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Como as empresas estão lidando com a morte em tempos de pandemia

José Carlos Alves de Souza era, na descrição do filho Rodrigo Alves, um líder de estilo tradicional, centralizador, daqueles que dão a palavra final. Dono da rede de restaurantes Ponto Chic, onde em 1922 havia sido criado o famoso sanduíche Bauru, o empresário de 71 anos foi acometido pela covid-19 em fevereiro. Morreu no início de março. Rodrigo, 42, da terceira geração da família que adquiriu a marca em 1978, teve de tomar a frente dos negócios. “É lógico que dá uma insegurança enorme na gente”, diz ele, dividindo-se entre manter a saúde financeira de um empreendimento profundamente afetado pela pandemia, o engajamento da equipe de 110 funcionários e até mesmo o controle de qualidade da comida que era exigido pelo pai. “Eu não tenho o mesmo paladar que ele tinha, vamos ter que arrumar outra alternativa.” Rodrigo conta que passa o dia todo monitorando os assuntos que eram do pai, os e-mails, telefones, pagamentos, as senhas. “A atual situação de crise econômica não permite nem que eu viva o luto. Não tenho como ficar recolhido. Não sei ainda se isso ajuda ou atrapalha. Mais para frente eu vou descobrir.” Ele e a mãe já leram a respeito e sabem que o processo do luto tem fases e pode levar até um ano ou mais para ser superado. O drama familiar envolve o avô Antonio Alves de Souza, abalado emocionalmente. Isso porque José Carlos contraiu o vírus ao cuidar dele no hospital. O avô se recuperou da doença, mas o pai, não. “Então você pode imaginar como o meu avô se sente agora”, diz Rodrigo em depoimento para a jornalista Amália Safatle, do Valor. Vale ler a ótima e longa reportagem publicada no jornal na quinta, 1/4. Continua a seguir.


O luto é também dos funcionários, em média com 17 anos de casa. “Tem garçom que me pegou no colo. Meu pai era visto como um cara forte, e eles se assustaram quando viram que não resistiu ao vírus. Deu medo”, diz. Enquanto empresas de maior porte têm contratado serviços especializados de atendimento psicológico e programas de saúde emocional para os colaboradores, Rodrigo diz que, no caso do Ponto Chic, não há como incorrer nesses custos neste momento.

O jeito tem sido conversar pessoalmente com cada um dos funcionários. Uns se abrem mais, outros menos. Fora isso, procurou juntar as folgas a que tinham direito e deu uma pausa de três dias para que pudessem “se organizar e se entender”. Não demitiu ninguém, o que vê como a maior demonstração de comprometimento com a equipe. “Nós estamos juntos. Quando fiz o protesto em janeiro [pela abertura dos restaurantes, contrariando regra estadual], eu abri pelos empregos, eu abri por eles.”

“Aconteceu com meu pai, pode acontecer comigo. Mas a empresa não pode parar. Em um armário que fica fechado, estão guardados talões de cheque assinados, senhas e instrumentos para quem tiver de se virar. Essa é uma dica que dou para as empresas”, diz.

Providências de ordem tão prática se misturam a outras mais filosóficas, que precisam entrar na agenda das empresas e na forma como lidam com seus colaboradores, em especial neste momento em que a pandemia está descontrolada no Brasil e a nação dramaticamente se aproxima de um colapso funerário - a Associação Brasileira de Empresas e Diretores do Setor Funerário (Abredif), inclusive, recomendou às funerárias de todo o país que suspendam as férias dos funcionários.

Nesse quadro de insegurança, há empresas que acenderam a luz amarela da saúde mental. Diante do aumento da demanda por atendimento psicológico, têm investido em programas de bem-estar e em recursos humanos. Mas o primeiro passo, segundo especialistas, é falar com mais naturalidade sobre o luto e dar abertura para que seja vivido pelos colaboradores em todas as suas etapas, flexibilizando metas e rotinas - o que oferece como nunca uma oportunidade para humanizar as relações no trabalho.

