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Como é o Brasil que não aparece no Zoom

“Se Puder, Fique em Casa.” Este é o título de um conto que, a trazer mais uma história de conflito entre a ciência e as trevas de Brasília, prefere sugerir uma pergunta: mas que casa? Por carta, Cida, uma empregada doméstica, conta para Dora, sua irmã, que está bem de saúde, só não tem mais onde morar. A casa que havia passado dois anos construindo, na certeza de que seu contrato de compra e venda do terreno tinha fé pública, fora posta abaixo em menos de quatro horas, junto com 12 outras da comunidade. A filha, que estava sozinha em casa quando a polícia chegou, foi para a casa do pai e ela, para um quarto na casa dos patrões, sem nenhuma perspectiva de indenização pelo teto que viera abaixo. É deste quarto de despejo que Jozimel, uma gestora cultural do Parque Amazonas, no extremo sul de São Paulo, faz sua releitura do livro de Carolina de Jesus. O conto foi um dos 210 produzidos por mulheres negras de todo o país para uma coletânea alusiva aos 60 anos de “Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada”. Catadora, negra, mãe solteira de três crianças, Carolina de Jesus foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas no fim dos anos 1950 durante uma reportagem na favela do Canindé, que mais tarde seria destruída para dar lugar ao estádio da Portuguesa e à marginal do rio Pinheiros, em São Paulo. Traduzido em 14 línguas e publicado em 46 países, o livro foi abençoado por Manuel Bandeira e Clarice Lispector, além de Alberto Moravia, que prefaciou a tradução italiana. A partir da primeira tiragem, de 10 mil exemplares, que se esgotou em dias, ganhou as páginas da “Time”, “Paris Match”, “Life” e “Le Monde”. O sucesso levou Carolina aos salões dos Matarazzo e aos lançamentos no Uruguai, no Chile e na Argentina, escreve Maria Cristina Fernandes no Valor, em texto publicado dia 9/4. Continua a seguir.


A comemoração das seis décadas da publicação do livro, que se concluirá este ano com a edição de suas obras completas (cinco romances, poemas, cartas e contos), pela Companhia das Letras, teve início na edição do ano passado da Feira Literária das Periferias (Flup). Foi ali que nasceu “Carolinas - A Nova Geração de Escritoras Negras” (Bazar do Tempo, 2021). Organizada por Julio Ludemir, criador da Flup, a coletânea contou com a colaboração de oito escritores (Itamar Vieira Junior, Ana Paula Lisboa, Cristiane Costa, Eliana Alves Cruz, Fred Coelho, Alexandre Faria, Milena Britto e Eduardo Coelho) que orientaram a escrita de grupos de até 30 mulheres, um dos quais, como Carolina, de catadoras.

Na produção deste livro, emergiu o Brasil que não passa no Zoom. As escritoras integram a primeira geração de cotistas universitárias do país, sendo 38% delas detentoras de títulos de mestrado ou doutorado. Ao longo dos encontros virtuais para a produção do livro, porém, a maior parte preferiu manter a câmera desligada porque não tinha uma estante-cenário para mostrar. São casas amontoadas de gente, com uma mão mexendo panela e a outra na lição de casa do filho. A câmera aberta mostraria cortinas com remendos, sofás de terceira-mão, cama escorada em tijolos e cadeira encostada na geladeira para conservar sua porta fechada. Outras participantes ainda mantiveram a câmera desligada porque simplesmente não podiam se dar ao luxo de consumir seu pacote de dados de internet nas conferências virtuais. Como se a tela escura fosse capaz de encobrir a falta de privacidade, fizeram das sessões preparatórias da coletânea uma terapia coletiva que, paradoxalmente, só se tornou possível pela pandemia.

O resultado surpreende, mais pelo mosaico de vivências do que pela maturidade literária. É esta coletânea, e não o jornalismo enclausurado da pandemia, que revela como, ao longo de sua breve duração, o auxílio emergencial de R$ 600 permitiu que algumas das beneficiárias pudessem ter, em suas casas, fragmentos de rotina parecidos com os de suas patroas. Um dos textos, na forma do diário de Carolina, anota os acontecimentos do dia 1º de julho de 2020: “Hoje coloquei a roupa na máquina e deitei para ler ‘As Mulheres de Tijucopapo’. Cônsul. 8kg. Uma mulher preta colocando suas próprias roupas na máquina e indo se deitar para ler um romance é a bacia de água fervente e apimentada atual. Os olhos da Casa Grande ardem. É o melhor ataque.”

Ainda que produzida ao longo da pandemia, a coletânea lhe faz referências esparsas. O nome do atual presidente da República aparece uma única vez nas 560 páginas do livro, ainda assim para lamentá-lo torcedor do Palmeiras, em contraste com as referências frequentes de Carolina de Jesus ao então prefeito de São Paulo, Adhemar de Barros, ou ao presidente Juscelino Kubitschek (“...o que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá [...] residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos, quando estão com fome, contemplam as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Têm fome”).

