1. Como escrever sobre o horror? A pergunta atravessa “Guerra Aérea e Literatura”, livro que reúne palestras dadas pelo grande ficcionista alemão W. G. Sebald em Zurique, em 1997, tendo como tema os romances produzidos em seu país logo depois do fim do nazismo (Companhia das Letras, 132 págs., tradução de Carlos Abbensteth e Frederico Figueiredo). O conjunto forma um ensaio rigoroso, no qual o autor é implacável com a geração que lhe precedeu. Para ele, a literatura alemã dos anos 1940 e 1950 começa a fracassar em virtude de um constrangimento histórico: o sentimento de culpa e humilhação do povo que pouco tempo antes havia posto Hitler no poder. Afinal, o empenho em fazer um retrato honesto de ações como os bombardeios aliados no fim da guerra, que reduziram cidades a pó sem diferenciar alvos civis e militares, poderia se confundir com algum tipo de denúncia relativista - ou, mais grave, de lamento pela sorte do III Reich no conflito. Mas Sebald vai além da hipótese psicológica. A originalidade de sua tese é relacionar o problema moral com o problema estético: identificar na prosa alemã do período um “gesto de defesa diante da recordação”, como se o “funcionamento continuado da linguagem normal” fosse incompatível com a autenticidade de textos sobre um passado recente e catastrófico. Clichês como “noite fatídica”, “labaredas do céu” e “o diabo estava à solta”, presentes nos testemunhos sobre os bombardeios, chegam à ficção em equivalentes cujo efeito seria “esconder e neutralizar os acontecimentos que extrapolam a capacidade de compreensão” - a saber, as “intermináveis e empoladas abstrações” na velha guarda de escritores que trataram do tema, o “sentimentalismo” e o “queixume” na nova, escreve Michel Laub em sua coluna no Valor, publicada na sexta, 23/4. Continua a seguir.
2. Reli “Guerra Aérea e Literatura” umas semanas atrás, imbuído do mesmo espírito com que volto a ensaios do gênero desde o início da quarentena - ou melhor, desde as eleições de 2018. Sempre há algo de anacrônico, e às vezes de leviano, em comparar traumas sociais de épocas tão diversas: por piores que sejam os nossos dias, ainda é um pouco forçado botá-los no mesmo patamar daqueles que testemunharam os campos de extermínio e a explosão da bomba atômica.
O anacronismo, porém, não é um conceito absoluto. É praxe na análise cultural fazer perguntas do presente para entender o passado, e aceitar que as respostas do passado - mesmo em aproximações imperfeitas - mudem o modo como vemos o aqui e agora. Como escritor, me parece que o impasse apontado por Sebald na ficção alemã do pós-guerra pode ensinar algo à ficção que faremos no Brasil dos próximos anos: de que maneira dar conta do desastre da pandemia, que em grande parte decorre do desastre Jair Bolsonaro, sem cair nas armadilhas apontadas em “Guerra Aérea...”? Não se trata apenas de marcar posição contrária à barbárie: “Até a chamada literatura dos escombros”, escreve Sebald, referindo-se à produção de nomes como Wolfgang Borchert e Günter Eich, preocupados em narrar de modo “ético” os dilemas de soldados e prisioneiros do seu país depois do conflito, “mostra-se (...) um instrumento previamente sintonizado com a amnésia individual e coletiva, e guiado, talvez, por processos pré conscientes de autocensura para o encobrimento de um mundo que se tornara incompreensível”.
Uma coisa é como a história, com seus julgamentos baseados em ações concretas de alcance coletivo, retratará nossas escolhas presentes. Outra é como isso será feito num gênero como o romance, cujo objeto é a subjetividade, as nuances de relações privadas que só lateralmente explicam o espírito de uma época. Evocar tais delicadezas é mais difícil do que apontar o dedo para governantes e colaboracionistas, como fazemos com justa indignação nas redes sociais: numa página de ficção, as meras palavras de ordem (a mera certeza de se estar do lado certo) pode equivaler à expiação esteticamente inócua (ou ao ato falho comprometido) que Sebald enxerga na obra dos seus pares.
3. Como escrever sobre o horror? Volto à pergunta inicial que, como todas relativas à arte, não tem uma resposta única e objetiva. Sebald lista exemplos raros que teriam furado os lugares-comuns apontados em suas palestras. O maior deles é “O Anjo Silencioso”, romance de Heinrich Boll escrito em 1946 e publicado apenas em 1992, provável sinal de que sua “melancolia sem cura” era tão exata quanto seria insuportável para leitores do pós-guerra: numa das cenas, uma personagem morre vertendo um “sangue escuro” que alegoriza por contraste a “depressão pálida”, já “sem remédio”, voltada contra a “vontade de sobreviver” de qualquer um que “realmente olhasse para as ruínas ao seu redor”.
A força de um texto assim, claro, só existe quando comparada à flacidez edulcorada ou histérica da literatura do seu próprio tempo. Em 2021 as demandas são outras, até porque o tipo de aniquilação a que assistimos é diverso. Não haverá sinais físicos tão gritantes da barbárie - cidades inteiras destruídas, por exemplo - no país que herdaremos nos próximos anos. Nem haverá interditos - tomara - para se publicarem obras melancólicas, depressivas ou como se queira. As ruínas por aqui serão mais interiores, morais, e talvez formem até um contraste com uma vida de aparência radiante - na melhor hipótese, pela qual todos torcemos, as pessoas voltarão a se divertir, os negócios voltarão a funcionar, os números sociais melhorarão.
Se isso ocorrer, haverá pressão para esquecermos as feridas do processo sempre frágil de reconciliação política. A proposta pode fazer sentido no discurso cultural, que às vezes deve se comprometer com as demandas táticas do momento, mas não faz no espaço da literatura - onde as pulsões destrutivas da sociedade são provocadas, esquadrinhadas, num processo de exorcização que, também com alguma sorte, pode ajudar na não repetição da história a longo prazo.
Não tenho a pretensão de dizer qual a linguagem adequada para se escrever sobre o Brasil de hoje. Mas, adaptando a ideia central de Sebald ao que se observa ao nosso redor, um bom começo é não se preocupar em dizer o que todos esperam ouvir - no caso, o lugar comum do escapismo ou o seu oposto, a reiteração das certezas morais do noticiário. Tentar entender as nuances da nossa própria distopia - investigar as razões, os afetos de amigos, colegas, pessoas queridas que colaboraram omissa ou ativamente para a barbárie - me parece um caminho interessante. É aí que pode estar um reflexo do que somos como país. E, portanto, uma chance para que as mentiras da ficção possam dizer alguma verdade.
Michel Laub, jornalista e autor dos romances “Diário da Queda” (2011) e “Solução de Dois Estados” (2020), escreve neste espaço quinzenalmente
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