Candidato que enfrentou Evo Morales nas eleições presidenciais da Bolívia rejeita a tese do golpe e diz que a data do novo pleito deveria ser anunciada até domingo que vem. Na entrevista ao El País, ele defende que o governo interino encarregado de convocar novas eleições faça isso o quanto antes. “É muito importante que a comunidade internacional e o país saibam que se definiu um dia e uma hora para as eleições”, diz. Na íntegra, abaixo.
MARCELO PÉREZ e FRANCESCO MANETTO
La Paz 15 NOV 2019 - 11:29 BRT
Carlos Mesa Gisbert (La Paz, 1953) foi o principal adversário de Evo Morales nas eleições de 20 de outubro do ano passado. Presidente da Bolívia entre 2003 e 2005, depois optou por se retirar da linha de frente. Retornou para liderar a coalizão Comunidade Cidadã na última eleição, e desde que a totalização eletrônica dos votos foi suspensa, na noite do primeiro turno, ele denuncia uma tentativa de fraude. Segundo os resultados divulgados pelo Tribunal Supremo Eleitoral após horas de paralisação, Morales venceu sem a necessidade de disputar um segundo turno. Enquanto uma onda de protestos sacudia o país, a Organização dos Estados Americanos (OEA) fez uma auditoria que apontou várias irregularidades. O relatório foi divulgado no domingo passado, e Morales então anunciou que as eleições seriam repetidas. Horas mais tarde, porém, pressionado pela cúpula militar, renunciou ao cargo que ocupou durante 14 anos.
Carlos Mesa, que teve uma formação política de esquerda, é escritor, ensaísta e jornalista. Defende que o Governo interino encarregado de convocar novas eleições faça isso o quanto antes. “É muito importante que a comunidade internacional e o país saibam que se definiu um dia e uma hora para as eleições”, diz.
Pergunta. Está consciente de que fora da Bolívia muitos viram o que aconteceu no país como um golpe de Estado, ou um processo semelhante a um golpe de Estado, sobretudo pelo papel do chefe do Exército? Qual é sua posição?
Resposta. Comecemos por dizer que o presidente Evo Morales, em seu terceiro mandato, violou a Constituição, comecemos por dizer que as disposições transitórias da Constituição de 2009 estabelecem com clareza que todos os mandatos presidenciais anteriores à aprovação da Constituição de 2009 serão contatos como válidos para a limitação de dois períodos consecutivos. Morales tinha sido presidente de 2010 a 2015 em seu segundo mandato. O Tribunal Constitucional interpretou que, como tínhamos mudado o nome do país, este era um novo país e não se podia considerar aquele artigo das disposições transitórias. Portanto, este período que terminou já é inconstitucional. O presidente consultou num referendo sobre a modificação do artigo 168, e o povo lhe deu as costas. Consequentemente, temos uma primeira violação da Constituição, uma segunda violação, uma candidatura ilegal. E em seus dois últimos períodos o presidente controlou os quatro poderes do Estado. Isso é um golpe de Estado, um golpe de Estado de fato. Finalmente, há uma fraude monumental reconhecida pela Organização dos Estados Americanos (OEA) no relatório da missão de observação eleitoral, no relatório final e no discurso do secretário-geral da OEA. Não pode ser possível que com esses elementos incontestáveis o autor de uma fraude se permita dizer que há um golpe de Estado depois de 21 dias de resistência pacífica do povo boliviano.
P. Mas o chefe do Exército fez uma declaração.
R. Num momento dado, houve uma frase infeliz das Forças Armadas, não vou negar. Combinava duas coisas: a decisão das Forças Armadas de não sair para enfrentar o povo, e nesse contexto o comandante sugere que o presidente dê um passo para o lado. Devia ter dito isto? Não. Podia ter dito? Não. Que essa frase faça esquecer esses antecedentes e se transforme em um golpe de Estado é inaceitável.
P. No domingo, a OEA recomendou novas eleições, e Morales anunciou uma convocação eleitoral. Isso não era suficiente?
R. Morales convoca eleições sem mencionar uma palavra do relatório de horas antes da OEA. Quando na Rádio Panamericana lhe perguntam sobre o relatório, o desqualifica e diz que tem uma influência política. Ele não propõe um processo eleitoral nos termos que a OEA determina.