Sinal que diferencia os humanos dos animais, o luto é um processo longo, complexo e incômodo. Isso porque reconhecer a perda ou a ameaça de perda pressupõe admitir a própria vulnerabilidade. “Isso tira o ‘eu’ de uma suposta estabilidade”, explica a psicanalista Maria Homem, pesquisadora do Núcleo Diversitas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professora da Faap.

Negar a morte, portanto, é o pacto primário que as pessoas fazem umas com as outras para manter a vida em funcionamento. “Para você realmente se interessar por uma bolsa ou por uma camisa com o desenho de um jacaré, você tem de esquecer que vai entrar em um processo de vulnerabilidade e morte”, diz.

Um subterfúgio é acreditar que o risco de morrer é só dos outros; outro é crer na continuação da vida após a morte, como fazem as mitologias, incluindo as religiões. “Isso revela profundamente a angústia humana com o fim da vida. O ser humano não suporta o não saber e nem o lugar de perda”, diz Maria, que vê na morte o grande tabu a ser enfrentado neste século XXI, assim como o tabu do sexo começou a ser encarado pela teoria freudiana no século XIX.

No ambiente empresarial, Maria observa que essas angústias ganham um contraste ainda maior, uma vez que as corporações são espaços orientados para produção, positividade, crescimento, lucro, entregas e ganhos. E não para desconhecimento, falta, vulnerabilidade, falhas e perdas, que são elementos constitutivos do luto.

O psicólogo Marcelo Egéa, diretor da consultoria SerTotal, avalia que a pandemia veio lembrar as empresas que a emoção faz parte delas: “A palavra emoção não é muito bem-vinda no ambiente corporativo, espaço que pretende ser racional e previsível, especialmente diante do investidor que põe o seu dinheiro lá”. Egéa faz uma analogia com as quatro cores básicas, que, combinadas entre si, dão origem a uma infinidade de outras. Da mesma forma, as quatro emoções básicas, que são alegria, raiva, medo e tristeza, criam uma miríade de sentimentos que as empresas mal têm vocabulário para expressar.

“Há um grande analfabetismo em relação à saúde emocional, e isso não é culpa de ninguém. A gente deveria aprender sobre isso desde a mais tenra idade nas escolas”, diz a psicóloga Ana Carolina Peuker, fundadora da startup Bee Touch, especializada em avaliação, rastreio e predição do risco de saúde mental por meio de software. Criada em 2012, a empresa teve crescimento de 65% no ano passado. Membro do grupo de trabalho de enfrentamento à covid-19 da Sociedade Brasileira de Psicologia, Ana Carolina elaborou uma cartilha com orientação aos gestores sobre o luto (ver quadro).

Do ponto de vista psicológico, expressar emoções e falar sobre os sentimentos que envolvem o luto é fundamental para atravessar o processo. “Deixar de falar do luto não significa superação, leva a mais sofrimento e é um sintoma de estresse pós-traumático”, afirma Sônia Pego, psicóloga da Avax, plataforma digital de avaliação psicológica criada pela Bee Touch.

Sônia dá um exemplo. Em uma grande empresa no Paraná, que prefere não identificar, recentemente foi chamada para avaliar o caso de uma jovem funcionária, de 19 anos, que se recuperou de covid, mas perdeu a colega de bancada na fábrica. Mais que colegas, eram amigas muito próximas.

Quando soube da morte da amiga e retornou ao trabalho, a jovem passou a se comportar de forma introspectiva. Ficou chorosa, embotada, sem capacidade de concentração e com queda de produtividade. Somente quando a mudaram de turno, teve contato com uma líder mais acessível, que abriu um canal de diálogo com ela e em seguida a encaminhou para a avaliação psicológica de Sônia. O diagnóstico foi estresse pós-traumático.

Um misto de sentimentos havia assolado a jovem, que também se sentiu culpada pela morte da colega. Embora seguisse os protocolos de segurança na empresa, fora dos muros da fábrica ela acabava se aglomerando em reuniões sociais. Acabou transmitindo o vírus em um almoço na casa da amiga, que morreu aos 35 anos.

