O que vai abaixo é o artigo do autor destas Entrelinhas para o Correio da Cidadania. Em primeira mão para os leitores do blog.
A pesquisa CNT-Sensus divulgada na segunda-feira apresentou uma única grande novidade: mais da metade dos brasileiros são favoráveis a uma mudança constitucional para permitir ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva a disputa por mais um mandato. Como era de se esperar, a enquete já começou a provocar calafrios na oposição e chiliques nos colunistas conservadores.
O assunto é interessante e merece ser analisado fora do calor das paixões políticas. Infelizmente, a pergunta do instituto Sensus não foi bem formulada e não há como saber se os entrevistados opinaram em relação a apenas mais uma reeleição, para Lula especificamente, ou se seriam favoráveis ao fim da regra que limita o número de vezes que um político pode concorrer ao mesmo cargo executivo. Este detalhe é importante e deveria ser objeto de análise na próxima enquete.
A jovem democracia brasileira tem dado sucessivas demonstrações de que está amadurecendo rapidamente. De 1989, quando a população reconquistou o direito de votar para presidente da República, para cá, os avanços são evidentes. É bom lembrar que logo o primeiro presidente eleito pelo voto direto – Fernando Collor de Mello – foi afastado do cargo sem trauma ou sugestões golpistas. Apesar das muitas críticas, a urna eletrônica tem se mostrado um instrumento eficiente para inibir e impedir fraudes mais grosseiras que ocorriam especialmente no interior do país.
É evidente que ainda há muitas distorções na legislação, especialmente em relação ao financiamento das campanhas, que torna as candidaturas desiguais e permite uma influência nefasta do poder econômico. A tese do financiamento público das campanhas vem ganhando força e pode ser aprovada em breve no Congresso, o que deverá colaborar para a depuração do sistema, embora seja correto reconhecer que a medida não tem força suficiente para acabar de vez com as variadas formas de "caixa 2" e corrupção.
Outro problema da democracia brasileira é na verdade um paradoxo. Por jovem, a cada eleição novas regras são introduzidas, muitas delas com o objetivo de deputar o sistema eleitoral, outras puramente casuísticas. Alguns exemplos ajudam a entender a questão, que no fundo é complexa: em 1989, era permitido às emissoras de televisão editar livremente os debates entre os candidatos, procedimento hoje impensável. E foi justamente o comportamento desleal e manipulador da TV Globo no debate entre Collor e Lula que provocou nos departamentos jurídicos dos partidos políticos a exigência de regras claras, em geral assinadas por todos os envolvidos, de modo a coibir a manipulação das imagens.
Outro caso: até a eleição de 1994, o governante em cargo executivo não podia concorrer à reeleição. Como Fernando Henrique Cardoso havia conseguido conciliar as elites em torno do projeto neoliberal, de execução complicada, e gozava de boa popularidade em função da estabilidade da economia no período pré-desvalorização cambial, casuisticamente o Congresso aprovou o instituto da reeleição, que seria permitida para um mandato apenas. Na eleição de 1998, FHC se reelegeu com facilidade, no primeiro turno, e meses depois o sonho da moeda forte e preços baixos foi sepultado pelas sucessivas crises externas.
Ainda mais interessante foi o que ocorreu com a regra da verticalização das alianças eleitorais. Em 2002, supunha-se que este modelo poderia favorecer o então candidato do PSDB, José Serra, e enfraquecer o hoje presidente Lula. O tiro saiu pela culatra e Serra sofreu um desgaste enorme, sendo inclusive acusado de patrocinar um casuísmo, de tentar vencer "no tapetão", como se diz na gíria futebolística. Quatro anos depois, em 2006, nove entre dez analistas apostavam que a regra poderia favorecer a reeleição de Lula. Pois não é que o Supremo Tribunal Federal derrubou e reformou a regra, favorecendo portanto as chances do opositor de Lula, ex-governador Geraldo Alckmin?
Em tese, é desejável que a legislação eleitoral não mude de eleição para eleição, de modo que os partidos políticos possam se preparar adequadamente para os confrontos e os eleitores se acostumem com as regras do jogo. Em alguns casos, porém, não custa ouvir o que o maior interessado em toda essa história – o povão, que elege e paga os impostos que sustentam a nossa democracia – tem a dizer. Foi assim no plebiscito para definir o regime de governo do Brasil – venceu a república presidencialista, derrotando os partidários da monarquia e do parlamentarismo. Poderia ser assim também no caso do instituto da reeleição. Por que não permitir aos detentores de cargos executivos que concorram a mais de dois mandatos, como aliás já ocorre no legislativo? Qual o argumento real e racional contra esta possibilidade? Por que não deixar para a sabedoria do povo a escolha de seus governantes?
