Recordar é viver, já faz 10 anos e meio que meu chefe partiu... Publicado aqui e no Observatório da Imprensa, no último ano em que trabalhei com Alberto Dines.
Por Luiz Antonio Magalhães em 09/06/2009 na edição 541
‘Boa tarde, juventude!’ Durante oito anos, entre 2000 e 2008, me acostumei ao cumprimento diário e sempre eloquente de Getulio Bittencourt, primeiro no site PanoramaBrasil e logo em seguida no DCI – Diário do Comércio, Indústria e Serviços. Foi um convívio longo e intenso, durante o qual aprendi alguns dos muitos segredos da profissão, que ele dominava como poucos. Mais do que jornalismo, porém, o que ficou da convivência, interrompida de forma definitiva com sua morte, na noite de sábado (6/6), foi um exemplo de caráter e sensibilidade, além do enorme respeito por sua história de superação, ao longo de toda uma vida.
Getulio era um jornalista excepcional, vê-lo trabalhando foi um privilégio e um aprendizado. A célebre entrevista com o general João Figueiredo que lhe valeu o Prêmio Esso, realizada em 1978 para a Folha de S.Paulo, foi o seu feito mais espetacular. A gravação da conversa estava proibida e também não era permitido tomar notas, mas com sua memória prodigiosa, Getulio conseguiu transcrever os 95 minutos de entrevista em formato de perguntas e respostas, o que quase valeu um processo contra o jornal, pois Figueiredo, então candidato do regime à sucessão de Ernesto Geisel, acreditava ter sido enganado e levantou a hipótese de ter ocorrido uma gravação clandestina.
Getulio gostava de lembrar dessa história, mas sempre que alguém mencionava ou pedia explicações sobre a façanha, ele lembrava da participação do jornalista Haroldo Cerqueira Lima, o Leleco (1939-2003), na entrevista. Em 2004, aliás, escreveu um belo texto para a seção ‘Tendências/Debates’ da Folha sobre o colega (‘Aprender com Leleco‘, 15/7/2004, para assinantes). Getulio sabia que a façanha era sua – dificilmente qualquer outro jornalista do país conseguiria decorar, palavra por palavra, o que foi dito na tensa entrevista com quem viria ser o último general-presidente do regime militar –, mas jamais deixou de dividir os méritos com Leleco.
Fonte privilegiada
A memória de Getulio era realmente um espanto. Durante todo o tempo em que trabalhei com ele, aprendi que não era possível enrolar o chefe. Ele lembraria… Sempre lembrava, inclusive da frase exata que havia sido dita. Às vezes acontecia de ele mesmo contemporizar com os subordinados, mas a memória não falhava jamais. E o ajudava a lembrar com uma precisão absurda as fichas técnicas de milhares de filmes – cinema era outra paixão de Getulio Bittencourt. Ele até gostava que o desafiassem e tripudiava: ‘My Darling Clementine? É de 1946, direção de John Ford, com Henry Fonda, Linda Darnell, Victor Mature e Cathy Downs, roteiro de Samuel G. Engel e Winston Miller. Um grande filme’ – divertia-se, para espanto do interlocutor. Dos clássicos, seria possível perguntar sobre qualquer um, ele dava a ficha completa.
E como podia saber tanto sobre cinema? Pelo hábito de acompanhar os letreiros finais com muita atenção e pela leitura das críticas, especialmente as de Moniz Vianna publicadas entre 1966 e 1973, que acompanhou religiosamente, guardando boa parte em arquivos. Em 2004, Getulio entrevistou Moniz, então com 80 anos, para o DCI, e revelou algo surpreendente: tinha mais textos em seu arquivo do que o próprio autor. ‘Paulo Perdigão estimou a produção total dele em cerca de 6 mil artigos. Alguns admiradores de Moniz Vianna têm até 500 artigos dele recortados. A coleção que restou a Moniz Vianna soma cerca de 2.500 artigos, e a minha, iniciada quando office-boy com a idade de 14 anos, depois de revirar o que sobrou do jornal (fechado em 1974) no Arquivo Nacional, chega apenas a 3.767 artigos’, lamentou Getulio no texto que precede a entrevista, reproduzida na íntegra por este Observatório.
