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A quem interessa a alta dos juros?

Nas últimas semanas, tanto aqui como nos Estados Unidos, muitas vozes se levantaram para anunciar que a inflação, em breve, estará de volta. Os mercados tremeram, as bolsas caíram e aqui o dólar se valorizou. EUA e Brasil são os dois países com maior número de mortes por covid no mundo. Somados, podem chegar ao trágico número de 1 milhão de mortos. Nos EUA, a vacinação está finalmente a pleno vapor, e a economia já dá efetivamente sinais de recuperação. No Brasil, a segunda onda da pandemia se agrava, bate recordes de pessoas contaminadas e de mortos. Apesar da resistência do governo federal, governadores e prefeitos foram, mais uma vez, obrigados a fechar o comércio e as atividades não essenciais. Tenta-se evitar que a superlotação dos hospitais deixe pessoas morrerem sem atendimento. Depois de uma queda de mais de 4% do PIB no ano passado, quando se imaginava que a economia fosse começar a se recuperar, assistimos a um novo mergulho recessivo. Faz sentido falar na volta da inflação num contexto de recessão com desemprego altíssimo? Por que o mercado financeiro, tanto nos EUA quanto aqui, está tão nervoso? Algo poderia ser feito para acalmar os mercados e garantir uma rápida recuperação da economia sem pressionar a inflação? As respostas exigem que revisemos o entendimento de questões básicas sobre as quais ainda há grande discordância entre os economistas, escreve André Lara Resende no Valor, em artigo publicado dia 1/4, vale a leitura. Continua a seguir. 


Comecemos pelas causas da inflação. Desde que David Hume, ainda no século XVIII, associou o nível de preços ao estoque de ouro em circulação na economia, a tese aceita era de que a inflação é consequência do excesso de moeda. Apesar de sempre ter havido vozes discordantes, uma das mais influentes delas, a do sueco Knut Wicksell, a Teoria Quantitativa da Moeda, que associa inflação ao excesso de moeda, foi praticamente hegemônica até a última década do século XX. Ensinada em todos os cursos de economia mundo afora, tornou-se a mais conhecida e citada relação econômica.

O livro de Wicksell, “Interest and Prices”, publicado originalmente no fim do século XIX, foi redescoberto pelos macroeconomistas que, no início deste século XXI, aposentaram na academia a Teoria Quantitativa da Moeda. Sem explicar por que ensinaram e professaram, por tantas décadas, a validade de uma relação de causalidade recorrentemente contestada pela realidade, na surdina, aposentaram-na sem avisar ao grande público. Como observou Wicksell, os economistas não tinham, e até hoje não têm, uma explicação consensual para substituir a simples e aparentemente intuitiva equação da Teoria Quantitativa.

As expectativas e a pressão da demanda são elementos importantes na determinação da inflação, mas como muitos fatores entram na determinação das expectativas, os economistas resolveram simplificar e presumir que as expectativas são formadas de acordo com o modelo com que trabalham. Como o modelo macroeconômico de referência supõe, sem qualquer sustentação empírica consistente, que a inflação responde sempre à pressão da demanda, que por sua vez é inversamente correlacionada com a taxa de juros, fica combinado que a inflação é uma função inversa da taxa básica de juros.

Os bancos centrais passaram então a adotar uma regra heurística para a fixação da taxa de juros. A Regra de Taylor diz que a taxa básica deve ser elevada ou reduzida mais do que proporcionalmente ao desvio, para cima ou para baixo, da inflação em relação à meta. Em flagrante desrespeito à base conceitual que, em tese, sustenta a relação inversa entre o juro e a inflação, a Regra de Taylor não se preocupa em averiguar se há efetivamente excesso de demanda. Basta que o banco central ache que a inflação vai fugir da meta, independentemente do estado real da economia, para que o novo protocolo monetário recomende a revisão da taxa de juros.

As expectativas podem estar perfeitamente ancoradas, como dizem os economistas, não haver pressão de demanda e ainda assim assistirmos a surtos de alta da inflação por alguns períodos. A razão é que existe um conjunto de preços, sobretudo commodities, que flutuam com as condições internacionais. Uma alta de preços internacionais de produtos agrícolas e de energia tem impacto sobre os preços domésticos de alimentos e de transportes. O resultado é uma pressão transitória sobre a inflação. Por isso, os bancos centrais, a começar pelo Fed, passaram a acompanhar, como referência para as suas políticas de juros, um subconjunto do índice de preços, o chamado cerne inflacionário, ou o “core” em inglês, que exclui preços de alta volatilidade.