P. Mas ele havia decidido naquele dia anunciar eleições depois do relatório da OEA.
R. Não. Decide convocar eleições porque já não tem mais as condições adequadas para governar a Bolívia. O seguimento dos fatos, negar que houve fraude, negar-se a convocar um segundo turno ou forçar o TSE [Tribunal Supremo Eleitoral] a fechar o cômputo, dita a linha diversionista do presidente Morales. Nesse momento a convocação de eleições, na lógica de Morales, era insuficiente para o conjunto do país que estava pedindo era a sua renúncia. Mas afirma que o golpe de Estado é dado por um general sentado numa cadeira que diz: “Sugerimos que dê um passo ao lado”... Houve um movimento, tanques na rua?
P. Então, por que o ainda comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, faz esse pronunciamento?
R. Essa é uma pergunta que se deve fazer a Kaliman, não a mim.
P. Que sensação tem do ocorrido nos últimos dias?
R. Morales gerou violência. Sendo presidente, convocou aos movimentos que o seguiam a bloquearem a cidade de La Paz. O presidente, tão admirado pela esquerda latino-americana e europeia com sua má consciência rousseauniana, propõe, estando no Governo, o bloqueio aos seus compatriotas. A comunidade internacional faz um escândalo pela humilhação imposta à prefeita de Vinto [do partido de Evo Morales], criticável e inaceitável. Nesse mesmo dia um jovem de 20 anos foi brutalmente assassinado por militantes do MAS, a pancadas, destroçaram-lhe a cabeça. Ninguém disse nada sobre esse assassinato.
P. Sim. Este jornal disse.
R. Não sei se na mesma dimensão.
P. Mencionamos ambos os casos.
R. Mas, em termos gerais, o Governo se encarregou de mostrar a senhora pintada de vermelho, o que é terrível, e não este moço assassinado brutalmente.
P. Voltando à pergunta.
R. Estes elementos se somaram a uma decisão expressa de Morales. O que ele fez? Instruir sua renúncia, a decisão de [o ex-vice-presidente Álvaro] García Linera, da senhora [Adriana] Salvatierra, que agora nega ter renunciado à presidência do Senado, e da presidência da Câmara dos Deputados. Deixou-nos sem sucessão constitucional, com a intenção de gerar caos, vazio de poder, nos complicar a vida, porque o MAS tem dois terços na Câmara Alta e na Câmara Baixa. Além disso, decide ir-se deixando o cargo vago. Então, a sucessão é levada adiante através de uma correta interpretação do Tribunal Constitucional, que estabelece, de acordo com uma declaração do ano 2001, atualizada em 2019, que nenhum país pode ficar com um vazio de poder. Nesse momento se dá por automático o fato de que, havendo-se produzido a renúncia dos quatro níveis da sucessão, vem imediatamente o cargo mais próximo na Câmara de Senadores, que é a senhora Jeanine Áñez.
P. E por que o mesmo Tribunal Constitucional que avaliza a reeleição de Morales agora dá aval a Áñez?
R. Porque estamos em uma situação de crise dramática, de um poder eleitoral nas mãos do MAS. Desconheço as razões pelas quais o presidente do Tribunal Constitucional, provavelmente em um ato de expiação de caráter político… Mas não me corresponde dizê-lo. Que o Constitucional tenha feito algo ruim não o exime de fazer algo bom depois. É evidente, além disso, que nessas 48 horas houve uma negociação em que a comunidade internacional participou para trazer os representantes do MAS à razão. Não houve possibilidade de chegar a um acordo.
P. Consta-lhe que tudo isto tenha acontecido?
R. Não vou além disso. Essas 48 horas foram uma tentativa ao máximo de conseguir um resultado pela lógica de uma Assembleia Constituinte. Felizmente existia essa declaração do ano 2001.
P. As últimas declarações de Adriana Salvatierra, em que retificou e disse que não tinha renunciado formalmente, não podem alterar o cenário?
R. Não, porque a declaração do Tribunal Constitucional é o direito que tem esse tribunal sobre qualquer interpretação que queira fazer da Constituição. E um senhor que está no exílio não pode bloquear a governabilidade de um país.
P. O que acha do Gabinete de Jeanine Áñez?
R. Acho que o Gabinete da senhora Áñez não deve ser julgado em função das pessoas e sua filiação política, e sim ao longo do que fizer neste período muito curto que ela tem. Primeiro, a presidenta deu sinais de sentido democrático e de decisão. Segundo, este Governo tem um só objetivo, que é a convocação de um processo eleitoral. Terceiro, tem uma obrigação: neutralidade, independência e imparcialidade com relação ao processo eleitoral. Assumo que ela tem que nomear um Gabinete e que está vinculado à sua militância política, mas não posso nem devo julgar. Serão seus atos que o definirão. Além disso, resta meio Gabinete por nomear.
