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Os bastidores da maior crise militar no Brasil em 40 anos

A saída do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa foi engatilhada na sexta-feira 26 de março, acertada no domingo 28 e comunicada no início da tarde de segunda-feira 29. A conversa que formou a convicção do presidente aconteceu no domingo, quando ele foi à casa do general Walter Braga Netto, ministro da Casa Civil, para ver se o amigo havia se recuperado do mal-estar que o levara a uma internação hospitalar durante sua viagem de férias a Maceió. Lá também estava o ministro-chefe da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos, que mora no mesmo prédio. Foi durante a visita que o presidente avisou de sua disposição de apressar a saída de Azevedo e Silva e de incluí-lo na dança de cadeiras na Esplanada dos Ministérios que planejava para o dia seguinte. Braga Netto ficaria no lugar de Azevedo e Silva, Ramos iria para a Casa Civil. Para o lugar de Ramos, Bolsonaro já havia pensado em algumas opções, mas se concentrou no nome da deputada Flávia Arruda (PL-DF), indicada pelo centrão, grupo de partidos que fazem parte da base de sustentação do governo no Congresso. As outras mudanças incluiriam as pastas da Justiça, das Relações Exteriores e a Advocacia-Geral da União. Na segunda-feira, ao chegar para um despacho rotineiro com Bolsonaro no Palácio do Planalto, agendado para as 14 horas, Azevedo e Silva foi surpreendido pelo presidente, que disparou: “Preciso do seu cargo”. Azevedo e Silva, até então um assíduo frequentador do Planalto, sempre convocado pelo presidente para participar de reuniões e aconselhá-lo em decisões que nada tinham a ver com sua área, estava fora do governo. Mais tarde, em nota, disse que era dele a decisão de sair, o que não aconteceu, escreve Tânia Monteiro em esclarecedora reportagem publicada na revista Época desta semana. Continua abaixo.


Durante a rápida conversa com Bolsonaro, não houve mais nenhum apelo para que o general Edson Leal Pujol fosse afastado do comando do Exército, algo que presidente já havia insistido várias vezes antes, sem sucesso. O presidente nem sequer se queixou de seu principal incômodo dos últimos tempos com Azevedo e Silva, sua “extraordinária interlocução” com o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão que considera trabalhar 24 horas contra seu governo. Bolsonaro até hoje não engoliu a decisão monocrática e “ilegal”, em sua avaliação, do ministro Alexandre de Morais de impedir a nomeação de Alexandre Ramagem para a Polícia Federal no ano passado. Também não se conformava que Azevedo e Silva não usasse sua “boa interlocução” com o STF para defender as razões do Planalto. A conversa não durou nem cinco minutos. Não houve tempo para o ministro da Defesa mostrar, para a apreciação do presidente, o texto da ordem do dia referente ao aniversário de 57 anos do “movimento de 31 de março de 1964”, que aconteceria dois dias depois. O texto retornou com o já demitido Azevedo e Silva para o Ministério da Defesa e acabou sendo o adotado por Braga Netto com duas modificações que têm significado político. No novo texto, foi retirada a frase que dizia que as Forças “acompanham as mudanças como instituições de Estado que são”. Na última frase foi acrescentado que a data deveria ser “celebrada” como marco histórico. A versão anterior dizia que os acontecimentos daquele 31 de março faziam parte da trajetória histórica e assim deveriam ser apenas “compreendidos”. As modificações sinalizam a ideia de evitar escrever o que possa ser considerado confronto com os pensamentos esboçados pelo presidente.

No caminho entre o Palácio do Planalto e o Ministério da Defesa, Azevedo e Silva convocou os três comandantes das Forças Armadas — Pujol, Ilques Barbosa, da Marinha, e Antônio Carlos Bermudez, da Aeronáutica — para uma reunião no ministério, imediatamente. Ao chegar ao encontro, os três e alguns auxiliares mais próximos viram um Azevedo e Silva perplexo e até abatido. Era evidente que o clima de camaradagem entre ele e o presidente não era mais o mesmo nos últimos tempos, pois os sinais de desgaste na relação dos dois já eram sabidos, mas talvez o “número 1 da Defesa” não estivesse esperando uma demissão sumária naquele momento. Diante dos comandantes, Azevedo e Silva relatou a breve conversa com Bolsonaro, e os quatro discutiram a redação de uma nota que seria liberada em seguida ressaltando que “nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”. Antes das despedidas, Azevedo e Silva relembrou as reservas do presidente em relação a Pujol, o que alimentou as esperanças dos comandantes da Marinha e da Aeronáutica de permanecerem em seus cargos.