Na empresa, não encontrou acolhimento entre os colegas, pois era vista como alguém que desrespeitou o distanciamento social. Também causou sofrimento o fato de não poder se despedir. Ela conversava o tempo todo com a amiga internada, mas as mensagens pelo WhatsApp foram escasseando, até que não recebeu mais nenhuma.

A pandemia ainda reduziu as possibilidades dos rituais da despedida, para evitar o contágio. “Assim, temos que fazer também o luto do luto”, escreve Maria Homem no ensaio “Lupa da Alma: Quarentena-Revelação” (Todavia, 2020), no qual dedica o último capítulo a essa temática. O psicanalista Christian Dunker explica por que o ritual fúnebre é tão necessário para o ser humano.

“A gente vê sempre a morte do outro e não a própria. Você percebe que vai acontecer com você, mas não pode perguntar para a pessoa que morreu como foi a experiência. Por isso, a necessidade de falar com o próximo. A nossa memória para coisas afetivas é coletiva, o outro vai lembrar de coisas que você não lembrava. Isso é extremamente importante para a criação de uma comunidade”, diz.

Isso vale, portanto, para uma empresa que se entende como uma comunidade, ou deseja buscar essa coesão. Dunker atende a uma série de clientes que se queixam da vida corporativa, dizendo que são espaços mais institucionais e menos comunitários. “As empresas tentam recompor isso, mas elas ao mesmo tempo têm práticas de gestão que destroem os laços.”

Ele cita como exemplo a microgestão por meio de avaliações de desempenho, ameaças de corte e estímulo à competição, o que muitas vezes leva a um ambiente tóxico. “Estamos em um momento de tensão entre a face institucional e a face comunitária das empresas.”

Para ele, as empresas geralmente lidam com o luto levando em conta apenas a primeira fase de processo formado por várias etapas, da negação até a superação. “A empresa manda uma coroa de flores, cumprimenta, tem ali uma comoção, todo mundo se reúne e, dali a 20 dias, vida que segue, às vezes com o enunciado ‘trabalha que passa’.” Mas com o passar do tempo é que as pessoas enlutadas precisarão ainda mais de apoio. “Depois de três meses, todo mundo já esqueceu, mas você não”, diz Dunker.

Quando perdeu a avó para a covid em junho do ano passado, Ana Carolina Cardillo, gerente de cadeia de suprimentos da farmacêutica Boehringer Ingelheim, lembra que nem pôde abraçar o pai. A cerimônia, com apenas dez pessoas, foi expressa. Os que cuidavam do enterro usavam roupas brancas de proteção e ela, uma capa plástica de chuva. A avó a criou, mas ela abriu mão dos dias de afastamento previstos pela lei trabalhista.

“A vida tem que seguir. E eu precisava estar aqui para cuidar da minha equipe. Outras pessoas que perderam parentes também preferiram trabalhar, pois em casa se sentiam pior”, afirma.

Ana Carolina lidera um time de 120 pessoas, das quais só seis trabalham de casa. Conta que usou o caso da avó para conscientizar a equipe sobre a gravidade da pandemia, pois perguntavam: “É tudo isso mesmo, ou é a mídia que aumenta?” - ainda que naquela época já houvesse o registro de 60 mil mortos no Brasil. Quando ela mesma contraiu o vírus, em novembro, tinha medo de ir dormir. “Pedia para o meu marido ver se eu estava respirando bem. Precisava ‘acordar viva’, tenho um filho de um ano e meio”, diz.

Maria Homem escreve que “o luto tem sempre uma dimensão íntima, daquele sofrimento que é só seu, uma dimensão privada, daquilo que circula nos próximos daquele que partiu, e uma dimensão pública, de reconhecimento daquela perda e do valor de quem morreu”.

Quando a empresa Europ Assistance, que presta serviços de assistência funeral e social, perdeu uma colaboradora na área de recursos humanos, a equipe se reuniu para falar dela, lembrar como era, o que fazia. A funcionária sofria uma espécie de nanismo, fez uma cirurgia cardíaca e contraiu covid no hospital.

