Meu pai tem um dachshund chamado Nestor e um pequeno jardim cheio de vasos que ele decora com tinta spray. Essa semana, ele me disse que havia postado no Facebook fotos novas do cachorrinho posando em meio às flores, e eu entrei para ver. Não deveria ter feito isso. Lá estavam suas críticas a pastores corruptos, sua defesa aos direitos dos animais, sua crença no vegetarianismo, suas piadinhas sobre a velhice e seus elogios a Angela Merkel, “um exemplo a seguir”. Até aí, eu estava que era só orgulho, escreve a colunista Tati Bernardi em artigo publicado na Folha dia 13/11. Continua a seguir e vale a leitura.
Papai segue uma página chamada “Entre patas e beijos”, e suas redes sociais são recheadas de bebês dormindo abraçados a labradores, vira-latas nos encarando com olhos bondosos e histórias de filhotes que transformaram a vida de crianças com dificuldades motoras.
Quando eu tinha dez anos, nossa brincadeira preferida era inverter os papéis. Ele era meu aluno desatento, e eu o enchia de lição de casa e broncas.
Ele era uma garotinha talentosa em busca de aparecer na televisão, e eu a apresentadora de sucesso que lhe dava a chance de participar de um concurso.
Mesmo a contragosto, meu pai topava que eu o maquiasse e enfeitasse sua cabeça com fivelas e tiaras. Ao final, ganhava o prêmio.
Não dá pra entender como esse homem divertido, afetuoso e zero autoritário é hoje um dos maiores defensores do Bolsonaro que eu conheço.
Sim, misturada às imagens fofas de animaizinhos, fotografias amareladas de familiares rindo em cima de um Fusca e uma ou outra reportagem séria, uma avalanche de absurdos, machismo e fake news domina sua página.
Biden pedófilo decrépito, Magno Malta servo do Senhor, Trump o único que poderia lutar contra o globalismo, imprensa esquerdista cúmplice de fraudes escandalosas, Coronavac vacina da morte, coronavírus inventado pela China para que o comunismo domine o mundo, Fernando Henrique Cardoso pai dos canalhas porque trouxe para o Brasil a urna eletrônica, Psol inventor da ditadura gayzista que fará com que meninas de cinco anos urinem em mictórios nas escolas, MST sobrevoando o Pantanal pra tacar fogo na mata e, é claro, todas as defesas e elogios possíveis ao injustiçado e bem-intencionado presidente do Brasil.
Obcecado pela volta da ditadura, quando não pede intervenção militar, posta fotos do Exército em uma estrada no Sul e a legenda “Toneladas de asfalto”.
Especificamente essas fotos de BR pavimentadas atraem muitas senhoras e figurinhas de corações que dão piruetas. Elas flertam com papai, que é um coroa bonitão nos seus quase 80 anos, e o chamam de “mestre”. Ao que ele responde: “Sou mesmo”. Eu pensei que tudo isso poderia render uma crônica engraçada, mas passei a manhã com enjoo e dor no peito.
Saí então para caminhar um pouco e ouvi, no podcast “451 MHz”, meu amigo Paulo Werneck entrevistando seu pai, Humberto Werneck, a respeito de Carlos Drummond de Andrade.
Estava ali, invejando meus contemporâneos que podem conversar com progenitores cultos e defensores da democracia, quando Humberto me lembrou que o imenso Drummond era bastante conservador e, em algum momento, chegou até mesmo a apoiar o golpe de 1964.
Assim como é preciso, muitas vezes, separar o artista de sua obra, eu tenho que separar meu querido pai desse cara péssimo com perfil na internet.
E já que papai defende a tirania, vai provar um pouco dela. Decidi não lhe dar de aniversário o celular bacanudo que me pediu.
Vou comprar um mais barato e lhe deixar sem as funções que tanto adorava em seu iPhone velho e quebrado. Vamos ver se assim lê e posta menos disparates.
Talvez até o Natal ele saia do castigo. Talvez até 2022 a gente saia do castigo.
Tati Bernardi é escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.
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