Hoje, infelizmente, a questão está mal colocada porque gira em torno da figura do presidente Lula, isto é, da hipótese de permitir ou não a ele que continue governando o Brasil. O debate da tese da reeleição ilimitada, que é bastante relevante, acaba ficando em segundo plano. Países como Alemanha, França, Itália, Portugal, Eslováquia, Chipre, Estônia, Eslovênia, Grécia e Letônia adotam a reeleição ilimitada e nunca se ouviu alguém dizer que seus presidentes são ditadores ou que o regime político em vigor seja autoritário. Ao contrário, o que se assiste é a alternância dos partidos no poder, sempre com base no voto popular, na sabedoria dos povos. O argumento de que o Brasil é diferente por ser mais pobre, com um povo menos escolarizado não pára em pé: segundo esta visão, os analfabetos, por exemplo, não deveriam ter direito ao voto. Ora, ou se acredita no sufrágio universal ou então o melhor a fazer é voltar no tempo e reintroduzir as eleições indiretas, deixar para os "sábios" a decisão de escolher os governantes.
O presidente Lula é no fundo um homem bastante conservador na política, um negociador nato. Dificilmente ele vai levantar a bandeira da reeleição ilimitada ou patrocinar a idéia de se mudar a Constituição para permitir apenas mais um mandato a ele próprio, ainda mais depois dos péssimos resultados obtidos por Hugo Chávez na Venezuela na campanha que tinha este mesmo objetivo. Ao contrário, no momento quem trabalha na surdina para mudar a legislação eleitoral e acabar com o instituto da reeleição são os tucanos José Serra e Aécio Neves, para os quais o mandato de cinco anos, sem direito do titular se reeleger é positivo por "organizar a fila" das candidaturas presidenciais – como se pode perceber, a visão tucana da política sempre acaba privilegiando a tal fila dos "eleitos" e não os direitos dos eleitores.
PSDB à parte e voltando a Lula, o mais provável é que o presidente tente maximizar a sua força política mantendo no ar a possibilidade do tal terceiro mandato, sem porém se comprometar com a bandeira. É uma jogada inteligente e legítima, até para consolidar um potencial de transferência de voto em 2010. Na política, como de resto ocorre em tudo na vida, existem fatores imponderáveis. Neste caso, o imponderável é o povo. Segundo a CNT/Sensus, 50% dos eleitores querem Lula mais quatro anos já a partir de 2010, contra 70% que aprovam o seu governo. O que fazer se a taxa pró-reeleição começar a se aproximar da taxa de aprovação do presidente? A tentação vai ser grande, talvez maior do que o PT possa suportar.
A pesquisa CNT-Sensus divulgada na segunda-feira apresentou uma única grande novidade: mais da metade dos brasileiros são favoráveis a uma mudança constitucional para permitir ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva a disputa por mais um mandato. Como era de se esperar, a enquete já começou a provocar calafrios na oposição e chiliques nos colunistas conservadores.
O assunto é interessante e merece ser analisado fora do calor das paixões políticas. Infelizmente, a pergunta do instituto Sensus não foi bem formulada e não há como saber se os entrevistados opinaram em relação a apenas mais uma reeleição, para Lula especificamente, ou se seriam favoráveis ao fim da regra que limita o número de vezes que um político pode concorrer ao mesmo cargo executivo. Este detalhe é importante e deveria ser objeto de análise na próxima enquete.
A jovem democracia brasileira tem dado sucessivas demonstrações de que está amadurecendo rapidamente. De 1989, quando a população reconquistou o direito de votar para presidente da República, para cá, os avanços são evidentes. É bom lembrar que logo o primeiro presidente eleito pelo voto direto – Fernando Collor de Mello – foi afastado do cargo sem trauma ou sugestões golpistas. Apesar das muitas críticas, a urna eletrônica tem se mostrado um instrumento eficiente para inibir e impedir fraudes mais grosseiras que ocorriam especialmente no interior do país.
É evidente que ainda há muitas distorções na legislação, especialmente em relação ao financiamento das campanhas, que torna as candidaturas desiguais e permite uma influência nefasta do poder econômico. A tese do financiamento público das campanhas vem ganhando força e pode ser aprovada em breve no Congresso, o que deverá colaborar para a depuração do sistema, embora seja correto reconhecer que a medida não tem força suficiente para acabar de vez com as variadas formas de "caixa 2" e corrupção.
Outro problema da democracia brasileira é na verdade um paradoxo. Por jovem, a cada eleição novas regras são introduzidas, muitas delas com o objetivo de deputar o sistema eleitoral, outras puramente casuísticas. Alguns exemplos ajudam a entender a questão, que no fundo é complexa: em 1989, era permitido às emissoras de televisão editar livremente os debates entre os candidatos, procedimento hoje impensável. E foi justamente o comportamento desleal e manipulador da TV Globo no debate entre Collor e Lula que provocou nos departamentos jurídicos dos partidos políticos a exigência de regras claras, em geral assinadas por todos os envolvidos, de modo a coibir a manipulação das imagens.
