Muito bom o texto de Raul Juste Lores, publicado no Brazil Journal. Íntegra a seguir.
Luciano Huck levou Yuval Harari para gravar numa favela — fazendo o escritor israelense confidenciar a amigos que “finalmente vi negros, depois de uma semana no Brasil.”
O historiador de 43 anos foi recebido pelos presidentes da Câmara e do Senado para uma palestra no Congresso Nacional.
Antes, lotou o Teatro Municipal do Rio, o Auditório Simón Bolívar do Memorial da América Latina e o Teatro Santander em São Paulo. CEOs pediam autógrafos e selfies.
Sua participação no Roda Viva, da TV Cultura, da qual fui um dos entrevistadores, ultrapassou 200 mil visualizações em apenas três dias no YouTube.
À produção, Harari exigiu apenas paridade de gênero na bancada de entrevistadores — o que, se alguma evidência ainda fosse necessária, mostra o quanto o cara é diferenciado.
Numa época de déficit de clareza e profundidade (e overdose de certezas barulhentas das igrejinhas políticas), o discurso nuançado e cheio de ponderações do professor da Universidade Hebraica de Jerusalém atraiu grupos diversos. Sua trilogia “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 Lições para o século 21” vendeu um milhão de exemplares no Brasil, aquele país que não gosta muito de ler.
Harari está acostumado ao tapete vermelho. Mesmo fustigando os oligopólios digitais, é recebido por todos os CEOs do Vale, de Zuckerberg a Bill Gates; é chamado a conversar com líderes políticos — aqueles que lêem — de Obama a Angela Merkel. E se dá ao luxo de não possuir telefone celular (o trabalho sobra para o marido, Itzik Yahav, que cuida da agenda). “Status hoje é não ter celular. Não quero esse chefe mandando na minha vida.”
Se você perdeu a visita de Harari ao Brasil, segue um resumo das lições que ele mais repetiu em suas andanças pelo País.
Educação para adultos
A mentalidade do século 20 era de proteger os empregos. Proteger a fábrica, a indústria. Agora, temos que proteger as pessoas. O emprego na fábrica de camisetas vai desaparecer. Aquela pessoa precisa ser protegida. Investimos na educação das crianças. Hoje, precisamos educar e reeducar milhões de adultos. O motorista de caminhão vai precisar aprender a desenvolver jogos de inteligência artificial.
Não temos a menor ideia de como será o mercado de trabalho nos próximos vinte, trinta anos. Mas, com certeza, precisaremos de educação contínua. Não só dominar mais ciências e tecnologia, mas desenvolver uma mentalidade mais flexível para lidar com o desconhecido. Há muitas situações desconhecidas por vir. Forças armadas pelo mundo se tornarão obsoletas com sistemas operacionais autônomos de armas. A inteligência artificial vai poder detectar rapidamente o aparecimento de células cancerígenas, fazendo o tratamento ser mais simples e mais barato.
Ao mesmo tempo, um bracelete pode revelar, dentro de um sistema totalitário, se você está “zangado por dentro” ao aplaudir e sorrir para o que um ditador diz. No dia seguinte, pela pulsação, você pode ser enviado a um gulag. Um algoritmo, sem nenhuma entrevista prévia, pode avaliar se você merece receber um empréstimo. Nossa educação costumava se basear na sabedoria do passado. Agora, terá que lidar com essas transformações por vir.
A ditadura dos dados
Quem regulamenta a propriedade dos dados? Há dois países que recolhem e acumulam os dados de todo mundo: EUA e China. Imagine uma empresa em São Francisco que detenha todos os dados financeiros ou de saúde dos políticos, empresários e juízes do Brasil. Os dados remeterão muitos países de volta à condição de colônias, que podem ser controladas à distância.
A história sexual dos adolescentes de hoje poderá ser usada daqui a trinta anos quando eles forem candidatos a uma vaga no Supremo. Esses jovens geram dados sem parar, que estão sendo armazenados. Precisamos estar conscientes disso e tomar atitudes a tempo.