Esta mesma determinação para arquivar os dados que julgava importantes para sua cultura cinéfila Getulio aplicava em seu trabalho diário, na redação. Roberto Müller Filho, ex-diretor de redação da Gazeta Mercantil e um companheiro de vida inteira de Getulio, lembrava, após o velório do jornalista, que ele montou, durante o período em que foi correspondente do jornal em Nova York (1989 a 2000), um banco de dados tão completo sobre as empresas brasileiras com ações e papéis negociados no exterior que muitas vezes suas fontes no mercado financeiro passaram a telefonar não para oferecer notícias, mas para perguntar sobre os números que só ele, Getulio, tinha.
Especializado em finanças ao longo do período em que trabalhou na Gazeta, Getulio começou na profissão na editoria de Política. Durante o governo de José Sarney, foi secretário de Comunicação da Presidência e presidente da EBN (Empresa Brasileira de Notícias). Além da Gazeta Mercantil, trabalhou na revista Veja, na Folha de S.Paulo, no PanoramaBrasil, no DCI e desde o ano passado era um dos editores da versão brasileira da revista Harvard Business Review.
No chão e das estrelas
A trajetória profissional escondia uma história de vida tão peculiar como a sua memória. Getulio nasceu em Governador Valadares (MG) e cresceu ao lado do pai, no interior de São Paulo, distante da mãe. Aos 14, anos, perdeu o pai em Ribeirão Preto (SP) e resolveu então escrever uma carta ao prefeito da cidade mineira. Admirado com o estilo do missivista, o prefeito a fez publicar no jornal da cidade, editado por Mauro Santayana, possibilitando o reencontro do futuro jornalista que já se anunciava com a família da mãe.
Autodidata, ainda muito jovem ele lia o que lhe caia em mãos e desde cedo gostava de jornais. Ganhou uma assinatura do Estado de S.Paulo do escritório em que pegava no batente como office-boy, para acompanhar as críticas de cinema. Começou a trabalhar muito cedo, não chegou a cursar faculdade alguma. Tinha apenas o diploma do que hoje equivaleria ao ensino fundamental. Mas escrevia melhor que muito jornalista consagrado e conseguiu logo se destacar nas redações.
Getulio Bittencourt, definitivamente, não era uma pessoa comum. Estudioso dedicado da astrologia, aplicava ao tema o mesmo rigor que aos bancos de dados das empresas ou aos fichários sobre filmes. Em seu computador estavam arquivadas milhares de datas de aniversários de personagens históricos, políticos e empresários brasileiros (muitos dos quais o procuravam com frequência antes de tomar decisões importantes), além de amigos e parentes. Em segundos, ele localizava os mapas, fazia a leitura e começava a interpretá-los. Muitas vezes usava seu conhecimento em astrologia para fazer previsões sobre a vida política e econômica do país, mas o fazia com parcimônia, como subsídio extra à apuração rigorosa dos fatos. Em alguns casos, porém, a história do Brasil foi influenciada pelos mapas de Getulio.