P. Mas por enquanto há perfis ultraconservadores.
R. Os perfis podem ser os que são. Neste caso é preciso entender a circunstância de emergência e a origem política da presidenta, que tem que se apoiar em alguém. Acredito que o que ela fez seja o correto.
P. A Constituição lhe dá três meses para convocar eleições, Áñez disse que convocará o mais brevemente possível, mas ainda não o fez.
R. Aqui há dois desafios. A pacificação, que é uma prioridade urgente. Entendo que além do controle da ordem pela via da Polícia, deve trabalhar na abertura de um diálogo com os setores mobilizados para lhes fazer entender que o caminho correto é o processo eleitoral. Isso é muito importante. Segundo, para a legitimidade deste Governo não somente com vistas ao país, e sim à comunidade internacional, é crucial o pilar da convocação de eleições. Nesse contexto, acredito que seja imperativo e, se pudesse aconselhar à presidenta, acredito que não deveríamos passar deste domingo para que haja uma convocação oficial do processo eleitoral. Idealmente com um prazo de validade, tanto do período que corresponde a ela como da data para a realização das eleições. Entendo perfeitamente e consultei especialistas no tema, que dizem que o possível ser no final de fevereiro, e idealmente seria em abril. Mas não sei se os prazos são suficientes.
P. Mas independentemente dos prazos é preciso dizer.
R. O que me parece imperativo é que a presidenta estabeleça uma norma. Há uma dificuldade, que se chama Assembleia Legislativa Plurinacional. Teoricamente, é a Assembleia a que tem que levar adiante essa convocação. Se a bloquear por causa da maioria do MAS, acho que seria pertinente uma declaração com um decreto de exceção. Estou falando em nome estritamente pessoal. Mas é muito importante que a comunidade internacional e o país saibam que ela definiu um dia e uma hora para as eleições.
P. Os protestos e seus líderes, com nomes como Camacho e Pumari, que atuaram quase de costas ao resto dos dirigentes e manifestantes, passaram uma imagem de oposição ultraconservadora, nitidamente de direita.
R. Comecemos por uma coisa. Ser de esquerda, de centro e direita é uma definição do século XX que não se encaixa nestes momentos. Segundo ponto: ser de direita ultraconservadora é um direito. Qualquer cidadão pode ser de direita ultraconservadora, de esquerda radical, de centro liberal, de centro social-democrata. É como se houvesse um mundo de bons e maus. Eu estou muito longe dos ultraconservadores, não compartilho seu ideário, absolutamente. Mas respeito profundamente todos enquanto respeitarem a democracia. Nisso sou de um republicanismo liberal radical. Dito isto, eu faria um monumento à oposição boliviana a Evo Morales. Porque ela sofreu um Governo autoritário, que utilizou aos promotores para perseguirem. Não é que Morales não tenha tido méritos, que teve, o grande problema de Morales é que envileceu, corrompeu e cooptou o mundo indígena. E cometeu flagrantes atos de violação da Constituição, para não falar da quantidade de irregularidades insólitas, contratos diretos, escolhas a dedo. O que me indigna é a visão idílica que se tem do presidente Morales.
P. Tampouco existe uma visão idílica.
R. Se hoje em dia estamos discutindo se um senhor que cometeu uma fraude monumental, que é um candidato ilegal, sofreu um golpe de Estado! O golpe de Estado dá quem faz a fraude. Eu sou vítima de uma fraude monumental e tinha o direito ao segundo turno. E apesar disso não fiz uma reclamação constitucional e não propus uma insurreição. Acho que me comportei com respeito para entender a crise.
P. Quando convocarem eleições, o senhor voltará a encabeçar a candidatura do Comunidade Cidadã?
R. Nossa aliança se mantém inalterada. E estabeleceremos uma candidatura do Comunidade Cidadã. Quando digo candidatura em abstrato não quer dizer que não a tenha [eu mesmo]. Mas temos que fazer uma leitura correta e adequada da relação dos jovens com a política. Os jovens nos deram uma lição extraordinária de mobilização. Os jovens procuram renovação, e eu estou disposto a avaliá-lo. Mas a política vai se reconfigurar, porque o Movimento ao Socialismo já não terá Evo Morales e Álvaro García Linera e ficará muito afetado, e há um eleitor que está numa linha progressista que tem que decidir se seguirá esses líderes ou se aproximará de outras lideranças. E esse é um contexto importante, há um campo político que está se recompondo.