Altas ou baixas da inflação, medidas pelo índice que nos EUA é sintomaticamente chamado de inflação das manchetes, ou “headline inflation”, devem ser desconsideradas, se não resultarem de movimentos na mesma direção do cerne da inflação. São meros reflexos de flutuações cíclicas dos preços de commodities. Esse é precisamente, como se sabe e todos reconhecem, o caso da ligeira alta da inflação no Brasil neste ano. A alta dos preços agropecuários e do petróleo no mercado internacional, reforçada pela alta do dólar, levou a inflação acumulada em 12 meses a superar o teto da meta estabelecida pelo BC.

Se existe um consenso hoje, é que o país precisa investir. Não há crescimento sem investimento, e o Brasil, depois de crescer abaixo da média mundial desde os anos 1980, viu o seu produto per capita cair na última década. Já sobre as causas da longa interrupção do crescimento e sobre o que fazer para voltar a investir, não há consenso. Sabe-se que juros altos desestimulam a demanda, reduzem o consumo e o investimento.

Como então justificar a decisão do Banco Central de reverter a queda dos juros, quando o país precisa investir, tanto para superar a crise sanitária, quanto para voltar a crescer? A resposta do governo e dos analistas financeiros que têm acesso à mídia é a baseada na tese da “austeridade fiscal expansionista”.

Surgida após a grande crise financeira de 2008 nos países avançados, a receita da austeridade expansionista é simples: equilibre-se as contas públicas, elimine-se os déficits fiscais e o aumento da confiança irá elevar o investimento privado. O equilíbrio fiscal é entendido como condição, necessária e suficiente, para a recuperação do investimento e a retomada do crescimento. A hipótese implícita é que o investimento público é desnecessário e concorre - “crowds out”, no jargão acadêmico - com o investimento privado.

A defesa da austeridade retoma a velha e anacrônica crença de que a inflação é resultado do excesso de emissão monetária e que o déficit fiscal é a principal fonte de emissão de moeda. O fantasma da Teoria Quantitativa, silenciosamente aposentada a partir do fim do século XX, continua a cumprir o seu papel histórico de assustar com a ameaça da inflação para atar as mãos do Estado e pressionar pela redução dos gastos públicos.

Toda pessoa com um mínimo de familiaridade com a condução da política monetária sabe que os bancos centrais não controlam a emissão de moeda, mas sim a taxa básica de juros. Como não é possível controlar diretamente a emissão de moeda, sustenta-se que seria necessário elevar a taxa de juros para controlar a inflação. Em tese, a alta dos juros reduz a demanda agregada e a pressão sobre os preços. Mas como justificar juros mais altos quando o PIB caiu mais de 4% no ano passado, corre sério risco de ter uma nova queda neste ano e o país tem quase 15% de desemprego aberto? Qual a razão para elevar os juros quando a pandemia atinge o seu auge e provoca uma verdadeira catástrofe social? Como explicar a defesa do teto dos gastos para não aprovar uma generosa ajuda emergencial assim como os recursos necessários para controlar a crise sanitária?

A proposta do Orçamento de 2021, que está no Congresso, corta recursos até mesmo para a saúde, enquanto aumenta para as emendas parlamentares. A redução dos gastos, inclusive ou sobretudo os de investimentos, dado que estão incluídos entre os poucos gastos discricionários, aparentemente não é motivo de preocupação. Argumenta-se que irá reduzir o “risco fiscal” e despertar o entusiasmo, os “animal spirits”, do empresariado.

Pressionados a argumentar, incapazes de encontrar uma justificativa lógica para a defesa do corte dos investimentos públicos e da ajuda emergencial, os analistas financeiros apelam para o risco da desvalorização cambial. Cuidado, o dólar está chegando a R$ 6! É preciso evitar a desvalorização do real, conclama-se sem explicar por que um país sem dívida externa, com mais de 30% do PIB em reservas internacionais e superávit na conta corrente, precisa subir a taxa de juros para evitar a desvalorização de sua moeda. Não há como deixar de concluir que ou o Banco Central não está atuando como deveria para evitar movimentos especulativos, ou as pressões sobre o câmbio advêm da percepção de riscos políticos e institucionais. Riscos que certamente não serão revertidos pela alta dos juros.