Na eleição presidencial indireta de 1985, o jornalista avisou o deputado federal Thales Ramalho, aliado de Tancredo Neves, ‘que uma conjunção de Mercúrio com Netuno, às 15 horas do dia 15 de janeiro, levaria o então candidato a presidente da República Tancredo Neves a uma provável derrota no Colégio Eleitoral contra Paulo Maluf. Horas mais tarde, travava-se entre os dois políticos o seguinte diálogo: `Você acredita nessas coisas?´, perguntou o candidato. `No creo en brujas, mas nessas horas é preciso ter cuidado com tudo´, respondeu Ramalho. Ressabiado, Tancredo instruiu seu aliado a antecipar o horário das eleições para as 10 da manhã. `A negociação no Congresso foi complicada, porque não podíamos revelar o motivo do pleito, sob pena de nos desmoralizarmos´, relembra Ramalho. A votação acabou sendo mudada para as 10h e o desfecho todo mundo conhece. Sem saber, o Congresso Nacional fizera hora extra em função de uma carta astrológica’, escreveu João Gabriel de Lima em resenha do livro À Luz do Céu Profundo – Astrologia e Política no Brasil para a revista Veja, em 1998. Getulio também ficou intrigado, pouco depois, com o que viu no mapa de Tancredo. O político mineiro simplesmente não aparecia após a data da posse, marcada para 15 de março de 1985. Tancredo acabou falecendo em 21 de abril, após adoecer em 14 de março. Não chegou a tomar posse, conforme a previsão do jornalista.
A segurança nos astros era tanta que Getulio ignorava olimpicamente o ceticismo de alguns colegas, como o autor destas linhas, e com toda a paciência do mundo tentava explicar o que via nos mapas. Em época de eleição, as análises e conversas nas reuniões de pauta misturavam os dados pragmáticos do noticiário com os que vinham das estrelas. ‘O diabo é que ninguém sabe quando nasceu esse seu operário’, reclamava ele da falta de dado preciso sobre o nascimento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – se no dia 6 ou 27 de outubro de 1945, pois Lula foi registrado com a data de 6/10, mas sua mãe dizia que ele nasceu em 27/10. A ausência do tal dado preciso sobre Lula não deixou de ser providencial nas duas campanhas presidenciais que acompanhei como editor de Política do DCI – havia sempre a chance de Lula ganhar, de acordo com um mapa, ou de perder, se tivesse nascido na outra data. Ou seja, meu chefe teria sempre razão.
Previsão acertada
As brincadeiras na Redação com o chefe-astrólogo eram sempre muito bem recebidas por Getulio, que reagia com humor – aliás, outra grande qualidade do jornalista, a quem só vi verdadeiramente irritado uma única vez, quando, em conversa lateral antes de uma reunião de pauta, externei a opinião de que o centroavante Ronaldo Fenômeno estava acabado para o futebol e não deveria ser convocado para a Copa de 2006. Santista e fã do atacante, Getulio não levantou a voz, mas passou um longo sermão sobre o que julgava ser a pior burrice que já ouvira na vida. Talvez ele tivesse mesmo uma certa razão…
Noves fora zero, os astros estiveram sempre presentes na vida de Getulio. No final de 2008, ele descobriu que estava com câncer no pulmão, com metástase no cérebro. Começou a se tratar e a melhorar da doença. Ao longo dos últimos meses, porém, sua saúde foi piorando, perdeu apetite e peso, andava muito cansado e atribuía esses sintomas aos efeitos da quimioterapia. Parou de tomar os remédios contra o câncer, mas ainda assim não melhorava.
Em maio deste ano, foi internado e passou por uma série de exames que detectaram uma gastrite e, depois, uma infecção no duodeno, causada por um parasita. No começo da primeira semana de junho, depois de um período internado na UTI, melhorou bastante e estava animado com o diagnóstico da infecção. Disse à mulher, Ana Cristina Magalhães, que havia precisado da medicina do século 21 para detectar uma doença do século 18. E contou ao jornalista Sidnei Basile que estava aliviado porque os médicos poderiam tratar do problema da infecção, de modo que ficaria bom logo. ‘Eu errei, tinha previsto que iria morrer, mas não vou’, disse a Basile.
Getulio Bittencourt não errou sua previsão. Deixou a mulher Ana Cristina, seis filhos (Dimitri, Diego, Parres, Julio, Jonas, Nicholas) e um neto (Brandon). E o jornalismo brasileiro perdeu, na noite de sábado, um de seus grandes talentos.