MARCELO PÉREZ e FRANCESCO MANETTO
La Paz 15 NOV 2019 - 11:29 BRT
Carlos Mesa Gisbert (La Paz, 1953) foi o principal adversário de Evo Morales nas eleições de 20 de outubro do ano passado. Presidente da Bolívia entre 2003 e 2005, depois optou por se retirar da linha de frente. Retornou para liderar a coalizão Comunidade Cidadã na última eleição, e desde que a totalização eletrônica dos votos foi suspensa, na noite do primeiro turno, ele denuncia uma tentativa de fraude. Segundo os resultados divulgados pelo Tribunal Supremo Eleitoral após horas de paralisação, Morales venceu sem a necessidade de disputar um segundo turno. Enquanto uma onda de protestos sacudia o país, a Organização dos Estados Americanos (OEA) fez uma auditoria que apontou várias irregularidades. O relatório foi divulgado no domingo passado, e Morales então anunciou que as eleições seriam repetidas. Horas mais tarde, porém, pressionado pela cúpula militar, renunciou ao cargo que ocupou durante 14 anos.
Carlos Mesa, que teve uma formação política de esquerda, é escritor, ensaísta e jornalista. Defende que o Governo interino encarregado de convocar novas eleições faça isso o quanto antes. “É muito importante que a comunidade internacional e o país saibam que se definiu um dia e uma hora para as eleições”, diz.
Pergunta. Está consciente de que fora da Bolívia muitos viram o que aconteceu no país como um golpe de Estado, ou um processo semelhante a um golpe de Estado, sobretudo pelo papel do chefe do Exército? Qual é sua posição?
Resposta. Comecemos por dizer que o presidente Evo Morales, em seu terceiro mandato, violou a Constituição, comecemos por dizer que as disposições transitórias da Constituição de 2009 estabelecem com clareza que todos os mandatos presidenciais anteriores à aprovação da Constituição de 2009 serão contatos como válidos para a limitação de dois períodos consecutivos. Morales tinha sido presidente de 2010 a 2015 em seu segundo mandato. O Tribunal Constitucional interpretou que, como tínhamos mudado o nome do país, este era um novo país e não se podia considerar aquele artigo das disposições transitórias. Portanto, este período que terminou já é inconstitucional. O presidente consultou num referendo sobre a modificação do artigo 168, e o povo lhe deu as costas. Consequentemente, temos uma primeira violação da Constituição, uma segunda violação, uma candidatura ilegal. E em seus dois últimos períodos o presidente controlou os quatro poderes do Estado. Isso é um golpe de Estado, um golpe de Estado de fato. Finalmente, há uma fraude monumental reconhecida pela Organização dos Estados Americanos (OEA) no relatório da missão de observação eleitoral, no relatório final e no discurso do secretário-geral da OEA. Não pode ser possível que com esses elementos incontestáveis o autor de uma fraude se permita dizer que há um golpe de Estado depois de 21 dias de resistência pacífica do povo boliviano.
P. Mas o chefe do Exército fez uma declaração.
R. Num momento dado, houve uma frase infeliz das Forças Armadas, não vou negar. Combinava duas coisas: a decisão das Forças Armadas de não sair para enfrentar o povo, e nesse contexto o comandante sugere que o presidente dê um passo para o lado. Devia ter dito isto? Não. Podia ter dito? Não. Que essa frase faça esquecer esses antecedentes e se transforme em um golpe de Estado é inaceitável.
P. No domingo, a OEA recomendou novas eleições, e Morales anunciou uma convocação eleitoral. Isso não era suficiente?
R. Morales convoca eleições sem mencionar uma palavra do relatório de horas antes da OEA. Quando na Rádio Panamericana lhe perguntam sobre o relatório, o desqualifica e diz que tem uma influência política. Ele não propõe um processo eleitoral nos termos que a OEA determina.
P. Mas ele havia decidido naquele dia anunciar eleições depois do relatório da OEA.
R. Não. Decide convocar eleições porque já não tem mais as condições adequadas para governar a Bolívia. O seguimento dos fatos, negar que houve fraude, negar-se a convocar um segundo turno ou forçar o TSE [Tribunal Supremo Eleitoral] a fechar o cômputo, dita a linha diversionista do presidente Morales. Nesse momento a convocação de eleições, na lógica de Morales, era insuficiente para o conjunto do país que estava pedindo era a sua renúncia. Mas afirma que o golpe de Estado é dado por um general sentado numa cadeira que diz: “Sugerimos que dê um passo ao lado”... Houve um movimento, tanques na rua?
