. “Às vezes bem usado, às vezes mal usado. A democracia tem que ter um padrão do que é mal usado.”
O questionamento feito por Eugênio Bucci, professor da ECA-USP, é se a democracia resistirá a esse novo ambiente. Para ele, os grandes conglomerados de tecnologia são as empresas com maior valor de mercado e que têm a meta de “negociar dados dos que se sentem usuários”.
Definiu imprensa como o relato factual tornado público por redações profissionais independentes. O que ocorre em outras plataformas digitais, afirmou, não se encaixa nesse conceito. Com a crise de representatividade do quarto poder, sua preocupação é quem cala a imprensa. Na China, por exemplo, já há internet controlada pelo Estado. “Sabemos que a China dissolveu a tensão entre Estado e mercado. Essa tensão sempre oxigenou a democracia.” A China está em vias de provar que a democracia é desnecessária para o desenvolvimento econômico, disse Bucci.
A crise do quarto poder, em sua perspectiva, é a da democracia. Como na China, a Rússia de Putin tem “falsos jornais”, com aspectos de jornal, com redações, mas que não são independentes. “Não estamos perdendo a imprensa. Estamos perdendo certas condições para manutenção da democracia.”
No encontro da Feiticeira passaram pessoas que ocuparam postos em governos de várias colorações e que manifestaram seus pontos de vista divergentes longe da polarização e em clima de apreço pelo debate de ideias.
Como disse Toffoli, uma demonstração de que, para ser democracia, temos de ser plurais. Isso só se dá, de fato, com liberdade de expressão e uma imprensa independente, que, mesmo imperfeita, não disputa poder. Ocupa seu espaço com informações confiáveis e opiniões qualificadas, uma missão fundamental sempre, ainda mais quando o questionamento e o contraditório são vistos, por alguns, como ameaças.
Robinson Borges é editor de Cultura
Depois de dar o seu voto decisivo e promover uma reviravolta no entendimento que permitia a execução da pena de prisão para condenados em segunda instância, Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), foi passar o fim de semana na calma Ilhabela, no litoral de São Paulo. Descontraído, vestindo calça de abrigo e camiseta, ele reuniu-se com um grupo de intelectuais na casa de Sonia e Tércio Sampaio Ferraz, um dos grandes mestres do Largo São Francisco, para discutir o quarto poder e a democracia.
Apesar do horizonte idílico, o tom às vezes era grave. “Não existe democracia sem imprensa livre. Não existe democracia sem liberdade de expressão”, disse Toffoli. “Para ser democracia, nós temos de ser plurais. Para sermos plurais, nós temos três funções de poder, mas é necessário que a sociedade tenha uma voz. A sociedade tem sua voz via imprensa.”
Os encontros promovidos pelos Sampaio Ferraz são conhecidos como seminários da Feiticeira, em homenagem à praia onde o casal tem casa. Entre os convidados, a preocupação era sobre a extensão dos efeitos colaterais das novas mídias sobre a democracia.
O ambiente se transforma radicalmente com as plataformas digitais, as milícias virtuais e a proliferação de notícias falsas, concluíram. Toffoli, que abriu inquérito para apurar notícias fraudulentas que atingem o STF e seus familiares, afirmou que as “fake news” têm um propósito: “Fazer com que ninguém acredite em mais nada, porque alguém vai substituir esse nada”.
Num país em que o primeiro imperador abdicou do trono, o segundo foi deposto e o primeiro presidente da República renunciou, há frequentemente uma desconfiança sobre a estabilidade dos governantes no cargo, afirmou Toffoli.
Duro com o Ministério Público (MP), o presidente do Supremo criticou a associação que, segundo ele, alguns meios fazem com esse braço do Estado em busca de informações para constituir a legitimidade da imprensa, que se daria na base do dia a dia. Hoje a mídia e o MP, seu “aliado preferencial”, seriam um “antipoder”, um conceito citado por Sampaio Ferraz.
Na noite anterior, o anfitrião havia dito que o papel da imprensa de assegurar o bom funcionamento da representatividade como contrapoder e metapoder, nas sociedades democráticas, está sendo afetado: a mídia estaria atuando como antipoder, muitas vezes comprometendo a capacidade dos Poderes de agir.