Por Luiz Antonio Magalhães em 09/06/2009 na edição 541
‘Boa tarde, juventude!’ Durante oito anos, entre 2000 e 2008, me acostumei ao cumprimento diário e sempre eloquente de Getulio Bittencourt, primeiro no site PanoramaBrasil e logo em seguida no DCI – Diário do Comércio, Indústria e Serviços. Foi um convívio longo e intenso, durante o qual aprendi alguns dos muitos segredos da profissão, que ele dominava como poucos. Mais do que jornalismo, porém, o que ficou da convivência, interrompida de forma definitiva com sua morte, na noite de sábado (6/6), foi um exemplo de caráter e sensibilidade, além do enorme respeito por sua história de superação, ao longo de toda uma vida.
Getulio era um jornalista excepcional, vê-lo trabalhando foi um privilégio e um aprendizado. A célebre entrevista com o general João Figueiredo que lhe valeu o Prêmio Esso, realizada em 1978 para a Folha de S.Paulo, foi o seu feito mais espetacular. A gravação da conversa estava proibida e também não era permitido tomar notas, mas com sua memória prodigiosa, Getulio conseguiu transcrever os 95 minutos de entrevista em formato de perguntas e respostas, o que quase valeu um processo contra o jornal, pois Figueiredo, então candidato do regime à sucessão de Ernesto Geisel, acreditava ter sido enganado e levantou a hipótese de ter ocorrido uma gravação clandestina.
Getulio gostava de lembrar dessa história, mas sempre que alguém mencionava ou pedia explicações sobre a façanha, ele lembrava da participação do jornalista Haroldo Cerqueira Lima, o Leleco (1939-2003), na entrevista. Em 2004, aliás, escreveu um belo texto para a seção ‘Tendências/Debates’ da Folha sobre o colega (‘Aprender com Leleco‘, 15/7/2004, para assinantes). Getulio sabia que a façanha era sua – dificilmente qualquer outro jornalista do país conseguiria decorar, palavra por palavra, o que foi dito na tensa entrevista com quem viria ser o último general-presidente do regime militar –, mas jamais deixou de dividir os méritos com Leleco.
Fonte privilegiada
A memória de Getulio era realmente um espanto. Durante todo o tempo em que trabalhei com ele, aprendi que não era possível enrolar o chefe. Ele lembraria… Sempre lembrava, inclusive da frase exata que havia sido dita. Às vezes acontecia de ele mesmo contemporizar com os subordinados, mas a memória não falhava jamais. E o ajudava a lembrar com uma precisão absurda as fichas técnicas de milhares de filmes – cinema era outra paixão de Getulio Bittencourt. Ele até gostava que o desafiassem e tripudiava: ‘My Darling Clementine? É de 1946, direção de John Ford, com Henry Fonda, Linda Darnell, Victor Mature e Cathy Downs, roteiro de Samuel G. Engel e Winston Miller. Um grande filme’ – divertia-se, para espanto do interlocutor. Dos clássicos, seria possível perguntar sobre qualquer um, ele dava a ficha completa.
E como podia saber tanto sobre cinema? Pelo hábito de acompanhar os letreiros finais com muita atenção e pela leitura das críticas, especialmente as de Moniz Vianna publicadas entre 1966 e 1973, que acompanhou religiosamente, guardando boa parte em arquivos. Em 2004, Getulio entrevistou Moniz, então com 80 anos, para o DCI, e revelou algo surpreendente: tinha mais textos em seu arquivo do que o próprio autor. ‘Paulo Perdigão estimou a produção total dele em cerca de 6 mil artigos. Alguns admiradores de Moniz Vianna têm até 500 artigos dele recortados. A coleção que restou a Moniz Vianna soma cerca de 2.500 artigos, e a minha, iniciada quando office-boy com a idade de 14 anos, depois de revirar o que sobrou do jornal (fechado em 1974) no Arquivo Nacional, chega apenas a 3.767 artigos’, lamentou Getulio no texto que precede a entrevista, reproduzida na íntegra por este Observatório.
