Pular para o conteúdo principal

Lula renasceu messiânico e ninguém barra Bolsonaro e sua sanha matadora?

Com a estada sem fim do Brasil no inferno, algumas palavras perderam o sentido. Genocídio, por exemplo. Como significava massacre de um número enorme de pessoas, ela implicava uma ação urgente caso se visse um genocida em ação: a de impedir que ele continuasse a matar. Não mais. Há por certo que ache que Bolsonaro, por ações e omissões, seja culpado de milhares de mortes. Mas como ninguém age para que pare de matar, o genocídio deixa de ser grave. Vira quase o equivalente a equívoco —uma ação bem-intencionada, no máximo ineficaz. Seria melhor então deixar o preciosismo vocabular de lado e chamar Bolsonaro de tolinho? E como se caracterizaria sua política sanitária nesse ano de peste? Empenhada, salvadora de vidas, racional? São perguntas descabidas: 348 mil mortos não é brincadeira, escreve Mario Sergio Conti em sua coluna na FSP, publicada sábado, 10/4. Continua a seguir.


Como esses mortos eram gente de sangue e sonhos, há que se ser realista e admitir que, como ninguém quer que o presidente saia, pouco importa chamá-lo de genocida. “Ninguém” não é força de expressão: a nação inteira capitulou diante da hecatombe.

A leseira que tudo domina está enraizada nas classes sociais. Velhas lontras e novas capivaras do patronato acabam de bater palmas para o Errado do Cerrado, que pela enésima vez mentiu ao prometer vacinas que não tem, porque as boicotou no passado, e as menospreza no presente.

Do outro lado da contradição dialética, há a inação de sindicatos, partidos e organizações da sociedade civil. A paralisia de trabalhadores, funcionários e estudantes, nas periferias e campos, é perpetuada pelo medo da peste. Não há greves, protestos, saques. Até as panelas andam quietas.

Como se queria demonstrar: na base, no meio e no pico da sociedade, ninguém faz nada para barrar a sanha matadora de Bolsonaro, impedi-lo de exercer o poder. Em vez de ação, há palavras, palavras, palavras à la Macbeth —cheias de som e fúria, significando nada.

Daí não custa nada acrescentar outra palavra ao léxico do desespero, uma palavra que define essa inatividade aflitiva, essa agonia coletiva: exasperação. O Brasil parece exasperado com o espantoso número de cadáveres, com a risada bárbara e triunfante de Bolsonaro todo santo dia.

Um dos poucos alentos nessa exasperação foi o discurso de Lula quando o Supremo permitiu que voltasse à política. Sua reaparição teve o condão de desanuviar a fricção contínua provocada pela Bolsonada. O que ele fez seria pouco em tempos normais. Mas não são tempos normais.

O ex-presidente demonstrou que em larga medida a política visa o bem comum; que dá para fazê-la sem rancor boçal; que a peste pode ser enfrentada com razão e compaixão; que ele perdoa os que o perseguiram. Teve um comportamento presidencial e patriarcal. Por isso se destacou.

Destacou-se de seus antecessores. Sarney emudeceu; Collor, FHC e Temer sempre falam com intenções abertamente subalternas; Dilma é confusa.

Já Lula, que perdeu a mulher, o irmão e o neto, passou de derrotado a vitorioso sem desdizer seu interesse primordial: o Brasil pobre. Seu atributo mais evidente é o carisma, atração que um corpo exerce sobre outros. No seu caso, o corpo se concentra na voz. É o maior orador em um século, superando os tenores da direita (Lacerda) e do centro (Brizola). E agora seu carisma tem um tom messiânico.

O Lula ressurreto tem algo de dom Sebastião, o rei que sumiu na batalha de Alcácer-Quibir, no século 16, e deu origem ao mito de que voltaria para tirar Portugal da decadência. Como o Brasil também está decadente, o retorno de Lula é associado à sua presidência, tempo em que o país progredia.

Não é de hoje que o discurso messiânico tem força aqui: é desde a pregação escatológica de Antônio Conselheiro em Canudos. É uma arenga ambígua porque se apoia no desespero dos pobres e dos explorados para atacar o poder; mas não os organiza em estruturas autônomas, racionais e radicais. O messianismo precisa, óbvio, de um messias.

Lula vem pregando a volta a um passado mítico, no qual todos se deram bem. É uma ilusão, ainda que com um grão de verdade. O Brasil era melhor; mas é inviável a repetição daqueles tempos —que aliás geraram o lamaçal de hoje.

Lula prega o diálogo de todas as forças políticas, o que é positivo, dado o sectarismo do atual presidente. Mas fazer isso sem agir para tentar destronar o exasperante Bolsonaro seria coonestar com o genocídio —seria se entregar aos usos e costumes da ratatuia que o enredou.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...