Pular para o conteúdo principal

Favorito ao Oscar, Nomadland, de Chloé Zhao, retrata América desencantada

Atingida em cheio pela crise de 2008, três anos depois a U.S. Gypsum, mineradora de gipsita e fábrica de placas de gesso instalada em Empire, Nevada, não só fechou suas portas; tendo demitido seus funcionários e retomado suas casas, cancelou o código postal da cidade. Com toda atividade econômica extinguida, Empire virou uma cidade fantasma (em 2016, quando a operação da mina foi retomada, mas em níveis muito inferiores aos de antes, passou a ser algo um pouco menos drástico — uma sombra). É nesse contexto verídico que a diretora Chloé Zhao introduz Fern, a protagonista de Nomadland (Estados Unidos/Alemanha, 2020), que acaba de estrear nos cinemas do país que estejam abertos. Zhao é não apenas a favorita ao Oscar de direção como, juntamente com a inglesa Emerald Fennell, de Bela Vingança (leia resenha na pág. 86), estabelece um marco: pela primeira vez nos 93 anos da premiação, duas mulheres concorrem nessa categoria (vale lembrar que a única mulher a sair vitoriosa até aqui foi a americana Kathryn Bigelow, em 2010, por Guerra ao Terror), escreve Isabela Boscov em resenha para a edição da revista Veja desta semana. Continua a seguir.


Interpretada por Frances McDormand, ganhadora do Oscar de melhor atriz em 2018 por Três Anúncios para um Crime e em 1997 por Fargo, e de novo concorrendo à estatueta, Fern é uma personagem ficcional, mas não inventada. Recém-enviuvada e despejada de Empire, ela é um rosto para as devastações econômicas periódicas e para o fenômeno muito americano da vida nômade. Na estrada com uma velha van que reformou como pôde, Fern cruza com outras pessoas (à exceção do personagem de David Strathairn, todas reais, interpretando versões de si mesmas) em situação igual à sua, por motivos diversos — dificuldades financeiras, traumas emocionais, inconformismo ou inadequação, desejo de independência ou de aventura.

Em comum, todas essas personagens têm o desencanto com o que ficou para trás. “Lendo o livro-reportagem de Jessica Bruder do qual parti, entendi que aquela colagem de histórias traduzia um sentimento coletivo de perda por parte de toda uma geração de americanos”, disse Zhao a VEJA. Mas o que a diretora encontra nelas também, inesperadamente, é contentamento: seja qual for a razão pela qual essas pessoas ficaram ou se puseram à deriva, é evidente que a vida sem endereço obriga ao ajuste entre o que se tem e o que se quer. Com minúcia bem-humorada, Zhao investiga a rotina dos nômades: passar frio, penar para achar um lugar no qual seja permitido à van pernoitar, ter de usar um balde como banheiro, caçar empregos temporários. Em um trecho do filme, um simples pneu furado vira um problema do tamanho de uma montanha para Fern; em outro, ela quer ir embora mas não tem coragem de deixar sozinha no acampamento Swankie (Charlene Swankie), uma idosa que é um osso duro.

Swankie, que enfrenta um câncer, sem querer aponta para Fern algumas das compensações: a vastidão das paisagens do Oeste e Meio Oeste, a rede quase invisível mas firme de solidariedade entre os nômades, a libertação daquelas amarras que vêm com a segurança. Em duas ocasiões, Fern tem a oportunidade de voltar à vida regular. Em ambas, com trepidação e para sua própria surpresa, rejeita absolutamente a chance. “Fern perdeu a identidade dela de esposa de alguém, amiga de alguém, vizinha de alguém, funcionária de alguém. Sua cidade inteira se foi. O que resta a ela é se encontrar de uma maneira diferente — por meio do movimento”, diz Zhao.

Nascida e criada em Pequim em uma família ligada há gerações ao cultivo do arroz, transplantada para um internato inglês na adolescência e dali, afinal, para Nova York, Zhao, de 39 anos, hoje se considera americana. Mas, ao mesmo tempo que se submerge nessa América interior, a vê com o olhar desarmado dos estrangeiros. Em seu filme anterior, o magnífico Domando o Destino (no original, The Rider, de 2017), ela aplicava a abordagem de Nomadland, a dos não atores que encenam uma versão de si mesmos (“é mais fácil quando não são pessoas habituadas a calcular a própria imagem nas redes sociais”), à história de Brady Jandreau, caubói de Dakota do Sul impedido de voltar aos rodeios por causa de um acidente. Se a busca de Fern é geográfica, a de Brady é íntima: ele é tão integrado ao seu lugar que se confunde com ele — mas a identidade original lhe foi roubada, e o jovem precisa encontrar outra sem arrancar suas raízes. Na cultura americana, o deslocamento é uma essência, e ninguém a tem examinado com tanto apuro quanto Chloé Zhao.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Um pai

Bruno Covas, prefeito de São Paulo, morreu vivendo. Morreu criando novas lembranças. Morreu não deixando o câncer levar a sua vontade de resistir.  Mesmo em estado grave, mesmo em tratamento oncológico, juntou todas as suas forças para assistir ao jogo do seu time Santos, na final da Libertadores, no Maracanã, ao lado do filho.  Foi aquela loucura por carinho a alguém, superando o desgaste da viagem e o suor frio dos remédios.  Na época, ele acabou criticado nas redes sociais por ter se exposto. Afinal, o que é o futebol perto da morte?  Nada, mas não era somente futebol, mas o amor ao seu adolescente Tomás, de 15 anos, cultivado pela torcida em comum. Não vibravam unicamente pelos jogadores, e sim pela amizade invencível entre eles, escreve Fabrício Carpinejar em texto publicado nas redes sociais. Linda homenagem, vale muito a leitura, continua a seguir.  Nos noventa minutos, Bruno Covas defendia o seu legado, a sua memória antes do adeus definitivo, para que s...

Dica da Semana: Tarso de Castro, 75k de músculos e fúria, livro

Tom Cardoso faz justiça a um grande jornalista  Se vivo estivesse, o gaúcho Tarso de Castro certamente estaria indignado com o que se passa no Brasil e no mundo. Irreverente, gênio, mulherengo, brizolista entusiasmado e sobretudo um libertário, Tarso não suportaria esses tempos de ascensão de valores conservadores. O colunista que assina esta dica decidiu ser jornalista muito cedo, aos 12 anos de idade, justamente pela admiração que nutria por Tarso, então colunista da Folha de S. Paulo. Lia diariamente tudo que ele escrevia, nem sempre entendia algumas tiradas e ironias, mas acompanhou a trajetória até sua morte precoce, em 1991, aos 49 anos, de cirrose hepática, decorrente, claro, do alcoolismo que nunca admitiu tratar. O livro de Tom Cardoso recupera este personagem fundamental na história do jornalismo brasileiro, senão pela obra completa, mas pelo fato de ter fundado, em 1969, o jornal Pasquim, que veio a se transformar no baluarte da resistência à ditadura militar no perío...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...