O envolvimento do empresariado brasileiro na política partidária e seu alinhamento com políticas antidemocráticas é um dos indícios de um capitalismo fragilizado. Fragilizado pela incompetência oportunista para assumir a verdadeira missão histórica dos empresários, que eles a têm, embora nem sempre tenham consciência disso. Já no século XIX, a sociologia demonstrava que o verdadeiro capitalista é um funcionário do capital, que é produto de trabalho social, capital que manda nele. Se o empresário se mete a fazer com o capital o que não é propriamente capitalista, como vem acontecendo no Brasil, cria problemas sociais e políticos para todos e problemas econômicos para si mesmo. Corre o risco de virar esmoler do Estado, bajulador de governo. Corre o risco de ter que vender a alma ao poder. O jantar dado ao presidente, recentemente, por minúsculo grupo de empresários, deu indicações de que são daqueles que estão longe dos fatores espirituais e históricos da ética capitalista clássica. No menu, palavrões, bajulação, oportunismo e o aplauso eleitoreiro a um governante que governa à beira do abismo do interesse público, escreve José de Souza Martins no Valor, em texto publicado na sexta, 16/4. Continua a seguir.
Bruna Narcizo, da “Folha de S. Paulo”, ressaltou a diferenciação no interior do nosso empresariado. Estiveram presentes 18 empresários, irrelevantes ou adesistas, segundo definição de um empresário que não participou do jantar. Eram do polo oposto aos do manifesto dos 500 empresários, economistas e banqueiros que enxergam irracionalidade e imprudência na atitude do governo em face da pandemia. No confronto, o primado do social na orientação destes contra o primado do partidário na daqueles.
Esse desencontro reflete os atrasos do capitalismo brasileiro, marcado por deformações e ineficiências que lhe são peculiares. Uma delas a crônica insuficiência de competência política dos empresários para compreender que o poder não é do presidente, mas da sociedade, da qual fazem parte. Cujo âmbito, portanto, pressupõe que as negociações políticas de quem quer que seja devem ser com a sociedade civil, no interesse de todos e não só no interesse de alguns. O comportamento político do empresário brasileiro se não se dirige para a estatização da economia, a tem governabilizado na prática, a pior modalidade de estatização.
Todo o capitalismo tem seus triunfos e seus fracassos. O brasileiro os tem mais do que os do modelo clássico. Nele, a história de nosso empresariado não é uma história de êxitos econômicos seguros e certos. Em numerosos casos é uma história de adversidades, evidenciadas nas decretações de falências e de concordatas. Êxitos espetaculares existem, mas praticamente são exceções.
A falta de uma consciência dessa história explica as opções partidárias e não políticas do empresariado. Revela que não foi ele socializado no marco de valores democráticos e propriamente empresariais para personificar o capital. Muitos são mais negociantes do que empresários. Aqueles sabem ganhar. Estes sabem também criar, inovar e transformar empresarial e socialmente.
É pena que não tenhamos no Brasil a pesquisa e o estudo sistemáticos das histórias de fracassos empresariais, suas causas e seus fatores. E de seus êxitos notáveis. Não temos nem mesmo projetos universitários permanentes de estudo da dinâmica do capital e suas repercussões na história do empresariado e da sociedade. A própria Fiesp não demonstra interesse pela memória histórica do empresariado nem pela compreensão de suas crises e de seus erros.
O capitalismo brasileiro atual poderia ser uma referência para o estudo do que é um modelo econômico de fragilização progressiva do empresariado e de capitalismo autodestrutivo. Mesmo quem tem sobrevivido está à margem do modelo dos casos clássicos.
Desenvolveu-se aqui um capitalismo que não tem marcas indeléveis, como tem o europeu, de uma ética da acumulação. Isso não quer dizer que esse seja um traço cultural comum a todos os empresários. Temos empresários que se notabilizam por uma admirável ética do compromisso público do capital. Mas são eles exceções.
O empresariado brasileiro, como protagonista de inovações históricas que desenvolvam e transformem o capitalismo brasileiro, e façam do Brasil um país de trabalhadores e não de desempregados, de miseráveis e de famintos, vem encolhendo desde os anos 1960.
Desde 1964, foi cooptado pela geopolítica do regime militar, uma geopolítica antibrasileira, cujo extremo foi o carneirismo do governo Bolsonaro em relação ao mais antissocial governo americano, o de Trump.
O empresariado daqui, de protagonista que era, tornou-se mero ator de um roteiro que não é seu. Tornou-se ator e deixou de ser autor de seu destino e do destino do país.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
Comentários
Postar um comentário
O Entrelinhas não censura comentaristas, mas não publica ofensas pessoais e comentários com uso de expressões chulas. Os comentários serão moderados, mas são sempre muito bem vindos.