Novas colônias
Em 1840, a Inglaterra estava fabricando ferrovias e barcos a vapor, enquanto outras potências tinham outras prioridades, sem embarcar na revolução industrial. Décadas depois, esses países tinham se tornado colônias exploradas pela Inglaterra.
Essa analogia serve para a revolução da inteligência artificial. Vários países serão dominados pelos poucos que desenvolverem essa tecnologia primeiro. Antes, países mais pobres reduziam o gap e eram competitivos graças à mão de obra barata. Com a automação, esses empregos são cortados. A vantagem desaparece.
Monopólios encorajados
Quebrar o monopólio das empresas digitais é tecnica e politicamente muito mais difícil que um monopólio de uma empresa de petróleo ou de automóveis. As redes sociais, por exemplo, encorajam o monopólio. O Facebook ja tem 1 bilhão de membros, e as pessoas querem estar onde os demais já estão. A atração está aí. Não adianta dividir em cinco empresas. A que tiver uma vantagem vai esvaziar as outras. Com o “data mining”, as empresas que tiverem mais acesso a eles terão as melhores previsões, as melhores estatísticas. Isso favorece a concentração.
Meditação como antídoto
Depressão, ansiedade e stress estão em alta, assim como o suicídio entre jovens. Harari diz que pratica meditaçao vipassana diariamente por duas horas, e faz retiros de um a dois meses por ano. “Mais que nunca, é importante se conhecer profundamente. As empresas digitais, os governos, as corporações vigiam você, tentam hackear, sabem cada passo, até para explorar suas vulnerabilidades. Do Facebook à Amazon. ‘Conhece-te a ti mesmo’ foi imperativo de todas as religiões por séculos, mas não tinha concorrência. Hoje, estão entrando na sua mente, sabendo o que você curte, antes de você conhecer suas próprias fraquezas mentais.
Há uma falência filosófica e espiritual quando não tomamos nossas decisões. Deixamos que algoritmos — um computador — escolham nosso emprego e com quem nós vamos casar. Deveria ser a única coisa que não pode ser terceirizada.
Raul Juste Lores é editor da VEJA São Paulo.
Luciano Huck levou Yuval Harari para gravar numa favela — fazendo o escritor israelense confidenciar a amigos que “finalmente vi negros, depois de uma semana no Brasil.”
O historiador de 43 anos foi recebido pelos presidentes da Câmara e do Senado para uma palestra no Congresso Nacional.
Antes, lotou o Teatro Municipal do Rio, o Auditório Simón Bolívar do Memorial da América Latina e o Teatro Santander em São Paulo. CEOs pediam autógrafos e selfies.
Sua participação no Roda Viva, da TV Cultura, da qual fui um dos entrevistadores, ultrapassou 200 mil visualizações em apenas três dias no YouTube.
À produção, Harari exigiu apenas paridade de gênero na bancada de entrevistadores — o que, se alguma evidência ainda fosse necessária, mostra o quanto o cara é diferenciado.
Numa época de déficit de clareza e profundidade (e overdose de certezas barulhentas das igrejinhas políticas), o discurso nuançado e cheio de ponderações do professor da Universidade Hebraica de Jerusalém atraiu grupos diversos. Sua trilogia “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 Lições para o século 21” vendeu um milhão de exemplares no Brasil, aquele país que não gosta muito de ler.
Harari está acostumado ao tapete vermelho. Mesmo fustigando os oligopólios digitais, é recebido por todos os CEOs do Vale, de Zuckerberg a Bill Gates; é chamado a conversar com líderes políticos — aqueles que lêem — de Obama a Angela Merkel. E se dá ao luxo de não possuir telefone celular (o trabalho sobra para o marido, Itzik Yahav, que cuida da agenda). “Status hoje é não ter celular. Não quero esse chefe mandando na minha vida.”
Se você perdeu a visita de Harari ao Brasil, segue um resumo das lições que ele mais repetiu em suas andanças pelo País.
