Após um ano de penúria, quando a família já tinha penhorado ou vendido praticamente tudo que tinha de valor para que o escritor pudesse fazer seu livro sem precisar trabalhar, a mulher brinca com o marido após eles gastarem os últimos tostões no correio para enviar os originais à editora que supostamente publicaria a obra: “Só falta esse romance ser uma m...”. A mulher se chamava Mercedes, o marido era Gabriel García Márquez e o romance, “Cem Anos de Solidão”, lhe daria a fama internacional depois coroada com um Prêmio Nobel de Literatura em 1982. A história é contada por Guillermo Angulo, fotógrafo colombiano e amigo do escritor desde os tempos de juventude. Angulo, que era chamado por García Márquez (1927-2014) de Maestro Angulo, é um dos entrevistados pela escritora e jornalista colombiana Silvana Paternostro em “Solidão e Companhia - A Vida de Gabriel García Márquez Contada por Amigos, Familiares e Personagens de Cem Anos de Solidão”, escreve Marcus Lopes em resenha para o Valor, publicada sexta, 23/4. Continua a seguir.
O livro é uma espécie de documentário escrito que reúne depoimentos de pessoas próximas do escritor. Ele nasceu de um antigo projeto para uma revista americana, “Talk”, em 2001. Na época, Silvana recebeu a missão de escrever uma reportagem sobre o autor de “Ninguém Escreve ao Coronel” e “O Amor nos Tempos do Cólera”, entre outros.
Em vez de entrevistar os famosos com quem ele convivia, a jornalista preferiu conversar com amigos e parentes que conviveram com Gabo, como era chamado pelos mais íntimos, antes que ele se tornasse um dos mais consagrados escritores latino-americanos.
A reportagem acabou não sendo publicada e a revista fechou tempos depois, mas ficaram 24 fitas gravadas de entrevistas feitas pela jornalista sobre Márquez. Após uma nova rodada de entrevistas para completar as informações recebidas havia duas décadas, resolveu escrever “Solidão e Companhia”.
O livro é dividido em duas partes: a.C. (antes de “Cem Anos de Solidão”) e d.C. (depois de “Cem Anos de Solidão”). Na primeira parte, amigos, irmãos e primos debulham a infância do garoto nascido em uma família numerosa da pequena cidade colombiana de Aracataca, que teria inspirado a Macondo de “Cem Anos de Solidão”.
Chama a atenção o depoimento de uma irmã de Gabo, Margot, que conta em detalhes como era a infância dos irmãos em Aracataca com o avô, Nicolás Márquez, ídolo do pequeno Gabito, os hábitos e costumes de uma vida muito simples em família, porém cheia de personagens e histórias que recheariam a mente e os livros do escritor décadas depois.
Figuras como a tia Francisca, que tinha as chaves da igreja e do cemitério da cidade e assava as hóstias para as missas, cujas bordas não aproveitadas eram devoradas pelos irmãos Márquez como biscoitos finos.
“Sua mãe [Luisa Santiaga, mãe do escritor] sempre disse que os romances dele eram cifrados e que ela tinha a chave. Ela lia o livro e dizia: ‘o homem que ele menciona aqui é o fulano de tal em Aracataca’”, conta Rafael Ulloa, primo de Gabo e Margot.
Na segunda parte, a autora explora a vida do autor após a consagração de “Cem Anos de Solidão”, lançado em 1967, o papel fundamental da mulher Mercedes Barcha em sua vida antes e depois de escrever o livro - para alguns ela é a inspiradora de Úrsula, a poderosa matriarca dos Buendía -, a riqueza, a fama e os amigos.
Um dos episódios mais controvertidos é a briga entre ele e o também consagrado escritor peruano Mario Vargas Llosa, que deu um soco na cara do então amigo colombiano, em 1976, em um teatro na Cidade do México. O motivo da agressão, nunca verdadeiramente esclarecido, mas fartamente comentado e fofocado entre os amigos, teria sido uma investida amorosa do colombiano sobre a mulher do também Nobel.
Com um estilo mais leve e, de certa maneira, menos comprometido com o rigor e a cronologia dos fatos exigidos em biografias tradicionais, já que é baseado mais em lembranças de pessoas do que em documentos, “Solidão e Companhia” agrega e complementa outras biografias do romancista, como “Gabriel García Márquez - Uma Vida”, de Gerald Martin (2010), e a autobiografia “Viver para Contar” (2002).
“Para escrever este livro, não falei com García Márquez. Isso é exatamente o que a história oral exige. Ou seja, tudo foi escrito com a voz dos outros”, explica Silvana, na introdução. “Ler é tão divertido quanto ir a uma festa e parar para ouvir os convidados falarem sobre García Márquez. E, assim, como nas melhores festas, alguns falam mais do que os outros. Aqui estão os falastrões, os minuciosos, os brincalhões, os cantores, os grosseirões e até os que bebem demais”, completa a autora.
Solidão e Companhia
Silvana Paternostro Trad.: Carla Fortino Crítica, 288 págs., R$ 57,90
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.