Outro caso: até a eleição de 1994, o governante em cargo executivo não podia concorrer à reeleição. Como Fernando Henrique Cardoso havia conseguido conciliar as elites em torno do projeto neoliberal, de execução complicada, e gozava de boa popularidade em função da estabilidade da economia no período pré-desvalorização cambial, casuisticamente o Congresso aprovou o instituto da reeleição, que seria permitida para um mandato apenas. Na eleição de 1998, FHC se reelegeu com facilidade, no primeiro turno, e meses depois o sonho da moeda forte e preços baixos foi sepultado pelas sucessivas crises externas.
Ainda mais interessante foi o que ocorreu com a regra da verticalização das alianças eleitorais. Em 2002, supunha-se que este modelo poderia favorecer o então candidato do PSDB, José Serra, e enfraquecer o hoje presidente Lula. O tiro saiu pela culatra e Serra sofreu um desgaste enorme, sendo inclusive acusado de patrocinar um casuísmo, de tentar vencer "no tapetão", como se diz na gíria futebolística. Quatro anos depois, em 2006, nove entre dez analistas apostavam que a regra poderia favorecer a reeleição de Lula. Pois não é que o Supremo Tribunal Federal derrubou e reformou a regra, favorecendo portanto as chances do opositor de Lula, ex-governador Geraldo Alckmin?
Em tese, é desejável que a legislação eleitoral não mude de eleição para eleição, de modo que os partidos políticos possam se preparar adequadamente para os confrontos e os eleitores se acostumem com as regras do jogo. Em alguns casos, porém, não custa ouvir o que o maior interessado em toda essa história – o povão, que elege e paga os impostos que sustentam a nossa democracia – tem a dizer. Foi assim no plebiscito para definir o regime de governo do Brasil – venceu a república presidencialista, derrotando os partidários da monarquia e do parlamentarismo. Poderia ser assim também no caso do instituto da reeleição. Por que não permitir aos detentores de cargos executivos que concorram a mais de dois mandatos, como aliás já ocorre no legislativo? Qual o argumento real e racional contra esta possibilidade? Por que não deixar para a sabedoria do povo a escolha de seus governantes?
Hoje, infelizmente, a questão está mal colocada porque gira em torno da figura do presidente Lula, isto é, da hipótese de permitir ou não a ele que continue governando o Brasil. O debate da tese da reeleição ilimitada, que é bastante relevante, acaba ficando em segundo plano. Países como Alemanha, França, Itália, Portugal, Eslováquia, Chipre, Estônia, Eslovênia, Grécia e Letônia adotam a reeleição ilimitada e nunca se ouviu alguém dizer que seus presidentes são ditadores ou que o regime político em vigor seja autoritário. Ao contrário, o que se assiste é a alternância dos partidos no poder, sempre com base no voto popular, na sabedoria dos povos. O argumento de que o Brasil é diferente por ser mais pobre, com um povo menos escolarizado não pára em pé: segundo esta visão, os analfabetos, por exemplo, não deveriam ter direito ao voto. Ora, ou se acredita no sufrágio universal ou então o melhor a fazer é voltar no tempo e reintroduzir as eleições indiretas, deixar para os "sábios" a decisão de escolher os governantes.
O presidente Lula é no fundo um homem bastante conservador na política, um negociador nato. Dificilmente ele vai levantar a bandeira da reeleição ilimitada ou patrocinar a idéia de se mudar a Constituição para permitir apenas mais um mandato a ele próprio, ainda mais depois dos péssimos resultados obtidos por Hugo Chávez na Venezuela na campanha que tinha este mesmo objetivo. Ao contrário, no momento quem trabalha na surdina para mudar a legislação eleitoral e acabar com o instituto da reeleição são os tucanos José Serra e Aécio Neves, para os quais o mandato de cinco anos, sem direito do titular se reeleger é positivo por "organizar a fila" das candidaturas presidenciais – como se pode perceber, a visão tucana da política sempre acaba privilegiando a tal fila dos "eleitos" e não os direitos dos eleitores.
PSDB à parte e voltando a Lula, o mais provável é que o presidente tente maximizar a sua força política mantendo no ar a possibilidade do tal terceiro mandato, sem porém se comprometar com a bandeira. É uma jogada inteligente e legítima, até para consolidar um potencial de transferência de voto em 2010. Na política, como de resto ocorre em tudo na vida, existem fatores imponderáveis. Neste caso, o imponderável é o povo. Segundo a CNT/Sensus, 50% dos eleitores querem Lula mais quatro anos já a partir de 2010, contra 70% que aprovam o seu governo. O que fazer se a taxa pró-reeleição começar a se aproximar da taxa de aprovação do presidente? A tentação vai ser grande, talvez maior do que o PT possa suportar.
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.