Esta mesma determinação para arquivar os dados que julgava importantes para sua cultura cinéfila Getulio aplicava em seu trabalho diário, na redação. Roberto Müller Filho, ex-diretor de redação da Gazeta Mercantil e um companheiro de vida inteira de Getulio, lembrava, após o velório do jornalista, que ele montou, durante o período em que foi correspondente do jornal em Nova York (1989 a 2000), um banco de dados tão completo sobre as empresas brasileiras com ações e papéis negociados no exterior que muitas vezes suas fontes no mercado financeiro passaram a telefonar não para oferecer notícias, mas para perguntar sobre os números que só ele, Getulio, tinha.
Especializado em finanças ao longo do período em que trabalhou na Gazeta, Getulio começou na profissão na editoria de Política. Durante o governo de José Sarney, foi secretário de Comunicação da Presidência e presidente da EBN (Empresa Brasileira de Notícias). Além da Gazeta Mercantil, trabalhou na revista Veja, na Folha de S.Paulo, no PanoramaBrasil, no DCI e desde o ano passado era um dos editores da versão brasileira da revista Harvard Business Review.
No chão e das estrelas
A trajetória profissional escondia uma história de vida tão peculiar como a sua memória. Getulio nasceu em Governador Valadares (MG) e cresceu ao lado do pai, no interior de São Paulo, distante da mãe. Aos 14, anos, perdeu o pai em Ribeirão Preto (SP) e resolveu então escrever uma carta ao prefeito da cidade mineira. Admirado com o estilo do missivista, o prefeito a fez publicar no jornal da cidade, editado por Mauro Santayana, possibilitando o reencontro do futuro jornalista que já se anunciava com a família da mãe.
Autodidata, ainda muito jovem ele lia o que lhe caia em mãos e desde cedo gostava de jornais. Ganhou uma assinatura do Estado de S.Paulo do escritório em que pegava no batente como office-boy, para acompanhar as críticas de cinema. Começou a trabalhar muito cedo, não chegou a cursar faculdade alguma. Tinha apenas o diploma do que hoje equivaleria ao ensino fundamental. Mas escrevia melhor que muito jornalista consagrado e conseguiu logo se destacar nas redações.
Getulio Bittencourt, definitivamente, não era uma pessoa comum. Estudioso dedicado da astrologia, aplicava ao tema o mesmo rigor que aos bancos de dados das empresas ou aos fichários sobre filmes. Em seu computador estavam arquivadas milhares de datas de aniversários de personagens históricos, políticos e empresários brasileiros (muitos dos quais o procuravam com frequência antes de tomar decisões importantes), além de amigos e parentes. Em segundos, ele localizava os mapas, fazia a leitura e começava a interpretá-los. Muitas vezes usava seu conhecimento em astrologia para fazer previsões sobre a vida política e econômica do país, mas o fazia com parcimônia, como subsídio extra à apuração rigorosa dos fatos. Em alguns casos, porém, a história do Brasil foi influenciada pelos mapas de Getulio.