P. Então, por que o ainda comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, faz esse pronunciamento?
R. Essa é uma pergunta que se deve fazer a Kaliman, não a mim.
P. Que sensação tem do ocorrido nos últimos dias?
R. Morales gerou violência. Sendo presidente, convocou aos movimentos que o seguiam a bloquearem a cidade de La Paz. O presidente, tão admirado pela esquerda latino-americana e europeia com sua má consciência rousseauniana, propõe, estando no Governo, o bloqueio aos seus compatriotas. A comunidade internacional faz um escândalo pela humilhação imposta à prefeita de Vinto [do partido de Evo Morales], criticável e inaceitável. Nesse mesmo dia um jovem de 20 anos foi brutalmente assassinado por militantes do MAS, a pancadas, destroçaram-lhe a cabeça. Ninguém disse nada sobre esse assassinato.
P. Sim. Este jornal disse.
R. Não sei se na mesma dimensão.
P. Mencionamos ambos os casos.
R. Mas, em termos gerais, o Governo se encarregou de mostrar a senhora pintada de vermelho, o que é terrível, e não este moço assassinado brutalmente.
P. Voltando à pergunta.
R. Estes elementos se somaram a uma decisão expressa de Morales. O que ele fez? Instruir sua renúncia, a decisão de [o ex-vice-presidente Álvaro] García Linera, da senhora [Adriana] Salvatierra, que agora nega ter renunciado à presidência do Senado, e da presidência da Câmara dos Deputados. Deixou-nos sem sucessão constitucional, com a intenção de gerar caos, vazio de poder, nos complicar a vida, porque o MAS tem dois terços na Câmara Alta e na Câmara Baixa. Além disso, decide ir-se deixando o cargo vago. Então, a sucessão é levada adiante através de uma correta interpretação do Tribunal Constitucional, que estabelece, de acordo com uma declaração do ano 2001, atualizada em 2019, que nenhum país pode ficar com um vazio de poder. Nesse momento se dá por automático o fato de que, havendo-se produzido a renúncia dos quatro níveis da sucessão, vem imediatamente o cargo mais próximo na Câmara de Senadores, que é a senhora Jeanine Áñez.
P. E por que o mesmo Tribunal Constitucional que avaliza a reeleição de Morales agora dá aval a Áñez?
R. Porque estamos em uma situação de crise dramática, de um poder eleitoral nas mãos do MAS. Desconheço as razões pelas quais o presidente do Tribunal Constitucional, provavelmente em um ato de expiação de caráter político… Mas não me corresponde dizê-lo. Que o Constitucional tenha feito algo ruim não o exime de fazer algo bom depois. É evidente, além disso, que nessas 48 horas houve uma negociação em que a comunidade internacional participou para trazer os representantes do MAS à razão. Não houve possibilidade de chegar a um acordo.
P. Consta-lhe que tudo isto tenha acontecido?
R. Não vou além disso. Essas 48 horas foram uma tentativa ao máximo de conseguir um resultado pela lógica de uma Assembleia Constituinte. Felizmente existia essa declaração do ano 2001.
P. As últimas declarações de Adriana Salvatierra, em que retificou e disse que não tinha renunciado formalmente, não podem alterar o cenário?
R. Não, porque a declaração do Tribunal Constitucional é o direito que tem esse tribunal sobre qualquer interpretação que queira fazer da Constituição. E um senhor que está no exílio não pode bloquear a governabilidade de um país.
P. O que acha do Gabinete de Jeanine Áñez?
R. Acho que o Gabinete da senhora Áñez não deve ser julgado em função das pessoas e sua filiação política, e sim ao longo do que fizer neste período muito curto que ela tem. Primeiro, a presidenta deu sinais de sentido democrático e de decisão. Segundo, este Governo tem um só objetivo, que é a convocação de um processo eleitoral. Terceiro, tem uma obrigação: neutralidade, independência e imparcialidade com relação ao processo eleitoral. Assumo que ela tem que nomear um Gabinete e que está vinculado à sua militância política, mas não posso nem devo julgar. Serão seus atos que o definirão. Além disso, resta meio Gabinete por nomear.
