Durante as filmagens de “Nomadland”, muitos dos nômades que interpretam a si mesmos não imaginavam dividir o set com uma atriz duplamente premiada com o Oscar. De tão natural e confortável na pele de uma sem-casa, Frances McDormand trocou confidências e experiências com os atores não profissionais, passando muitas vezes despercebida - sobretudo entre aqueles pouco ou nada interessados em cinema. Sem essa sensibilidade, de quem respeita o universo que retrata, a protagonista talvez não conseguisse guiar o espectador pelas agruras e, ao mesmo tempo, pela poesia da vida na estrada. “Já comentaram que um close-up do rosto de Frances McDormand é o mesmo que visitar um parque nacional”, diz a própria Frances, de 63 anos. “Amei saber disso por dar a ideia de um rosto envelhecido e sem alterações que nos dá perspectiva, como uma paisagem natural”, afirma a atriz, que costuma criticar as colegas de profissão que aderem ao botox ou à cirurgia plástica na ânsia de aparentarem menos idade, escreve Elaine Guerini em ótima resenha no Valor, publicada sexta, 9/4. Vale a leitura.
Frances é perfeita para o papel da nômade que encabeça o longa-metragem com seis indicações ao Oscar, incluindo de melhor filme. Não apenas porque a atriz costuma dispensar maquiagem, deixar os cabelos naturalmente grisalhos e usar roupas confortáveis - até mesmo no tapete vermelho, onde já foi fotografada calçando chinelos. E sim por Frances se identificar fortemente com a protagonista de “Nomadland”, eleito o melhor drama do ano no Globo de Ouro e com previsão de estreia nas telas do Brasil no dia 15, dependendo da reabertura dos cinemas.
Fern, a personagem que colocou Frances na briga pelo próximo Oscar de melhor atriz, é descrita como uma “mulher teimosa”. Após perder o marido, o emprego e a casa, ela decide morar em sua van de segunda mão e rodar pelos EUA em busca de liberdade e de novas oportunidades.
“A principal diferença entre nós é que eu deixei aquela vida de classe operária americana aos 17 anos e nunca mais voltei. Comecei aos 17 o que Fern começou aos 61”, conta Frances, durante evento on-line realizado no último Festival de Toronto, que teve cobertura do Valor.
A ganhadora do Oscar por “Fargo” (1996), na pele da xerife grávida, e por “Três Anúncios para um Crime” (2017), no papel da mãe que busca justiça para a morte da filha, saiu cedo da casa dos pais. Para estudar teatro, Frances deixou a família na Pensilvânia, onde recebeu uma educação rígida, sobretudo do pai, Vernon McDormand, que era pastor da igreja Discípulos de Cristo.
Depois de se formar no Bethany College, na Virgínia Ocidental, e de fazer mestrado na Yale School of Drama, em Connecticut, ela se mudou para Nova York para seguir a carreira nas artes dramáticas.
“Assim que li o livro ‘Nomadland’, contatei quase imediatamente a autora”, diz Frances, que comprou os direitos da obra lançada pela jornalista Jessica Bruder, em 2017, pela sua conexão com o material.
“Nomadland: Surviving America in the 21st Century” (Terra dos Nômades: Sobrevivendo na América no Século XXI, na tradução) retrata as experiências de nômades da vida real, como Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells, que aparecem no filme roteirizado e dirigido pela chinesa Chloé Zhao. Linda foi quem mais serviu de inspiração para a personagem Fern.
“Temos aqui a essência de Fern, que também é a minha. Ela tinha um conjunto de regras de como deveria viver e, ao pegar a estrada, as oportunidades se abrem, testando a sua autossuficiência”, afirma Frances, que dormiu na van da personagem durante toda a filmagem em busca de mais autenticidade. “A ideia é instigar o espectador com a possibilidade de acompanhar o que pode acontecer com Fern quando ela vira a próxima esquina, vendo-a cada vez mais confortável enquanto testa a si mesma.”
Por responder também pela produção, Frances concorre em duas categorias no Oscar, fazendo história no prêmio. É a primeira mulher a receber indicações de melhor filme e de melhor atriz no mesmo ano, façanhas já alcançadas por atores como Clint Eastwood, com “Os Imperdoáveis” (1992) e “Menina de Ouro” (2004), entre outros.
Na premiação marcada para o dia 25, “Nomadland” ainda briga pelo Oscar de melhor fotografia (com Joshua James Richards) e os de melhor direção, roteiro adaptado e edição, com Chloé concorrendo às três estatuetas. Por disputar ainda na categoria de melhor filme, por ser outra das produtoras, Chloé é a primeira mulher a receber quatro indicações no mesmo ano. Também é a primeira mulher indicada ao prêmio de direção que não é branca, além de ajudar a marcar nesta edição, ao lado de Emerald Fennell, por “Bela Vingança”, a primeira vez em que a Academia indica duas mulheres na categoria de direção.
Vencedor também do Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza, onde sua trajetória de sucesso foi iniciada, no ano passado, “Nomadland” tem o mérito de dar rostos aos nômades. Ainda que a sociedade prefira tratá-los como invisíveis, eles teriam crescido em número nos EUA desde a crise de 2008. A própria Fern é uma vítima da quebra de fábricas, que a deixou sem emprego e condições de manter uma casa.
“Fern é a nossa guia por esse vasto e rico estilo de vida dos nômades. Em filmes anteriores, que também abordam comunidades com personagens coloridos, aprendi que é preciso ancorar a plateia em uma experiência íntima, para que ela viva a experiência como um todo, sem se perder”, conta Chloé, mais conhecida por “Songs My Brothers Taught Me” (2015) e “Domando o Destino” (2017). O primeiro filme é ambientado em uma reserva indígena, enquanto o segundo propõe uma releitura sobre o mito do caubói.
Ao capturar a vida de seus personagens nos pequenos detalhes, Chloé mostra os desafios diários, mas sem esquecer de identificar a beleza também. No caso de “Nomadland”, parte dela é revelada na irmandade que os nômades formam na estrada e na ligação, muitas vezes espiritual, que eles estabelecem com a paisagem - incluindo montanhas, florestas e desertos do Arizona, da Dakota do Sul e de Nevada.
“Quando você vive em uma van, está exposto à natureza, querendo ou não. É por isso que a maldição de não ter uma casa é também uma benção. A natureza nos traz humildade”, afirma a diretora.
Frances concorda: “Conforme fico mais velha, é importante estar no ambiente no qual a minha estrutura celular vai terminar e servir de alimento. E não se trata de concreto ou tijolo. E sim de terra”. Para a atriz, o filme é, de certa forma, um testamento do ciclo da vida humana. “Quando você vê um cacto saguaro (que tem formato parecido com um candelabro) no deserto, é quase o mesmo que olhar para Swankie, Bob Wells, Linda May ou para mim. Algo acontece quando você está nesse mundo por muito tempo.”
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