“Mesmo com a deficiência, era dinâmica, produtiva, radiante”, conta a diretora de recursos humanos, Claudia Lourenço. A morte foi comunicada para a holding. Foi a única morte entre os 8 mil funcionários de todo o grupo, presente em 33 países, e houve um minuto de silêncio.

Falar abertamente sobre o luto em lives com seus funcionários é um exercício que a CTG Brasil tem buscado, segundo o vice-presidente corporativo, José Renato Domingues. A empresa é uma subsidiária da China Three Gorges, a usina de Três Gargantas, localizada em Wuhan, epicentro da pandemia. “Nas primeiras lives era um silêncio enorme, com todo mundo se sentindo meio estranho. Mas depois as pessoas foram se abrindo”, conta. Já participaram desses encontros o filósofo Mario Sergio Cortella e o biólogo Atila Iamarino.

No Brasil, a CTG registrou a primeira morte por covid há menos de um mês. “Foi um baque, uma sensação muito ruim, porque, apesar de tudo o que fizemos [em termos de segurança], acabamos perdendo um funcionário. Na mesma semana, houve duas internações de casos graves. Foi uma carga muito pesada para o time”, conta o executivo. Outro abalo havia sido sentido quando um diretor muito conhecido ficou 24 dias hospitalizado, gerando apreensão e uma sensação de desnorteamento na equipe. Ele se recuperou e retornou ao trabalho em fevereiro, trazendo um alívio.

Mas, por mais que a empresa busque uma preparação para o luto, gerando conteúdo e conversas, Domingues afirma que não dá para saber como a pessoa vai reagir quando a situação envolve questões emocionais familiares. “O ser humano tomará uma decisão que não conseguimos prever.”

Enquanto algumas empresas optam por falar mais abertamente sobre o assunto, no Carrefour há uma política de não divulgar o número de mortes nem de infectados. A justificativa é a discrição e a empatia com as vítimas. A empresa, contudo, informa o número de atendimentos psicológicos: houve um salto no ano passado, passando de 40 por mês em meados de abril para 146 em setembro.

“A discussão sobre saúde emocional nunca mais deixará de ser pauta nas empresas, mesmo depois que a pandemia acabar”, acredita Ettore Silva, diretor de recursos humanos do grupo.

Segundo ele, o Carrefour divulgará em breve programas de saúde emocional em parceria com planos de saúde. “Os planos vinham em uma agenda muito protocolar, de doenças e sinistros, e agora estão trazendo soluções alternativas para o atendimento socioemocional”, diz.

Eliane Pereira, diretora de recursos humanos da farmacêutica Takeda, tem ouvido em fóruns de RH que a saúde mental virou hoje o que as doenças ocupacionais foram no passado. “A gente precisa se preparar para diagnosticar”, diz. A empresa de 1,2 mil funcionários, que teve 146 casos positivos de covid e duas internações, busca manter programas de bem-estar como uma ação preventiva.

O mesmo tem sido feito pela BRK Ambiental, empresa de saneamento, com 6 mil funcionários. Um operador de rede morreu e 1,5% da força de trabalho está quarentenada. A empresa criou atendimento psicológico para funcionários extensivo às famílias, com programas de meditação guiada.

“O luto nas famílias se reflete em depressões”, diz a presidente Teresa Vernaglia. Ela reconhece que é preciso falar sobre o luto, mas respeitando o momento de cada um. As metas da empresa foram mantidas. “Seguimos com a necessidade de entregar resultados, garantir a liquidez da companhia e a segurança e saúde dos funcionários”, afirma.

Já em uma grande empresa de Manaus, o nível de exigência teve de baixar. Na cidade, que voltou a sofrer momentos dramáticos no início do ano e foi o epicentro da variante brasileira P.1, não há família que não tenha sentido o baque do luto, segundo relato do empresário. Em condição de anonimato, ele afirma que tem sido difícil manter os seus times motivados, o que tem afetado os negócios. “Neste primeiro trimestre, não conseguimos avançar nas metas conforme o previsto. Ninguém está trabalhando no mesmo ritmo devido à questão mental”, diz.