Na eleição presidencial indireta de 1985, o jornalista avisou o deputado federal Thales Ramalho, aliado de Tancredo Neves, ‘que uma conjunção de Mercúrio com Netuno, às 15 horas do dia 15 de janeiro, levaria o então candidato a presidente da República Tancredo Neves a uma provável derrota no Colégio Eleitoral contra Paulo Maluf. Horas mais tarde, travava-se entre os dois políticos o seguinte diálogo: `Você acredita nessas coisas?´, perguntou o candidato. `No creo en brujas, mas nessas horas é preciso ter cuidado com tudo´, respondeu Ramalho. Ressabiado, Tancredo instruiu seu aliado a antecipar o horário das eleições para as 10 da manhã. `A negociação no Congresso foi complicada, porque não podíamos revelar o motivo do pleito, sob pena de nos desmoralizarmos´, relembra Ramalho. A votação acabou sendo mudada para as 10h e o desfecho todo mundo conhece. Sem saber, o Congresso Nacional fizera hora extra em função de uma carta astrológica’, escreveu João Gabriel de Lima em resenha do livro À Luz do Céu Profundo – Astrologia e Política no Brasil para a revista Veja, em 1998. Getulio também ficou intrigado, pouco depois, com o que viu no mapa de Tancredo. O político mineiro simplesmente não aparecia após a data da posse, marcada para 15 de março de 1985. Tancredo acabou falecendo em 21 de abril, após adoecer em 14 de março. Não chegou a tomar posse, conforme a previsão do jornalista.
A segurança nos astros era tanta que Getulio ignorava olimpicamente o ceticismo de alguns colegas, como o autor destas linhas, e com toda a paciência do mundo tentava explicar o que via nos mapas. Em época de eleição, as análises e conversas nas reuniões de pauta misturavam os dados pragmáticos do noticiário com os que vinham das estrelas. ‘O diabo é que ninguém sabe quando nasceu esse seu operário’, reclamava ele da falta de dado preciso sobre o nascimento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – se no dia 6 ou 27 de outubro de 1945, pois Lula foi registrado com a data de 6/10, mas sua mãe dizia que ele nasceu em 27/10. A ausência do tal dado preciso sobre Lula não deixou de ser providencial nas duas campanhas presidenciais que acompanhei como editor de Política do DCI – havia sempre a chance de Lula ganhar, de acordo com um mapa, ou de perder, se tivesse nascido na outra data. Ou seja, meu chefe teria sempre razão.
Previsão acertada
As brincadeiras na Redação com o chefe-astrólogo eram sempre muito bem recebidas por Getulio, que reagia com humor – aliás, outra grande qualidade do jornalista, a quem só vi verdadeiramente irritado uma única vez, quando, em conversa lateral antes de uma reunião de pauta, externei a opinião de que o centroavante Ronaldo Fenômeno estava acabado para o futebol e não deveria ser convocado para a Copa de 2006. Santista e fã do atacante, Getulio não levantou a voz, mas passou um longo sermão sobre o que julgava ser a pior burrice que já ouvira na vida. Talvez ele tivesse mesmo uma certa razão…
Noves fora zero, os astros estiveram sempre presentes na vida de Getulio. No final de 2008, ele descobriu que estava com câncer no pulmão, com metástase no cérebro. Começou a se tratar e a melhorar da doença. Ao longo dos últimos meses, porém, sua saúde foi piorando, perdeu apetite e peso, andava muito cansado e atribuía esses sintomas aos efeitos da quimioterapia. Parou de tomar os remédios contra o câncer, mas ainda assim não melhorava.
Em maio deste ano, foi internado e passou por uma série de exames que detectaram uma gastrite e, depois, uma infecção no duodeno, causada por um parasita. No começo da primeira semana de junho, depois de um período internado na UTI, melhorou bastante e estava animado com o diagnóstico da infecção. Disse à mulher, Ana Cristina Magalhães, que havia precisado da medicina do século 21 para detectar uma doença do século 18. E contou ao jornalista Sidnei Basile que estava aliviado porque os médicos poderiam tratar do problema da infecção, de modo que ficaria bom logo. ‘Eu errei, tinha previsto que iria morrer, mas não vou’, disse a Basile.
Getulio Bittencourt não errou sua previsão. Deixou a mulher Ana Cristina, seis filhos (Dimitri, Diego, Parres, Julio, Jonas, Nicholas) e um neto (Brandon). E o jornalismo brasileiro perdeu, na noite de sábado, um de seus grandes talentos.
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