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Krugman: plano de Bush não funcionará

Todo mundo está de olho na crise americana, é o grande assunto deste início de ano. E sobre este assunto, vale a pena ler o artigo abaixo, publicado neste sábado na Folha de S. Paulo, do economista Paul Krugman, um dos mais lúcidos dos Estados Unidos. O texto é simples e a argumentação convence. De fato, o tal Plano Bush parece mesmo fadado ao fracasso, embora isto não signifique, necessariamente, o aprofundamento da crise, uma vez que o Fed (banco central dos EUA) está fazendo a sua parte e pode, com a diminuição da taxa básica de juros, ser mais eficaz na tentativa de evitar uma recessão de grandes proporções. Ainda assim, fica a sensação de que o governo Bush vai entrar para a história como um dos mais equivocados que já houve nos Estados Unidos e que a encrenca vai ficar mesmo para o próximo presidente resolver – logo, logo, estarão falando em herança maldita também por lá...


O equívoco do plano

PAUL KRUGMAN, DO "NEW YORK TIMES"

OS DEPUTADOS democratas e a Casa Branca chegaram a um acordo sobre um plano de estímulo econômico.
Infelizmente, o plano -que essencialmente consiste em nada mais que cortes de impostos e dá a maior parte desses cortes para pessoas em situação financeira bastante boa- parece defeituoso.
Especificamente, os democratas parecem ter recuado diante da rigidez ideológica do governo Bush, abandonando as exigências de medidas que teriam ajudado os mais necessitados. E seriam essas mesmas medidas que poderiam realmente ter tornado eficaz o plano de estímulo. São palavras duras, por isso deixem-me explicar o que está acontecendo.
Além dos descontos fiscais para empresas -que são uma história triste, para outra coluna -, o plano dá a cada trabalhador que ganhe menos de US$ 75 mil por ano um cheque de US$ 300, mais quantias adicionais para pessoas que ganham o suficiente para pagar valores substanciais de imposto de renda.
Isso garante que o grosso do dinheiro vá para pessoas que estão bem financeiramente -o que é um grande equívoco.
O objetivo de um plano de estímulo seria sustentar os gastos gerais, de modo a evitar ou limitar a profundidade de uma recessão. Se o dinheiro que o governo distribui não for gasto -se for apenas depositado nas contas bancárias das pessoas ou usado para pagar dívidas-, o plano falhará.
E mandar cheques para pessoas em boa situação financeira faz pouco ou nada para aumentar os gastos gerais. As pessoas que têm boa renda, bom crédito e emprego seguro tomam decisões de gastos com base em seu poder aquisitivo em longo prazo, e não no tamanho do último contracheque. Se você der alguns dólares a mais para essas pessoas, elas apenas os colocarão no banco.
Na verdade, isso parece ser o que aconteceu principalmente com as reduções fiscais que os norte-americanos afluentes receberam na última recessão, em 2001.
Por outro lado, o dinheiro distribuído a pessoas que não têm boa situação financeira -que estão com pouco dinheiro e vivem do salário mensal- presta um duplo serviço: alivia as dificuldades e também estimula os gastos de consumo.
É por isso que muitas das propostas de estímulo que ouvíamos até alguns dias atrás se concentravam na expansão de programas que ajudam especificamente as pessoas em dificuldades, especialmente o seguro-desemprego e o auxílio-alimentação. E foram essas as idéias de estímulo que receberam as notas mais altas em uma recente análise do Escritório de Orçamento do Congresso, apartidário.
Também se falou entre os democratas em fornecer ajuda temporária aos governos estaduais e locais, cujas finanças estão sendo massacradas pelo enfraquecimento da economia.
Como a ajuda para os desempregados, isso teria prestado um duplo serviço, evitando as dificuldades econômicas e os cortes de gastos que poderão piorar a tendência de declínio.
Mas o governo Bush aparentemente conseguiu matar todas essas idéias, em favor de um plano que dá dinheiro principalmente para os que têm menor probabilidade de gastá-lo.
Por que o governo desejaria fazer isso? Não tem nada a ver com eficiência econômica: nenhuma teoria econômica ou evidência que eu conheça diz que famílias de alta classe média tenham maior probabilidade de gastar cheques de devolução de imposto do que os pobres e desempregados.
Pelo contrário, o que parece estar acontecendo é que o governo de George W. Bush se recusa a assinar qualquer coisa que não possa ser chamada de "redução fiscal".
Por trás dessa recusa, por sua vez, está o compromisso do governo de cortar as alíquotas de impostos dos ricos enquanto bloqueia a ajuda para famílias em dificuldades -um compromisso que exige manter a mentira de que os gastos do governo são sempre ruins.
E o resultado é um plano que não apenas deixa de ajudar onde há mais necessidade, como provavelmente falhará como medida econômica.
Lembro as palavras do presidente Franklin Delano Roosevelt: "Sempre soubemos que o interesse próprio desconsiderado era moralmente ruim; agora sabemos que é economicamente ruim".
E o pior de tudo é que os democratas, que deveriam estar em uma posição forte -este governo ainda tem alguma credibilidade em política econômica?-, parecem ter cedido quase completamente.
Sim, os democratas obtiveram algumas concessões, aumentando os descontos para pessoas de baixa renda, enquanto reduziam os brindes para os afluentes. Mas basicamente permitiram que os forçassem a fazer as coisas do jeito do governo Bush.
E isso poderá ser uma coisa muito ruim.
Não sabemos com certeza quão profunda será esta próxima recessão, ou mesmo se preencherá a definição técnica de uma recessão. Mas existe uma probabilidade real de que não apenas será um grande declínio, como que a reação habitual à recessão -cortes das taxas de juros pelo Federal Reserve (o banco central dos Estados Unidos)- não bastará para reerguer a economia.
E, se isso acontecer, lamentaremos profundamente o fato de que o governo de George W. Bush insistiu, e os democratas aceitaram, um chamado plano de estímulo que simplesmente não vai funcionar.
PAUL KRUGMAN, economista, é colunista do "New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA).

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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