O empresário conta que tem sido comum funcionários “sumirem”, ou seja, passarem dois ou três dias sem aparecer no trabalho e depois voltarem, relatando estresse ou pânico. Além disso, as reuniões on-line com gestores mais graduados, que antes eram animadas, ficaram mais proforma. “Minha impressão é que as pessoas estão mornas”, diz.

Antes com um psicólogo à disposição dos funcionários, a empresa agora tem seis que circulam entre as equipes. Também contratou um sistema de telepsicologia, já utilizado por mais de 200 colaboradores. “Mas muita gente tem um certo tabu com o tema da depressão”, diz. Houve três mortos, entre os quais um gerente, há cerca de um mês. A empresa não trabalhou no dia seguinte e prestou uma homenagem, levando um caminhão ao enterro. “Balança, né? Era um cara querido”, lamenta.

Ele identifica em Manaus uma divisão clara entre dois tipos de empresa. As de maior porte, multinacionais, presentes na Zona Franca, mostram preocupação com a questão da saúde emocional e têm buscado adotar as melhores práticas de segurança. Já boa parte das empresas locais, de médio e pequeno porte, apresenta, segundo ele, “um grau de bolsonarismo e de negacionismo infeliz”.

“Estão tratando a pandemia mais como um incômodo do que um problema a ser abraçado.” O que dirá prestar apoio psicológico aos funcionários. “O que ouço dessas empresas é que está cheio de gente com ‘mimimi’.”

Uma empresa não necessariamente fará uma condução pior do processo do luto pelo fato de ser de menor porte, avalia Simone Pita, professora na HSM University na área de gestão do comportamento organizacional. “Empresas pequenas, embora não tenham capital para investir em desenvolvimento de pessoas, podem ter líderes muito bem colocados na função de acolher e estabelecer relações de confiança. O funcionário quer que o gestor olhe para ele, saiba seu nome, dê bom dia”, diz.

Companhias maiores têm recorrido a empresas que oferecem programas de apoio ao empregado (ou EAP, na sigla em inglês) para prestar atendimentos psicológico, financeiro, jurídico e nutricional. A Optum, por exemplo, foi contratada pela empresa de pagamentos on-line PayPal e pela fabricante de equipamentos Mills Solaris. A LatinA foi contratada pela empresa de tecnologia médica Becton Dickinson (BD), e a CGP Brasil, pelo Carrefour.

Na BD, a diretora de recursos humanos Stella Fornazari recorreu ao programa de EAP para buscar orientação jurídica diante da morte de seu sogro. Duas funcionárias na área de marketing estratégico, que perderam os pais, também buscaram atendimento psicológico. Em relação à morte de um funcionário, ela conta que houve o acompanhamento direto do RH junto ao time e suporte para a família.

Para Ana Paula Kagueyama, diretora da PayPal América Latina, esse tipo de serviço é uma ferramenta a mais que os gestores podem aplicar em momentos de crise ou situações específicas dos colaboradores. Não se trata, a seu ver, de uma terceirização de problemas dos funcionários.

A PayPal, que oferece serviços de pagamento on-line, emprega um time muito jovem, na faixa de 22 a 32 anos, que até o momento não foi acometida pela doença, mas alguns perderam pais e avós. Em 2020, por causa dos impactos emocionais, a empresa definiu que ninguém seria avaliado com nota de desempenho.

Segundo Simone Pita, embora as grandes empresas disponham de mais estrutura para oferecer esses tipos de atendimento, podem ter líderes que se encontram muito fragilizados. É um momento desafiador para as lideranças, que já tinham de saber como delegar e negociar, e ainda precisam desenvolver empatia, inteligência emocional e fomentar um clima saudável na organização. “O momento requer uma escuta ativa diária”, diz.