As mulheres talvez tenham optado pelo que Fernanda Miranda, professora da Universidade Federal do Sul e Sudoeste do Pará e premiada pela Capes pela melhor tese de literatura em 2019, define no livro como a “ideia revolucionária da partilha”. Ouviram-se umas às outras como se ouvissem a si mesmas ou a um familiar - desde as histórias de humilhação de suas mães e avós como empregadas domésticas às tentativas de afirmação na classe média emergente. Da ordem da patroa para jogar fora o copo d’água entregue ao entregador de aplicativo às dicas de higiene da pandemia, supérfluas para quem as têm como condição de sobrevivência (“...se uma preta estiver numa sala com vinte brancas e um cheiro de corpo pairar no ar, todo mundo vai se perguntar por que essa preta não tomou um banho [...], mesmo que seja uma branca a suvaquenta. A periferia cheira a Natura e Avon”).

Nem a produção de máscaras escapa ao baú de suas memórias. No conto “Dar Nome aos Bois”, Bioncinha do Brasil, uma costureira e cenógrafa de 26 anos, de São Paulo, escreve sobre a iniciativa do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) de oficina de costura de máscara para doação. “Eles estão pagando um real e vinte por máscara, a passagem sem alimentação [...] temos seis horas de trabalho para costurar 80 máscaras. Como profissional de costura, sei que pra isso acontecer precisa de alguém que auxilie. Um grupo de pessoas passando o tecido para costurar e virando a máscara do avesso para o direito. E, assim, as costureiras ficam todo o período de trabalho costurando. Mas não pode. Cada uma tem que fazer as suas e as professoras ficam lá só de patrulha. Olhando se a gente tá costurando, dando aquela mexidinha no celular ou dando alguns ‘perdidos’. [...] O que mais me irrita é ter muitos imigrantes fazendo esse trabalho, e eles não levam comida. Engulo minha comida a seco e fico tentando imaginar como é a vida deles, mas não consigo. Hoje é meu segundo dia e consegui costurar 22 [...] se não estivermos costurando pelo menos setenta ao dia, eles vão nos dispensar e procurar outras costureiras.”

Professora de jornalismo da UFRJ e coordenadora de um dos grupos da coletânea, Cristiane Costa contou às participantes o que Virginia Woolf dizia ser necessário para que uma mulher viesse a se tornar escritora. Deveria contar, no mínimo, com um espaço próprio e uma renda que hoje seria equivalente a R$ 4 mil por mês. Carolina de Jesus lhe mostrou que ela estava errada. Só precisava de um caderno e um lápis, mesmo que achados no lixo. A comparação parece ter ajudado. Saíram de seu grupo não apenas histórias que dimensionam a tragédia da perda das avós em comunidades nas quais elas são as principais responsáveis pelos cuidados com as crianças, em contos de singelo realismo como “Dona Raimunda Preta”. Do apelo desesperado a uma vizinha por uma mala, a professora Adriana Ortega tece o fio da história de uma migrante que, na tentativa de recuperar laços familiares desfeitos, acaba, como a Macabéa de “A Hora da Estrela”, embaixo de um para-choque.

O trabalho como catadora não permitia que Carolina de Jesus vigiasse os filhos, mas ela os segurava em casa, quando podia, para privá-los dos horrores de uma favela cadenciada pela violência. Sessenta anos depois, a violência ficou pior, mas quem prende as pessoas em casa hoje são os horrores de uma doença que ruma para tirar a vida de meio milhão de brasileiros. A clausura produz nas autoras mais consciência de quem são. Na coletânea há menos George Floyd, o negro morto sob o joelho de um policial americano, do que Miguel da Silva, o menino que, sem escola, passou a ser levado pela mãe ao trabalho e caiu do nono andar de um prédio depois de ser deixado sozinho no elevador pela patroa.

O viés inclusivo da publicação levou seus editores a abrigar narrativas repetitivas, mas pelo menos duas dezenas de textos da coletânea trazem o realismo inquieto de precursores desta geração, como Geovani Martins. O escritor, que foi homem-placa, garçom em bufê infantil e barraqueiro de praia, teve as oficinas da Flup como plataforma. Lançou, pela Companhia das Letras, “O Sol na Cabeça”, que foi traduzido em nove países e será adaptado para o cinema por Karim Ainouz. Seguem suas pegadas, por exemplo, a professora de 46 anos Shirley Oliveira (“Minha mãe falava trem para tudo. Depois de trem, a palavra que ela mais falava era cu. Sim, cu”).

De todas as histórias da coletânea, as mais pungentes são aquelas do grupo de catadoras que tiveram seus relatos gravados e reproduzidos. Seu trabalho não foi afetado pela pandemia. Nem por isso a rotina de mulheres como Nair Camilo Faria livrou-se do vírus da indiferença: “Saio pra trabalhar e ninguém me vê. E quando chego do trabalho ninguém me vê também, nem pra perguntar como foi meu dia. São cinco filhos e meu marido aqui dentro de casa. Nem um bom dia dá pra mim. Eu saio para o trabalho e falo: ‘Quando eu chegar quero encontrar a casa do jeito que deixei. Sujou, lavou, sujou, limpou’. Falo isso todos os dias mas não adianta nada. Quando chego, pia cheia de louça, casa suja”.

Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente



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