Assim que acabou a reunião no Ministério da Defesa, os três decidiram se reunir no gabinete do comandante da Marinha, três prédios adiante na mesma Esplanada dos Ministérios. Pujol, Barbosa e Bermudez estavam conversando sobre a situação quando receberam um telefonema do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência. Heleno queria aproveitar o encontro entre eles para medir a temperatura. Na reunião no gabinete do comandante da Marinha, os três presentes falaram até de amenidades para desanuviar o ambiente. Embora surpresos, mostraram que estavam tranquilos. Não ficaram felizes com a notícia da saída de Azevedo e Silva, claro, mas reconheciam que a escolha de ministro de Estado é uma competência do presidente. Os comandantes pediram a Heleno que transmitisse ao presidente que todos tinham condições de absorver os impactos que seriam causados pelo baque. No final da tarde daquela segunda-feira mais que atípica, cada um se deslocou para seu gabinete para conversar com seus respectivos altos-comandos e principais auxiliares.

Antes de ir para a sede do comando do Exército, Pujol foi ao encontro de Hamilton Mourão, o vice-presidente. Pouco antes, Azevedo e Silva também estivera com o vice-presidente. Mourão, que não participou do processo de demissão, se solidarizou com os dois. Profundo conhecedor das Forças, o vice-presidente tem repetido a mensagem de Azevedo e Silva, de que “não há chance” de ruptura da ordem institucional. Já de volta ao comando do Exército, Pujol fez uma reunião on-line com o Alto-Comando da Força, que durou cerca de duas horas e meia. Ao final, foi dito que “o Exército não será fator de instabilidade”, ao contrário, existe para executar suas missões constitucionais e exercer papel de instituição de Estado, e não servir a governos. Entre os participantes ficou claro que ninguém gostou da maneira como Bolsonaro agiu com Azevedo e Silva e com Pujol. Foi considerada até mesmo uma forma de desrespeito com o ex-ministro e a Força, embora todos reconhecessem a legitimidade do presidente em nomear e demitir ministros e comandantes. Mudanças como essa deixam mágoas e algumas sequelas. As reuniões na Marinha e na Aeronáutica seguiram a mesma linha. Todos reiteraram também que a vida seguiria normalmente, em poucos dias, após esse episódio, que teve um vulto político imenso.

Na terça-feira 30 de março, por volta das 9h30, os três comandantes da Forças Armadas voltaram ao Ministério da Defesa. Primeiro, para uma conversa de despedida com o ex-ministro Azevedo e Silva. Às 10h30, nova reunião. Desta vez, com Braga Netto já na cadeira de ministro da Defesa. Braga Netto comunicou que a intenção do presidente era substituir não só o ministro, mas todos os três comandantes. A mudança ia ainda mais longe. Seriam trocados o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e o Secretário-Geral de Defesa, os dois principais cargos da pasta. O novo ministro não disse claramente, mas o objetivo da completa reestruturação da cúpula das Forças Armadas era que Braga Netto tivesse mais liberdade para trabalhar sem que houvesse pessoas nos cargos que pudessem fazer comparações com as normas e os métodos adotados por seu antecessor.

Quando chegou a hora de os comandantes falarem, o primeiro foi o almirante Barbosa, seguindo o critério de antiguidade dentro das Forças. Não havia ajudantes de ordem na sala. Barbosa apresentou seis pontos que levou escritos. Entre eles, disse que a escolha de comandante de Força é do presidente e que, portanto, não havia a possibilidade de ele colocar o cargo à disposição, porque não lhe pertencia. Ressaltou que a Pátria estava acima de tudo e de qualquer situação e que os interesses do país eram prioritários. Disse existir um alinhamento fechado na Marinha, obtido junto ao almirantado, que todos são contra a politização das Forças. Barbosa falou ainda da preocupação com os desdobramentos desta crise e que o mais importante era manter a estabilidade política do país.

O discurso foi repetido por Pujol e Bermudez, que falaram na sequência. Braga Netto não deu explicações sobre a decisão do presidente e, de acordo com os militares, não precisava dar. A inédita decisão na história do país de demitir o ministro da Defesa e os chefes das três Forças selou a maior crise militar desde 1977, quando o então presidente Ernesto Geisel, a favor da abertura política, demitiu o general Sylvio Frota, ministro do Exército (na época ainda não existia o ministério da Defesa), que era contrário à redemocratização. Na crise dos anos 1970, Heleno, um jovem ajudante de ordens de Frota, foi um mero espectador da história. Desta vez foi diferente.