Educação para adultos
A mentalidade do século 20 era de proteger os empregos. Proteger a fábrica, a indústria. Agora, temos que proteger as pessoas. O emprego na fábrica de camisetas vai desaparecer. Aquela pessoa precisa ser protegida. Investimos na educação das crianças. Hoje, precisamos educar e reeducar milhões de adultos. O motorista de caminhão vai precisar aprender a desenvolver jogos de inteligência artificial.
Não temos a menor ideia de como será o mercado de trabalho nos próximos vinte, trinta anos. Mas, com certeza, precisaremos de educação contínua. Não só dominar mais ciências e tecnologia, mas desenvolver uma mentalidade mais flexível para lidar com o desconhecido. Há muitas situações desconhecidas por vir. Forças armadas pelo mundo se tornarão obsoletas com sistemas operacionais autônomos de armas. A inteligência artificial vai poder detectar rapidamente o aparecimento de células cancerígenas, fazendo o tratamento ser mais simples e mais barato.
Ao mesmo tempo, um bracelete pode revelar, dentro de um sistema totalitário, se você está “zangado por dentro” ao aplaudir e sorrir para o que um ditador diz. No dia seguinte, pela pulsação, você pode ser enviado a um gulag. Um algoritmo, sem nenhuma entrevista prévia, pode avaliar se você merece receber um empréstimo. Nossa educação costumava se basear na sabedoria do passado. Agora, terá que lidar com essas transformações por vir.
A ditadura dos dados
Quem regulamenta a propriedade dos dados? Há dois países que recolhem e acumulam os dados de todo mundo: EUA e China. Imagine uma empresa em São Francisco que detenha todos os dados financeiros ou de saúde dos políticos, empresários e juízes do Brasil. Os dados remeterão muitos países de volta à condição de colônias, que podem ser controladas à distância.
A história sexual dos adolescentes de hoje poderá ser usada daqui a trinta anos quando eles forem candidatos a uma vaga no Supremo. Esses jovens geram dados sem parar, que estão sendo armazenados. Precisamos estar conscientes disso e tomar atitudes a tempo.
Novas colônias
Em 1840, a Inglaterra estava fabricando ferrovias e barcos a vapor, enquanto outras potências tinham outras prioridades, sem embarcar na revolução industrial. Décadas depois, esses países tinham se tornado colônias exploradas pela Inglaterra.
Essa analogia serve para a revolução da inteligência artificial. Vários países serão dominados pelos poucos que desenvolverem essa tecnologia primeiro. Antes, países mais pobres reduziam o gap e eram competitivos graças à mão de obra barata. Com a automação, esses empregos são cortados. A vantagem desaparece.
Monopólios encorajados
Quebrar o monopólio das empresas digitais é tecnica e politicamente muito mais difícil que um monopólio de uma empresa de petróleo ou de automóveis. As redes sociais, por exemplo, encorajam o monopólio. O Facebook ja tem 1 bilhão de membros, e as pessoas querem estar onde os demais já estão. A atração está aí. Não adianta dividir em cinco empresas. A que tiver uma vantagem vai esvaziar as outras. Com o “data mining”, as empresas que tiverem mais acesso a eles terão as melhores previsões, as melhores estatísticas. Isso favorece a concentração.
Meditação como antídoto
Depressão, ansiedade e stress estão em alta, assim como o suicídio entre jovens. Harari diz que pratica meditaçao vipassana diariamente por duas horas, e faz retiros de um a dois meses por ano. “Mais que nunca, é importante se conhecer profundamente. As empresas digitais, os governos, as corporações vigiam você, tentam hackear, sabem cada passo, até para explorar suas vulnerabilidades. Do Facebook à Amazon. ‘Conhece-te a ti mesmo’ foi imperativo de todas as religiões por séculos, mas não tinha concorrência. Hoje, estão entrando na sua mente, sabendo o que você curte, antes de você conhecer suas próprias fraquezas mentais.
Há uma falência filosófica e espiritual quando não tomamos nossas decisões. Deixamos que algoritmos — um computador — escolham nosso emprego e com quem nós vamos casar. Deveria ser a única coisa que não pode ser terceirizada.
Raul Juste Lores é editor da VEJA São Paulo.
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