Uma certa frequência, nos jornais, de artigos que remetem a política ao tema da formação da personalidade do presidente da República indica preocupação com o desencontro entre o poder e o poderoso. O problemático desencaixe entre a pessoa no poder e a instituição que o define suscita mais diagnósticos do que interpretações. É um modo de compreender os fatores extrapolíticos da política quando ela sai do padrão que lhe é próprio. O que é um fator de alarme com a distorção do processo político, o poder confundido com o mando pessoal. Sugere a quem envereda por essa linha de análise que podemos estar em face de um desvio comportamental e não apenas em face de um projeto político anômalo. Se o agente dominante da primeira socialização do presidente foi o pai que o induziu a optar pela carreira militar, como é ressaltado nas análises, teve no quartel a segunda socialização, desdobramento da primeira. Nos dois momentos há indicações de insuficiências de socialização para as solicitações plurais dos vários âmbitos da sociedade, pois é neles que a maioria de nós vive, escreve José de Souza Martins no Valor, em texto publicado dia 1/4. Continua abaixo.
Aliás, a consciência social e política do que era a socialização limitante dos grupos de confinamento formativo já estava presente nas interdições da condição de eleitor na Constituição de 1891.
O quartel é o que o sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982) define como instituição total, isto é, amuralhada e restritiva à sociabilidade dos internos, fechada à diversificação social.
De certo modo, as instituições totais, as de monopólio do processo socializador de seus internos, são também meios de dessocialização dos que lhes são entregues, nelas despojados das referências do caráter aberto e pluralista da sociedade.
A compreensão do comportamento politicamente anômalo em relação às previsões constitucionais, legais e da tradição republicana e democrática talvez fique mais completa se levarmos em conta a situação social de referência política do presidente da República na atualidade.
Já ficou evidente que ele, desde antes da posse, vem criando, ao seu redor, uma sociedade própria de referência, fechada e hierarquizada. Ela cumpre a função de dar-lhe o tipo de segurança personalista e anti-institucional, pois, desprovido da cumplicidade das instituições, das leis e da Constituição. Compõem-na, em primeiro lugar, os próprios filhos, seus coadjuvantes mais notórios.
É uma sociedade paralela, grupo de referência desconectado do real, dominado pelos processos interativos cotidianos, face a face. Bolsonaro tem claras dificuldades para lidar com relacionamentos mediados por instituições e regras formais, com aquilo que ele desdenha, mas que é decisivo na democracia. A reunião de 22 de abril foi uma demonstração disso.
Ele se cercou de gente que pensa como ele ou finge pensar, que tem as mesmas limitações culturais e políticas que ele tem para compreender o que se passa além das paredes da sala em que o governo se reúne ou além do amontoamento de bajuladores que, na porta do palácio ou na rua, lhe dão a segurança teatral de que carece.
Essas relações reforçam o imaginário e a subjetividade do governante para a sociabilidade política que, em caso assim, é provisória e precária. Durará, quando muito, os quatro anos de seu mandato. Ajusta-se às suas carências de afirmação e à insegurança em relação ao que não é do mundo de sua formação.
Constitui uma muleta que lhe permite sobreviver no poder, protegido de sua própria intuição de que é frágil e dos indícios de que é um ser humano fora do lugar. Se não fosse esse cerco protetivo, provavelmente acabaria tomando consciência de suas fragilidades políticas e de seu despreparo e correria o risco de sucumbir. Sobretudo em face das decisões erradas na questão da pandemia.
A obstinação em manter no poder gente cujo tipo de personalidade se aproxima muito da sua é uma boa indicação nesse sentido. A mobilização de militares e de ex-militares pela estrutura de poder, ao seu redor, é um faz de conta, sobretudo quanto aos reformados que não têm postos de comando nem têm condições de comandar nada.
O ajuntamento subversivo de que o presidente participou na porta de um quartel do Exército em Brasília é outra indicação dessa teatralidade de sustentação imaginária do presidente.
As ameaças dos apoiadores ao STF é, provavelmente, a maior indicação de que ele está com medo na medida em que navega no que pode ser a margem da legalidade. É o comportamento de quem de fato não assumiu a Presidência ao não assumir-se na Presidência.
Eu lembraria que Lula, nos primeiros meses de seu primeiro governo, comportou-se mais ou menos do mesmo modo. Manteve um discurso de oposição ao Estado, embora já fosse governo.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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