Assim como é impossível encontrar uma justificativa fundamentada para negar recursos para a crise sanitária e cortar investimentos indispensáveis para a recuperação da economia, é também impossível encontrar lógica na defesa da alta dos juros. Elevar os juros desestimula o investimento, aumenta o custo da dívida e obriga a mais cortes de gastos essenciais, na tentativa de equilibrar o orçamento.

Toda a sustentação teórica do efeito deflacionário dos juros está baseada no impacto dos juros sobre a demanda e desta sobre os preços. Se não há qualquer sinal de pressão de demanda, se a alta da inflação decorre da alta dos preços internacionais de commodities e da valorização do dólar, como explicar a pressão sobre o Banco Central para subir os juros? Mais uma vez, é preciso recorrer à alta do dólar. Em tese, a alta dos juros deveria aumentar a entrada de capitais financeiros externos atraídos pelo diferencial de juros em relação ao exterior. Sim, o chamado “carry-trade” do capital financeiro, em busca de ganhos de curto prazo, pode reduzir a pressão sobre a moeda nacional, mas é um capital essencialmente especulativo. Quando muda de humor e resolve subitamente ir embora, o que acontece com frequência, agrava o problema.

Não faz sentido para um Banco Central que dispõe de US$ 360 bilhões, mais de 30% do PIB, em reservas internacionais, num país que, há décadas, tem enorme superávits comerciais e que terá superávit na sua conta corrente neste ano, usar a taxa de juros para conter a desvalorização da moeda. Não seria nem mesmo preciso que o Banco Central recorresse ao seu estoque de reservas, bastaria anunciar que através de derivativos, ou swaps cambiais, iria atuar para impedir movimentos especulativos de aposta contra o real. Não se trata de tentar fixar o câmbio fora do “equilíbrio”, pois todos concordam que os fundamentos econômicos não justificam um real tão desvalorizado, mas sim de evitar a especulação insuflada pelo falacioso medo do “abismo fiscal”.

Antes de passarmos à questão da responsabilidade fiscal, examinemos um ponto pouco compreendido sobre as taxas de juros. A taxa básica, paga nas reservas bancárias, é determinada pelo Banco Central. Essa é a taxa de referência, base para toda a estrutura de juros na economia. É a taxa de juros por um dia, de overnight, nas reservas dos bancos no Banco Central, mas é a partir dela que toda a estrutura de juros para prazos mais longos, a estrutura a termo dos juros, é determinada.

Até recentemente, os bancos centrais determinavam a taxa básica de um dia e deixavam que o mercado definisse as taxas para os prazos mais longos de títulos públicos. É o que faz até hoje o Banco Central do Brasil. Desde a crise de 2008, seguindo o exemplo do Fed americano, vários bancos centrais passaram a influenciar a estrutura a termo das taxas com anúncios verbais sobre a trajetória da taxa básica.

O chamado “forward guidance”, ou direcionamento futuro, foi acrescentado aos tradicionais comunicados dos bancos centrais depois de suas decisões sobre os juros básicos. Como os bancos centrais têm enorme poder de fogo, inesgotável quando se trata da moeda fiduciária por ele emitida, o mercado financeiro sabe que é melhor ouvi-lo do que tentar enfrentá-lo. “Don’t fight the Fed”, não brigue com o Fed, é um conhecido refrão do mercado financeiro americano.

Apesar disso, como criança que testa os limites da paciência dos pais, o mercado muitas vezes desafia o banco central. É o que ocorreu agora nos EUA com o anúncio do programa fiscal do governo Biden contra a pandemia. Apesar de o Fed garantir que não irá elevar os juros básicos antes que o pleno emprego seja atingido e que não vê qualquer sinal de alta sustentada da inflação, os juros dos títulos de dez anos americanos subiram. Mercados de dívidas e de ações cederam. Muito provavelmente porque viu a correção do mercado de ações, insuflado pela liquidez injetada desde o início da pandemia, como saudável, o Fed ficou impassível e não atuou para reverter a alta da taxa longa. Bastaria uma manifestação verbal para revertê-la, mas o Fed preferiu não interferir.