Para Toffoli, as mídias sociais alteraram a dinâmica da informação radicalmente. Sua tese é a de que a imprensa, que disputava sua legitimidade diária com a política e seus representantes - com seu poder legitimado a cada quatro ou oito anos nas urnas -, tem uma nova concorrência. São os eleitores que entram na disputa o tempo todo, via mídias sociais, com os três Poderes. “Esse quarto poder está na mesma situação que os outros três Poderes, que é a sua crise de representatividade”, afirmou.
As redes sociais são fundamentais para compreender a política hoje, disse o presidente da corte. Jair Bolsonaro chegou à Presidência por ter captado o fenômeno antes. Além dele, outros foram bem-sucedidos apenas usando as mídias sociais e gastando pouco. Com isso, houve grande renovação no Congresso. “Só seis senadores se reelegeram”, afirmou Toffoli.
Enquanto debatia em Ilhabela, ocorriam protestos em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília e Recife contra a decisão do STF sobre segunda instância, que beneficiou o ex-presidente Lula. Mas, para Toffoli, o tempo do Judiciário não é o da disputa política. “O Judiciário não se legitima no jornal, no Twitter”, disse ele. “Não precisa entrar nesse jogo de disputa de legitimidade. Tem o tempo a seu favor.”
Sampaio Ferraz ponderou que o Poder Judiciário não é eleito, tem outro tempo, como disse Toffoli, que não é o da política ou da imprensa, mas deveria dar estabilidade a uma forma de governo que tudo muda. “Ele não pode mudar na mesma velocidade”, disse o professor titular da USP.
Depois do almoço, Joaquim Falcão, professor da Faculdade de Direito da FGV-Rio e membro da ABL, discordou da leitura de Sampaio Ferraz sobre a imprensa como antipoder. Disse que é missão da mídia “atrapalhar o governo”, sim, e tornar “o oculto público”. Para ele, mudam-se as tecnologias, mas essa é uma resposta consolidada na democracia. Destacou que o quarto poder não é contra poderes institucionais.
“O governo Trump também usa o Twitter para atrapalhar a sociedade.” Essa é a grande novidade: o uso intensivo das mídias sociais pelos governos constituídos. “Às vezes bem usado, às vezes mal usado. A democracia tem que ter um padrão do que é mal usado.”
O questionamento feito por Eugênio Bucci, professor da ECA-USP, é se a democracia resistirá a esse novo ambiente. Para ele, os grandes conglomerados de tecnologia são as empresas com maior valor de mercado e que têm a meta de “negociar dados dos que se sentem usuários”.
Definiu imprensa como o relato factual tornado público por redações profissionais independentes. O que ocorre em outras plataformas digitais, afirmou, não se encaixa nesse conceito. Com a crise de representatividade do quarto poder, sua preocupação é quem cala a imprensa. Na China, por exemplo, já há internet controlada pelo Estado. “Sabemos que a China dissolveu a tensão entre Estado e mercado. Essa tensão sempre oxigenou a democracia.” A China está em vias de provar que a democracia é desnecessária para o desenvolvimento econômico, disse Bucci.
A crise do quarto poder, em sua perspectiva, é a da democracia. Como na China, a Rússia de Putin tem “falsos jornais”, com aspectos de jornal, com redações, mas que não são independentes. “Não estamos perdendo a imprensa. Estamos perdendo certas condições para manutenção da democracia.”
No encontro da Feiticeira passaram pessoas que ocuparam postos em governos de várias colorações e que manifestaram seus pontos de vista divergentes longe da polarização e em clima de apreço pelo debate de ideias.
Como disse Toffoli, uma demonstração de que, para ser democracia, temos de ser plurais. Isso só se dá, de fato, com liberdade de expressão e uma imprensa independente, que, mesmo imperfeita, não disputa poder. Ocupa seu espaço com informações confiáveis e opiniões qualificadas, uma missão fundamental sempre, ainda mais quando o questionamento e o contraditório são vistos, por alguns, como ameaças.
Robinson Borges é editor de Cultura
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