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Ainda sobre Jango

O ombudsman da Folha de S. Paulo, Mário Magalhães, faz uma crítica demolidora do material produzido pelo jornal sobre a denúncia de Mario Neira Barreto de que João Goulart foi assassinado a mando da ditadura militar brasileira. Vale a pena ler o material reproduzido abaixo, que faz parte da Crítica Interna de segunda-feira (28/1). No começo, o ombudsman até alivia um pouco para o lado da Folha, mas o que vem em seguida corrobora o que foi publicado neste blog às 10h47 de ontem: o jornal comeu bola e a história tem cheiro de cascata. Além do mais, conforme revela Paulo Henrique Amorim em seu blog, trata-se de pão amanhecido, pois o denunciante é manjado e já adiantou o assunto com outros jornalistas – um deles, por sinal, colunista da própria Folha. Como se vê, não se trata propriamente de um furo jornalístico...

A morte de Jango

MÁRIO MAGALHÃES

A Folha fez bem em ouvir o autoproclamado ex-agente da ditadura militar uruguaia Mario Neira Barreto (o jornal não informou se há provas ou indícios de que ele tenha de fato exercido a função).

Os crimes da ditadura militar do Brasil, das do Cone Sul e de agências como a CIA estão longe de serem esclarecidos. É obrigação jornalística dar conhecimento de testemunhos como o publicado ontem.

O alto da primeira página e os três altos de página internos, porém, constituíram exagero.

Primeiro, a versão de Neira já é conhecida pelo menos desde 2002, quando ele deu longas entrevistas contando a mesma coisa (basta buscar na internet). Nas últimas semanas, houve divulgação da entrevista que ele deu a um filho de Jango (li pela primeira vez no "Globo", há alguns dias). Seu relato aparece em livro.

Segundo, pela inconsistência da narrativa.

A chamada na capa adianta um padrão: "Para biógrafos, não há provas" (sobre a versão do uruguaio). O jornal não deveria terceirizar certas afirmações. Tudo bem em citar os biógrafos, mas a Folha não deveria se dispensar de ela mesma sustentar: não há prova alguma do que Neira afirma.

O autoproclamado ex-agente diz que seu codinome principiava por "tenente". Se ele entrou para os órgãos de segurança aos 18, 19 anos, como haveria de ser chamado de "tenente", mesmo que no nome falso?

Neira diz que monitorou Jango até sua morte. Explica que a escuta ocorria na fazenda de Maldonado. Ora, Maldonado fica no Uruguai. Jango morreu na Argentina, em uma fazenda bem distante.

Em dezembro de 1976 já havia uma ditadura militar na Argentina, ainda mais sangrenta que as de Uruguai e Brasil. Como os agentes uruguaios se arriscaram em uma operação dentro da Argentina?

Por que a CIA teria confiado a agentes uruguaios a missão de matar Goulart, e não aos argentinos?

Por que Neira não dá o nome de um só colega de operação?

Ele é conhecido por vítimas da ditadura uruguaia? A Folha checou em Montevidéu?

Quem coordenava o grupo que teria assassinado Jango?

O título "Oficiais não têm condição de responder" (pág. A4 do domingo) subscreve a versão oficial. Isso é o que dizem os militares brasileiros. Se é verdade ou não, como a Folha sabe?

No texto "Documento prova vigilância, afirma filho de Goulart" (pág. A9), o jornal se limita a transcrever afirmação. Ora, a Folha já provou, com vasta documentação histórica, que Goulart era vigiado no Uruguai. Que "agentes [o] espionaram no exílio", como diz a reportagem. A Folha deveria zelar pela sua memória, pela memória revelada em suas páginas.

Em 1976, João Goulart tinha atividade política limitada. Quem articulava era seu cunhado Leonel Brizola, que logo seria expulso do Uruguai.

Em 1976, dificilmente o delegado Sergio Paranhos Fleury falaria em nome do ditador Ernesto Geisel sobre qualquer coisa.

É possível que Jango tenha sido assassinado? Possível é. Mas os indícios até hoje conhecidos apontam para morte natural.

Como disse, se apareceu um testemunho (nem tão) novo, cabe ao jornal publicá-lo. Mas é preciso ser mais crítico e cético, da entrevista à edição.

Presidente constitucional, João Goulart foi derrubado por um golpe militar que deu início a uma ditadura. Isso é história.

Não é por isso que sua morte, a do único presidente a morrer no exílio, necessariamente tenha sido obra direta da ditadura brasileira e suas congêneres.

Erros demais 1

O quadro "Trajetória de Jango" (pág. A8 do domingo) afirma que João Goulart participou "da fundação do PTB local" em 1946, com Getúlio Vargas.

Na verdade, a fundação do PTB gaúcho (e do nacional) ocorreu em 1945. A legenda apresentou candidatos em dezembro daquele ano, também no RS.

Erros demais 2

O mesmo quadro afirma que Goulart se elegeu deputado estadual em 1946.

Salvo engano da memória, traiçoeira, não houve eleição em 1946.

Em dezembro de 1945, foram eleitos os constituintes nacionais, que depois assumiriam como senadores e deputados.

Em janeiro de 1947, houve a eleição para deputados estaduais, também com a função de elaborar as Constituições dos Estados --aí Jango deve ter concorrido.

No mesmo pleito foram eleitos mais alguns deputados federais. No então Distrito Federal, os vereadores --Carlos Lacerda foi o campeão de votos.

Erros demais 3

Há uma contradição entre o texto "Goulart foi morto a pedido do Brasil, diz ex-agente uruguaio" (pág. A4 do domingo) e o quadro "A morte de Jango" (na mesma página).

A introdução da entrevista afirma que cápsulas envenenadas seriam misturadas aos remédios de Jango "na fazenda de Maldonado".

Como, se ele estava morando em uma fazenda em Mercedes, como diz o quadro?

Maldonado fica no Uruguai, do ladinho de Punta del Este.

Mercedes, na Argentina.

O erro foi do jornal ou do entrevistado?

Erros demais 4

O texto "Goulart foi morto a pedido..." afirma que Jango "governou o Brasil de 1961 até ser deposto por um golpe militar em 31 de março de 1964".

Jango foi deposto, a rigor, em 1º de abril de 1964. Mas, tudo bem, há controvérsias.

O erro incontestável é que ele só assumiu o governo em 1963, após o plebiscito que deu fim ao regime parlamentarista. Antes, não era chefe de governo.

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