No final da tarde da mesma terça-feira, 30 de março, o ex-comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas, que ainda goza de grande apoio e prestígio nas tropas, recebeu a visita de Heleno e Braga Netto. Os dois generais, endossados pelo presidente Bolsonaro, foram à casa de Villas Bôas conversar sobre a crise militar aberta com a saída de Azevedo e Silva da Esplanada e falar sobre a sucessão no Exército. O gesto foi interpretado como uma espécie de sinal de busca pela paz, em momento de forte tensão entre o Palácio do Planalto e a caserna. Braga Netto, embora seja um velho conhecido de todos, está chegando à pasta e à frente do comando das tropas “pisando em ovos”, trabalhando para aparar possíveis arestas que tenham surgido, já que foi o responsável pela execução das trocas cirúrgicas e incômodas decididas pelo presidente Bolsonaro.

Villas Bôas, assim como Mourão, já disse e repetiu: “Quando a política entra pela porta da frente em um quartel, a disciplina e a hierarquia saem pela porta dos fundos”. Essa é a máxima que rege a caserna e que, na visão de alguns militares, Bolsonaro insiste em violar. Nesse sentido, o histórico da implicância de Bolsonaro com Pujol e a deterioração de sua relação com Azevedo e Silva são esclarecedores.

Em 1º de maio do ano passado, ao chegar a Porto Alegre para presidir a cerimônia de posse do novo comandante militar do Sul, o presidente estendeu a mão a dois militares, mas foi cumprimentado com um toque com o cotovelo, gesto recomendado por especialistas para evitar o contágio do novo coronavirus. O primeiro a deixar Bolsonaro “no vácuo” ao estender a mão foi exatamente Pujol. Em seguida, foi a vez do general Geraldo Miotto, que deixava o cargo. As imagens viralizaram nas redes sociais, o que irritou muito o presidente.

O ápice do descontentamento de Bolsonaro com Azevedo e Silva, o que “quebrou o cristal” do excelente relacionamento entre os dois, aconteceu no dia 12 de novembro do ano passado e também envolveu Pujol. O agora ex-comandante do Exército, que raramente falava, participou de uma live e disse que as Forças Armadas não eram instituições de governo, mas de Estado, e que não queriam que a política entrasse nos quartéis. No dia seguinte, reiterou o discurso, em um seminário sobre defesa nacional, acrescentando que “independente de mudanças ou permanências em determinado governo por um período longo, as Forças Armadas cuidam do país, da nação. Elas são instituições de Estado, permanentes. Não mudamos a cada quatro anos a nossa maneira de pensar e como cumprir nossas missões”.

As afirmações foram recebidas como desafio de Pujol às falas do presidente, que vinha radicalizando seu discurso e que, naquela semana, defendeu uso de ‘pólvora’ para proteger a Amazônia. O comentário foi uma resposta ao americano Joe Biden, que, em sua campanha eleitoral, defendeu sanções econômicas ao Brasil caso o país não detivesse a destruição da Amazônia. Bolsonaro reclamou de Pujol, mais uma vez, com Azevedo e Silva, que não tomou nenhuma ação contra o comandante do Exército. Os tempos em que o ministro da Defesa aceitava sobrevoar num helicóptero uma manifestação antidemocrática já era coisa do passado. O episódio com Pujol já se somava às críticas e observações que Bolsonaro não gostou de ter ouvido, sem apoio de Azevedo e Silva, em 19 de abril, quando participou de uma manifestação contra o Congresso e o Supremo, em frente ao Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano. O ato desagradou aos militares pelo simbolismo do local e a data. Era o Dia do Exército, que Bolsonaro, quase um ano depois, em outra fala incômoda para as tropas, chamou de “seu”.

No início deste ano, mais um problema. Em um parecer técnico, o Exército alertou o governo federal de que uma das medidas presentes nos decretos assinados pelo presidente ampliando o acesso a armas de fogo poderia fragilizar a segurança pública, o que deu munição à oposição. A nota foi publicada em 12 de fevereiro, mesmo dia em que Bolsonaro assinou os decretos.

Se Bolsonaro se incomodava com as Forças Armadas, também era verdade que havia muita insatisfação da cúpula militar em relação ao comportamento do presidente. A nomeação do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde no ano passado, sua permanência na ativa e a insistência em sua manutenção à frente da pasta, mesmo sob ataques, desagradou aos militares. Houve incômodo semelhante em 2019 quando Ramos, então na ativa, foi nomeado para a Secretaria de Governo como coordenador político do Planalto, em estreita ligação com o Congresso.