Para Dunker, o líder “escutador” é aquele que sai da posição de autoridade para ouvir o outro e depois volta ao posto de comando, dividindo não somente força, mas também vulnerabilidade, humanidade e pessoalidade. Já um líder forte está condenado a ser dependente dos resultados. “Quando perdemos um líder forte, sentimos o medo de ficar desprotegidos. Quando perdemos um líder escutador, queremos fazer valer o que era o desejo dele. Em uma perda, sentimos medo; na outra, ganhamos coragem”, diz.

“Aqui não temos a crença de que nossos líderes precisam ser perfeitos o tempo todo. São seres humanos e têm suas fragilidades”, afirma Kleber Racy, diretor de RH da Mills Solaris. Com 1,4 mil funcionários, a empresa teve cerca de 10% dos quadros infectados e dois casos de internação hospitalar leve.

Adriana Zanni, vice-presidente de recursos humanos para a América Latina da corretora de seguros britânica Aon, diz que a empresa há alguns anos trabalhava o autoconhecimento, as fragilidades naturais do gestor e os aspectos a desenvolver. “Mas, nestes últimos anos, isso foi além da conversa, vimos acontecer na prática. Saímos da teoria para um laboratório vivo.”

Três diretores da Aon perderam os pais no último ano, o que gerou uma emotividade e despertou um senso de comunidade, segundo Adriana. “Quando o gestor chora e fica ausente, não é mais o super-homem com todas as respostas. Ele tem uma vulnerabilidade escancarada naquele momento”, diz. “Mas a constatação da fragilidade traz você para dentro da organização de uma maneira mais completa.” Essa aproximação, segundo ela, é favorecida pelas possibilidades do trabalho de casa. “A gente vê a pessoa na casa dela, passa o cachorro, o bebê chora.”

Luiz Gustavo Mariano, sócio da empresa de recrutamento Flow, também tem observado relações mais próximas entre líderes e colaboradores, com questões de trabalho e da vida pessoal coexistindo. “A pandemia acelerou esse processo. As empresas têm relações mais abertas e corre o risco de o colaborador sair da empresa se esse valor não tiver continuidade após a pandemia”, afirma.

“Estamos em um momento novo de empresa-colaborador. A relação tem que ser muito mais de sócio do que de chefe-empregado”, diz Alexandre Winandy, diretor de transformação organizacional do BMG. O banco, com 1,2 mil funcionários, teve cerca de 70 casos infectados, com três internações na UTI, e comprometeu-se a não dispensar ninguém por causa de resultados na pandemia.

“Eu converso com pares de mercado que têm mais uma visão de gestão de portfólio, de quem está gerindo números. Mas quem não mudar a forma de relacionamento e buscar apenas resultados rápidos vai perder talentos”, diz ele, lembrando que o teletrabalho abre muitas oportunidades de mobilidade, inclusive no mercado internacional.

Entre seu universo de clientes, Mariano, da Flow, vê empresas na busca dessa nova relação não porque pensam no efeito prático de aumentar a produtividade agora, mas sim de deixar uma boa marca como empregadora. “As palavras-chave são respeito, flexibilidade, empatia. Construir e proteger ‘goodwill’. A maneira como a empresa tratou as pessoas na pandemia será lembrada daqui a dois ou quatro anos”, afirma.

Marcelo Egéa, da SerTotal, avalia que muitas empresas estão saindo melhores da pandemia do que entraram - ao melhor estilo do aprendizado pela dor. Para Adriana, da Aon, vai ficar muita coisa boa quando isso passar. “Só posso acreditar que essa experiência será para melhor, porque há menos divisão de papéis entre pessoal, profissional, mãe. As pessoas estão mais inteiras e, portanto, mais felizes. A gente está de coração, corpo e alma nessa história”, diz.

Em “Lupa da Alma”, Maria Homem cita um ditado africano que caberia às empresas interessadas em atuar como se fossem uma comunidade: “É preciso uma vila para educar uma criança. Assim como é preciso uma vila para se atravessar o luto”.



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