O caso do Brasil não é muito diferente. Apesar de a ligeira alta da inflação ser decorrente de uma pressão externa transitória, o mercado financeiro elevou toda a estrutura a termo dos juros da dívida e passou a pressionar, com apoio do seu batalhão de economistas e analistas na mídia, para que o Banco Central elevasse os juros. O BC cedeu e subiu a taxa básica em 0,75 ponto percentual, acima do 0,5 esperado pelo mercado. Insaciável, o mercado agora espera uma nova alta de 0,75, ou mesmo de 1 ponto percentual, na próxima reunião do Copom. Já preveem a taxa perto de 6% no fim do ano.

O impacto fiscal de uma alta no custo da dívida é enorme. Uma elevação de 2% para 6%, numa dívida de 90% do PIB, equivale a 3,6% do PIB ao ano. Para efeito de comparação, o investimento público total nos últimos anos não chegou a 2% do PIB ao ano. Como a dívida é interna, em moeda nacional, detida por brasileiros, trata-se de uma transferência direta, equivalente a 3,6% do PIB, do Estado para o sistema financeiro e seus clientes que foram capazes de poupar e comprar títulos públicos.

Estranho que o sistema financeiro pressione pela alta dos juros? Trata-se de advocacia em causa própria, lobby, na melhor das hipóteses um caso de conflito de interesse, qualquer coisa, menos um argumento racional com sustentação teórica e evidência empírica.

O Banco Central, diante de uma pressão pela alta dos juros, sustentada pelo clamor de que o dólar vai explodir e a inflação vai sair de controle, poderia efetivamente não ser ouvido pelo mercado se ficasse apenas na palavra. Seria preciso agir, como já faz o Banco do Japão, definir não apenas a taxa básica de um dia, mas toda a estrutura a termo dos juros da dívida. Para isso basta estabelecer também as taxas para os títulos mais longos.

Caso o mercado insistisse em exigir taxas acima da fixada para os títulos longos, o Banco Central recompraria a dívida longa e pagaria com reservas bancárias, que seriam remuneradas à taxa básica de overnight. Para o Banco Central seria uma operação altamente lucrativa, comprar a sua dívida que rende mais de 10% ao ano e pagar com reservas que custam 2,75%. O prazo médio da dívida iria encurtar, é claro, mas, ao contrário do que se pretende, não há qualquer inconveniente no encurtamento da dívida, dado que toda ela é hoje perfeitamente líquida. A dívida pública poderia ser integralmente de curto prazo.

Hoje, mais de 30% da dívida é carregada com “operações compromissadas”, equivalentes a depósitos de curtíssimo prazo remunerados no Banco Central. As compromissadas, e o que mais fosse necessário, poderiam ser substituídas por LFTs, títulos indexados à taxa básica, emitidos sem data de resgate, uma perpetuidade, mas não vamos nos perder com propostas técnicas específicas. O aspecto técnico da gestão da dívida, que grande parte dos economistas sem experiência prática de banco central desconhece, dificulta a clara compreensão do absurdo que é a alta dos juros no contexto atual. Mas não se deixem iludir quando, diante da falta de argumentos lógicos para defender a alta dos juros, ouvirem de seu interlocutor “Não havia alternativa”, perguntem-se: para quem, cara pálida?

Voltemos à questão da responsabilidade fiscal. É evidente que o Estado deve ser responsável e gastar bem. Restrições institucionais e administrativas para os gastos públicos são necessárias para evitar abusos e distorções, mas precisam ser desenhadas com base no entendimento correto da importância do Estado, como prestador de serviços e como investidor. O Estado deve ser eficiente na sua operação, custeada integralmente por receitas fiscais para evitar a tentação patrimonialista, mas os investimentos e as transferências extraordinárias, como a ajuda emergencial na pandemia, devem estar fora dos limites impostos pela arrecadação tributária.

Embora não haja um número mágico, acima do qual a economia necessariamente se desorganiza, a relação dívida/PIB não pode ter trajetória explosiva. Depois de uma alta significativa, é preciso que a dívida volte a regredir em relação à renda. É o crescimento da economia e da arrecadação que garante uma trajetória não explosiva da dívida. Para crescer e arrecadar, é preciso investir. Sobretudo, é preciso evitar que uma emergência como a da atual pandemia se prolongue e se transforme numa catástrofe sanitária e social. Essa é a verdadeira responsabilidade fiscal que a todos interessa.

André Lara Resende é economista



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