P. Mas por enquanto há perfis ultraconservadores.
R. Os perfis podem ser os que são. Neste caso é preciso entender a circunstância de emergência e a origem política da presidenta, que tem que se apoiar em alguém. Acredito que o que ela fez seja o correto.
P. A Constituição lhe dá três meses para convocar eleições, Áñez disse que convocará o mais brevemente possível, mas ainda não o fez.
R. Aqui há dois desafios. A pacificação, que é uma prioridade urgente. Entendo que além do controle da ordem pela via da Polícia, deve trabalhar na abertura de um diálogo com os setores mobilizados para lhes fazer entender que o caminho correto é o processo eleitoral. Isso é muito importante. Segundo, para a legitimidade deste Governo não somente com vistas ao país, e sim à comunidade internacional, é crucial o pilar da convocação de eleições. Nesse contexto, acredito que seja imperativo e, se pudesse aconselhar à presidenta, acredito que não deveríamos passar deste domingo para que haja uma convocação oficial do processo eleitoral. Idealmente com um prazo de validade, tanto do período que corresponde a ela como da data para a realização das eleições. Entendo perfeitamente e consultei especialistas no tema, que dizem que o possível ser no final de fevereiro, e idealmente seria em abril. Mas não sei se os prazos são suficientes.
P. Mas independentemente dos prazos é preciso dizer.
R. O que me parece imperativo é que a presidenta estabeleça uma norma. Há uma dificuldade, que se chama Assembleia Legislativa Plurinacional. Teoricamente, é a Assembleia a que tem que levar adiante essa convocação. Se a bloquear por causa da maioria do MAS, acho que seria pertinente uma declaração com um decreto de exceção. Estou falando em nome estritamente pessoal. Mas é muito importante que a comunidade internacional e o país saibam que ela definiu um dia e uma hora para as eleições.
P. Os protestos e seus líderes, com nomes como Camacho e Pumari, que atuaram quase de costas ao resto dos dirigentes e manifestantes, passaram uma imagem de oposição ultraconservadora, nitidamente de direita.
R. Comecemos por uma coisa. Ser de esquerda, de centro e direita é uma definição do século XX que não se encaixa nestes momentos. Segundo ponto: ser de direita ultraconservadora é um direito. Qualquer cidadão pode ser de direita ultraconservadora, de esquerda radical, de centro liberal, de centro social-democrata. É como se houvesse um mundo de bons e maus. Eu estou muito longe dos ultraconservadores, não compartilho seu ideário, absolutamente. Mas respeito profundamente todos enquanto respeitarem a democracia. Nisso sou de um republicanismo liberal radical. Dito isto, eu faria um monumento à oposição boliviana a Evo Morales. Porque ela sofreu um Governo autoritário, que utilizou aos promotores para perseguirem. Não é que Morales não tenha tido méritos, que teve, o grande problema de Morales é que envileceu, corrompeu e cooptou o mundo indígena. E cometeu flagrantes atos de violação da Constituição, para não falar da quantidade de irregularidades insólitas, contratos diretos, escolhas a dedo. O que me indigna é a visão idílica que se tem do presidente Morales.
P. Tampouco existe uma visão idílica.
R. Se hoje em dia estamos discutindo se um senhor que cometeu uma fraude monumental, que é um candidato ilegal, sofreu um golpe de Estado! O golpe de Estado dá quem faz a fraude. Eu sou vítima de uma fraude monumental e tinha o direito ao segundo turno. E apesar disso não fiz uma reclamação constitucional e não propus uma insurreição. Acho que me comportei com respeito para entender a crise.
P. Quando convocarem eleições, o senhor voltará a encabeçar a candidatura do Comunidade Cidadã?
R. Nossa aliança se mantém inalterada. E estabeleceremos uma candidatura do Comunidade Cidadã. Quando digo candidatura em abstrato não quer dizer que não a tenha [eu mesmo]. Mas temos que fazer uma leitura correta e adequada da relação dos jovens com a política. Os jovens nos deram uma lição extraordinária de mobilização. Os jovens procuram renovação, e eu estou disposto a avaliá-lo. Mas a política vai se reconfigurar, porque o Movimento ao Socialismo já não terá Evo Morales e Álvaro García Linera e ficará muito afetado, e há um eleitor que está numa linha progressista que tem que decidir se seguirá esses líderes ou se aproximará de outras lideranças. E esse é um contexto importante, há um campo político que está se recompondo.
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