De antemão, o jornalista Jotabê Medeiros lança um aviso aos leitores e, provavelmente, ao próprio personagem central do livro “Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha”: “Nada em minha obra é vendido como uma verdade absoluta”. Talvez por precaução excessiva ou noção do vespeiro em que se meteu, o mesmo responsável pelas biografias “Belchior: Apenas um Rapaz Latino-Americano” (2017) e “Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida” (2019) percorre uma linha ensaística, entre a análise da formação artística e a crítica discográfica, para mostrar os motivos que levaram Roberto ao topo do pódio dos maiores astros brasileiros. É sabido que o cantor e compositor, que completa 80 anos no dia 19, age com a tolerância de um jagunço diante daqueles que ousam desafiá-lo e vasculhar sua intimidade. O mais polêmico e autoritário caso, entre tantos, é o da biografia “Roberto Carlos em Detalhes” (2006), escrita por Paulo Cesar de Araújo, que foi apreendida das livrarias, teve o estoque recolhido e gerou um longo processo jurídico movido pela indignação do cantor, escreve Dirceu Alves Jr. no Valor, em texto publicado no Valor na sexta, dia 16/4. Continua a seguir.
E, dizem, ele nem leu o material completo. Mas, óbvio, Roberto Carlos é um patrimônio cultural do país e há muito tempo não está mais em seu arbítrio impedir interessados, devidamente credenciados, de pesquisarem sua trajetória.
Medeiros, repórter e crítico musical há mais de três décadas, que, desde 1986, cobre o noticiário em torno do cantor, adquiriu tal bagagem e, com cautela, detalha como o menino pobre de Cachoeiro do Itapemirim (ES) atingiu essa voz tamanha, capaz de mobilizar parcela significativa do Brasil há 60 anos.
“Parece que, de repente, o Roberto virou o rei de tudo, um fenômeno. Não, não foi bem assim”, explica. “Ele estudou piano por quatro anos na infância, cantou na noite carioca acompanhado pelos maiores talentos da época, como Claudette Soares, João Donato e o saxofonista americano Booker Pittman, é um cara que foi muito preparado para o êxito.”
A construção do ídolo é o ponto alto do livro, destacando o período em que Roberto viveu no subúrbio de Lins de Vasconcelos, no Rio, nos anos 1950.
Por lá, morando com a mãe e os irmãos em um sobrado compartilhado com outra família, o aspirante ao estrelato cruzava nas esquinas com Paulo César e Renato Barros, do grupo Renato e Seus Blue Caps; Luiz Ayrão; Tony Tornado e Getúlio Cortês. Logo conheceu o som e a atitude da Tijuca com Erasmo Carlos, Tim Maia, Jorge Ben e, assim, influenciado pela juventude transviada, o inexistente rock nacional sedimentou sua base através de rapazes conhecedores do próprio suor.
Diante do recorte privilegiado, Medeiros não reserva muitas páginas para os casamentos com Nice, Myriam Rios e Maria Rita e, quando a questão se faz inevitável, explicita de onde extraiu as informações.
O encastelamento do artista, que cresceu progressivamente ao longo do tempo, é defendido como consequência da ação dos haters presentes desde o início da carreira.
“O Erasmo teve o carro atingido por tiros, o Wanderley Cardoso foi espancado a ponto de ter um descolamento de retina e o Roberto mesmo sacou um revólver e deu dois tiros no chão para dispersar uma multidão que poderia linchá-lo em pleno centro de São Paulo”, conta Medeiros, lembrando que a Jovem Guarda não foi um tempo tão dourado assim. “Ele descobriu cedo que a fama tem dois lados e um deles é bastante cruel.”
O autor não entrevistou companheiros de reinado, como Erasmo e Wanderléa. “Os dois têm um grande senso de lealdade ao Roberto e todas as minhas dúvidas estavam respondidas nas biografias por eles publicadas”, justifica.
Preferiu conversar com vozes pouco ouvidas e fundamentais, como as do tecladista Lafayette Coelho e do compositor Getúlio Cortês, e traz à tona a primeira fã de Roberto, Gercy Volpato, devota desde que o escutou cantar aos 9 anos em uma rádio capixaba.
O próprio protagonista foi procurado através de um e-mail quando o livro estava pronto, em busca da checagem de certas informações conflitantes. A produção do astro confirmou o recebimento da mensagem, que jamais teve resposta.
Roberto Carlos chega aos 80 anos consciente de sua majestade, adorado por súditos fiéis e com uma produção muito menos constante que contemporâneos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e o próprio Erasmo.
Mesmo assim, Medeiros defende seu personagem e garante que essa voz está muito, muito longe de perder o alcance. “Roberto Carlos é a representação ambulante do Brasil, com todas as suas fragilidades e autoritarismos, e não dá para dizer que ele se esgotou, seria como cobrar do Pelé um gol como aqueles que marcava na sua juventude.”
Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha Jotabê Medeiros Todavia, 512 págs., R$ 84,90
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