Pular para o conteúdo principal

Dica da Semana: A moça da lata, Prato Cheio, Podcast

Conquistar pelo estômago: como a genialidade de uma marca mudou nosso paladar

É sabido que muitas das tecnologias que existem hoje foram inventadas para as guerras. Em contexto bélico, toda criatividade é benvinda. Mas uma dessas mudanças é latente para nós, brasileiros. E tenho certeza de que ela está no seu armário da cozinha ou na despensa nesse momento: o leite condensado. Ou, como é popularmente conhecido, o “leite moça”. E é disso que se trata o episódio A moça da lata do podcast Prato Cheio, produzido por O joio e o trigo. 

O leite condensado foi inventado pela Nestlé para que os soldados pudessem ter todos os nutrientes do leite fresco mesmo nas trincheiras. Quando a guerra acabou, a marca teve que redirecionar sua produção para outro público. Inicialmente, pode parecer chocante, mas o leite condensado era vendido em farmácias, para bebês. Sim, bebês! Essa investida não deu muito certo e é aí que começa a virada na história do paladar e nas receitas brasileiras. 

Narrado por Marina Yamaoka com uma participação especial de Amanda Cappia, que encarna a famosa Moça da lata, esse episódio do Prato Cheio faz uma investigação jornalística incrível, que destrincha a história da Nestlé no Brasil. Uma marca hoje onipresente começou com o Milk Made - antigo nome do leite condensado. Como havia o desenho de uma moça na lata do produto, as pessoas trocaram o nome difícil, em inglês, por “leite moça”. Além da mudança de nome, a Nestlé teve que traçar um caminho tortuoso para que pudesse vender seu produto. O problema era que as receitas de doces brasileiros já estavam todas escritas e popularizadas. E nenhuma levava leite condensado. 

Por meio das entrevistas concedidas por Débora Fontenelle, criadora do Centro Nestlé de Economia Doméstica,  entendemos melhor como, hoje, qualquer doce tradicional que você queira fazer, é preciso de uma latinha de leite moça. 

O contexto histórico era: mulheres donas de casa, que, inseridas em uma sociedade machista e patriarcal, faziam de tudo para agradar os maridos. E quem não concorda que a melhor forma de conquista é pelo estômago? Assim, as esposas ficavam horas no fogão preparando doces para seus amados. E quando eu digo horas, são horas mesmo - às vezes dias. Um pudim de leite, por exemplo, levava 18 ovos e dias para ficar pronto. 

A Nestlé tinha achado seu público-alvo. E, para isso, convidou Fontenelle para recriar as receitas demoradas e trabalhosas dos tradicionais cadernos de receitas brasileiros. Essa seria uma missão difícil, já que não existia internet, aplicativo de receita ou programas de televisão culinários. E é aí que vem a genialidade da marca. 

O Centro Nestlé de Economia Doméstica foi a jogada de mestre. Como o podcast coloca, a Nestlé acabou criando, sem saber, a primeira rede social do mundo: por meio de cartas, as mulheres brasileiras trocavam receitas umas com as outras,  com o intuito de facilitar a vida nas cozinhas. E as receitas trocadas, é claro, levavam como ingrediente o leite condensado. Pensemos no pudim: hoje é necessário apenas três ovos, uma latinha de leite moça e um bocado de leite. Imaginem agora a revolução que uma simples receita foi na vida dessas donas de casa. 

Essa rede social do Centro Nestlé de Economia Doméstica acabou reescrevendo todas as receitas de doces brasileiros até então inventadas. Anos mais tarde, a marca lançou um livro - e continua difundindo até hoje receitas de doces através de programas de culinária, aplicativos, enfim: as redes sociais modernas. 

É estranho pensar que até muito pouco tempo o leite condensado não servia para nada - e hoje tem um espaço guardado no nosso coração, ou melhor, estômago. O podcast A moça da lata, além de trazer essa investigação bastante instigante e interessante, nos faz refletir sobre como uma marca, em busca de vender um produto até então “obsoleto”, pode invadir a nossa individualidade, os nossos gostos, a nossa rotina. E a Nestlé não foi a única. (Por Teresa de Carvalho Magalhães em 18/04/2021)



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

Dica da semana: Nine Perfect Strangers, série

Joia no Prime traz drama perturbador que consagra Nicole Kidman  Dizer que o tempo não passou para Nicole Kidman seria tão leviano quanto irresponsável. E isso é bom. No charme (ainda fatal) de seus 54 anos, a australiana mostra que tem muita lenha para queimar e escancara o quanto as décadas de experiência lhe fizeram bem, principalmente para composição de personagens mais complexas e maduras. Nada de gatinhas vulneráveis. Ancorando a nova série Nine Perfect Strangers, disponível na Amazon Prime Video, a eterna suicide blonde de Hollywood – ok, vamos dividir o posto com Sharon Stone – empresta toda sua aura de diva para dar vida à mística Masha, uma espécie de guru dos novos tempos que desenvolveu uma técnica terapêutica polêmica, pouco acessível e para lá de exclusiva. Em um lúdico e misterioso retiro, a “Tranquillum House”, a exotérica propõe uma nova abordagem de tratamento para condições mentais e psicossociais manifestadas de diferentes formas em cada um dos nove estranhos, “...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...