Pular para o conteúdo principal

Luiz Weis: Notícia de uma agressão

Mais um bom artigo sobre o desastrado Fernando Henrique Cardoso. Este foi originalmente publicado no blog Verbo Solto.

Num formidável contraste com o Estado, que abafou em 10 linhetas de um box e reduziu a uma “alfinetada” a invulgar contribuição do ex-presidente Fernando Henrique, sexta-feira, para o aviltamento do debate público no Brasil - sua fala sobre o “desprezo” de Lula pela educação - a Folha deu à baixaria até merecida chamada no alto da primeira página.

O jornal bateu também o Globo ao repercutir, como se diz nas redações, o infausto acontecimento. Em vez de citar os suspeitos de sempre – políticos do governo e da oposição – e, além de ouvir algumas das figuras carimbadas da ciência política brasileira, teve uma brilhante sacada.

Antes de ir a ela, os principais trechos da enormidade do ex-presidente:

“Nosso partido [o PSDB] tem gente acadêmica, não temos vergonha disso. Tem gente que sabe falar mais de uma língua, e também sabemos falar muito bem a nossa língua. [...] E nós faremos o possível e o impossível para que saibam falar bem a nossa língua. [...] Queremos brasileiros bem educados, e não liderados por gente que despreza a educação, a começar pela própria.”

A sacada da Folha foi entrevistar o segundo mais importante líder sindical brasileiro depois de Lula e seu “sucessor” no ABC, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, hoje deputado federal pelo PT.

Isso porque, diferentemente do seu mentor, Vicentinho correu atrás do prejuízo da falta de estudo, fez madureza, vestibular, e se formou em direito, em 2004.

“Prefiro alguém que não fez faculdade e faz o que Lula faz pela educação do país”, retrucou.

Claro que, antes de Lula, Fernando Henrique foi o presidente que mais fez pela educação do país – e muitas das políticas conduzidas pelo respeitado (mesmo pelos tucanos) ministro Fernando Haddad levam adiante as da era FHC.

Mas, tratando-se de quem se trata, seria de abalar o mundo se um professor-presidente de seu gabarito descurasse da educação. Ou, conforme a analogia jornalística, cachorro que morde homem não é notícia; o contrário sim. Daí a pertinência das palavras de Vicentinho.

Isso posto, vamos nos entender:

1. Lula, como incontáveis milhões de brasileiros, não pôde ir além da escola elementar. Quando podia, não foi. Presidente, chegou a dizer que ler é tedioso. E, quando fala ao povo, capricha de propósito no mau português – para sedimentar a percepção, essencialmente correta, de que ele é “um de nós”. É um desserviço.

2. Ainda assim, o que Fernando Henrique fez ontem na convenção tucana é imperdoável. [Mesmo quem discordar desse juízo, reconhecerá que foi algo importante, o que a Folha captou melhor do que a concorrência.]

É imperdoável por ser um ataque pessoal rasteiro, incompatível com a boa educação, em qualquer sentido do termo, e principalmente com a civilidade que não pode ser varrida do combate político, sob pena de degradá-lo em briga de botequim – o que, incidentalmente, já é uma realidade na blogosfera.

Ronald Reagan, o ator-presidente republicano, era um chucro. Não sabia qual o lado de cima e o de baixo de um gráfico. Detestava ler. Mas nunca o seu antecessor democrata Jimmy Carter se valeu disso para chutar-lhe o baixo ventre.

George W. Bush passou boa parte do tempo na Universidade Yale – onde só ingressou graças ao poder, à influência e ao dinheiro do pai – enchendo a cara e se drogando. Só não é monoglota porque não existe político fazendo carreira no Texas sem aprender espanhol. A sua ignorância é ampla, geral, irrestrita – e arquiconhecida. Mas nunca o seu antecessor democrata Bill Clinton se valeu disso para dar-lhe uma canelada.

Sobra a questão do porquê da agressão de Fernando Henrique. À Folha, a socióloga petista Maria Victoria Benevides atribui a violência verbal do ex-presidente a “uma constrangedora incapacidade de controlar sentimentos como inveja e ciúme”.

Já o seu amigo próximo e antigo colega de universidade Leôncio Martins Rodrigues, acha que há lógica na atitude. Segundo ele, o discurso inteiro de FHC serve, entre outras coisas, para “elevar o ânimo bélico dos tucanos, que anda em baixa” – embora admita o efeito bumerangue.

“Atacar lideranças em alta pode ser negativo para os autores”, especula.

Se assim é, deve espelhar o sentimento de grande parcela dos brasileiros informados do episódio a carta que abre o Painel da Folha de hoje, assinada por Eustáquio Moreira, de São Paulo.

“Vergonhosa e vulgar a posição do ex-presidente [...]. O discurso de FHC está cheio de ressentimento de classe e de desprezo pelos mais pobres”, o leitor escreveu. “E esta é exatamente a marca do PSDB que o povo brasileiro rejeita [...].”

Em política, vale não necessariamente o que é, mas o que parece – e geralmente trazido pela mídia.

P.S. O nome da coisa [2]

A colunista Dora Kramer pegou na veia do em geral falso problema das diferenças entre o mensalão do PT e o do PSDB. [Ver neste blog "O nome da coisa", em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/blogs.asp?id=
{33896449-73FE-42F1-B7B1-28E92A1E10DC}&id_blog=3]

Escreve ela hoje no Estado:

“O essencial nos dois casos não é o destino dado ao dinheiro. O fundamental é sua natureza, pública, e os métodos para obtê-lo, desvio mediante contratos fraudulentos nas administrações estadual e federal. Isso só tem um nome: corrupção.”

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...