Agora, essa nova mexida no xadrez ministerial, envolvendo a área militar, é vista como uma tentativa de mostrar poder, depois de o presidente ter sido praticamente obrigado pelo Congresso, em nome da governabilidade, a demitir Ernesto Araújo das Relações Exteriores, desagradando, principalmente à ala ideológica do governo. Segundo essa narrativa, a saída de Azevedo e Silva compensaria, de certa forma, o desgaste junto à base bolsonarista.

O presidente Bolsonaro, a interlocutores próximos, tem rechaçado a acusação de que criou uma crise no país com as trocas nos comandos militares. “Ele até ri quando falam para ele em crise”, comentou um deles. A esta fonte, Bolsonaro ressaltou que “não fez nada de ilegal” e que “apenas exerceu seu poder de presidente da República, que lhe permite, como comandante em chefe das Forças Armadas, trocar ministro da Defesa e comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica”. Bolsonaro chegou a confidenciar que “deu certo” sua estratégia de anunciar primeiro a saída de Araújo do Itamaraty para, somente cerca de duas horas depois, demitir o ministro da Defesa. Este fato, pelo ineditismo e por ser totalmente inesperado, tirou do noticiário sua derrota política perante o Congresso. Tirou do foco também o aumento do número de mortes recordes pela pandemia.

Para o presidente, conforme narrou um de seus auxiliares muito próximos, a troca do ministro da Defesa serviu para encobrir até mesmo as outras mudanças que, se ocorressem de forma isolada, se transformariam em “escândalos” e mais um alvo de críticas a sua administração. Bolsonaro se referia, principalmente, à decisão de colocar na coordenação política no Planalto uma representante do centrão, a deputada Flávia Arruda (PL-DF), mulher do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, que deixou o governo preso, acusado de corrupção. Também se referia à decisão de nomear o delegado da Polícia Federal Anderson Torres, que já havia sido alvo de ataques quando seu nome foi cogitado em outras oportunidades para o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Preocupado em não deixar que a “onda” — expressão usada pelo presidente — sobre as mudanças nos comandos militares perdurasse, Bolsonaro determinou que Braga Netto recebesse as listas de sugestões dos altos- comandos da Marinha, do Exército, e da Aeronáutica com os nomes dos oficiais-generais mais antigos e conversasse com cada um deles ainda na quarta-feira 31. Bolsonaro, na verdade, já tinha em mente quem queria para os postos. Foi Braga Netto quem comunicou a decisão de escolha de Bolsonaro ao general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira para o Exército, ao almirante Almir Garnier Santos para a Marinha e ao brigadeiro Carlos Baptista Júnior para a Aeronáutica e os convidou para serem recebidos pelo presidente. Em um gesto de cordialidade, Braga Netto fez questão de telefonar a cada um dos outros oito que não foram escolhidos para agradecer e informar sobre a decisão do presidente da República. Todos continuam em seus postos.

Oliveira, Santos e Baptista Júnior possuem perfis semelhantes. Têm jogo de cintura, são apaziguadores, operacionais, executores de missões e, principalmente, legalistas e defensores da ordem constitucional. Embora não fiquem bradando, os três entendem que as Forças são instituições que servem ao Estado, e não aos governos, assim como partilham da convicção de que dentro dos quartéis não há lugar para discussões políticas. Os três comandos estão voltados para o cumprimento de suas missões constitucionais e sabem que, no momento, a principal guerra é contra a Covid-19, como disse o ministro Braga Netto em seu pronunciamento da quarta-feira 31. Na avaliação de militares que acompanham de perto este momento, o entendimento é que o presidente não está pedindo apoio explícito a ninguém, mas também não quer “desapoio”, disse um oficial de alta patente.

As escolhas foram muito bem recebidas pelos respectivos altos-comandos. No Planalto, na Defesa e nos quartéis a certeza é que, passado o susto da semana, tudo estará nos trilhos, mesmo deixando cicatrizes. Apesar da inédita e abrupta mudança de ministro e comandantes no meio de um mandato, as coisas já começaram a retornar à normalidade. Na avaliação de autoridades militares, não haverá mais “ondas” em relação a esse tema. “Página virada”, resumiu um ministro.

Ao anunciar o nome dos escolhidos, o ministro da Defesa aproveitou para responder às críticas de que os indicados permitirão que a política entre nos quartéis. Braga Netto disse que “os militares não faltaram no passado e não faltarão sempre que o país precisar. As Forças são fiéis às suas missões constitucionais, de defender a pátria, garantir os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”, disse o ministro. Por fim, emendou que o maior patrimônio do país é “a garantia da democracia e a liberdade do seu povo”.



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