O uso da religião como plataforma política e de poder não é um dado novo no Brasil, mas tem ganhado tração desde 2018. Nas eleições que ocorrem no dia 15, por exemplo, duas das maiores capitais brasileiras apresentam candidatos a prefeito vinculados à força neopentecostal com chances de disputar o segundo turno. Tanto o bispo licenciado Marcelo Crivella, que pleiteia a reeleição no Rio, como o deputado Celso Russomanno, em São Paulo, têm a Igreja Universal do Reino de Deus como aliada, que, por sua vez, tem influência direta sobre o partido dos dois, o Republicanos, escreve Amália Safatle em excelente reportagem publicada no Valor em 6/11. Continua a seguir.
Ainda que a força de ambas as candidaturas tenha oscilado nas últimas pesquisas, a presença indica a ofensiva dessa ala evangélica, que se caracteriza por unir política e fé para ganhar espaço no Poder Executivo. Isso ocorre após significativos avanços no Legislativo, por meio da formação de bancadas influentes no Congresso, e a posição clara tomada para o Judiciário, com a expectativa de ter um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal, uma ambição abraçada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
“Trata-se de um indicativo da busca evangélica por hegemonia na política”, afirma Flávio Sofiati, professor de ciências sociais da Universidade Federal de Goiás, que vê diferenças entre as estratégias nestas eleições municipais: enquanto a aliança do católico Russomanno com a Igreja Universal, a seu ver, caracteriza-se pelo pragmatismo, Crivella cultiva uma relação orgânica com a religião, ou seja, o bispo licenciado tem a igreja como berço em que historicamente atua.
“A Igreja Universal faz investimento na política institucional muito forte desde a década de 1980 e vem colhendo frutos paulatinos, como podemos observar em relação ao crescimento do Republicanos e à presença dessas candidaturas bem cotadas no cenário político atual”, diz Christina Vital da Cunha, colaboradora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e professora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mas a pesquisadora relativiza a capacidade de contribuição que a religião pode dar para impulsionar essas candidaturas.
A professora recorda que Crivella foi eleito numa eleição em que o número de votos nulos, brancos e de abstenções foi muito alto, o que indicava recusa daqueles perfis extremos. Christina supõe que ele tenha sido favorecido no segundo turno daquelas eleições pela onda de conservadorismo que crescia na política. “Isso vai muito além do poder da Igreja Universal do Reino de Deus ou do poder relativo das igrejas evangélicas. Isso informa sobre um contexto, porque as eleições são jogos contextuais.”
Christina diz acreditar que não seja possível atribuir a força da igreja na candidatura de Russomanno, que vê como candidato conhecido pelo lugar que ocupava na mídia - era apresentador na Rede Record, vinculada à Igreja Universal. “Se a igreja fosse tão poderosa, Russomanno já estaria em um lugar melhor do que ocupa hoje.” Com isso, ela chama atenção para o fato de que, embora o apoio da Universal colha vitórias no campo das eleições proporcionais (deputados estaduais, federais e vereadores), ela não é tão bem-sucedida em relação às candidaturas majoritárias (cargos executivos e senadores), até porque tem opositores no campo evangélico.
Mesmo no Rio, que já possui histórico de gestões estadual e municipal - com os evangélicos Anthony Garotinho (PRP) e o próprio Crivella, como aponta Sofiati -, a candidatura do bispo licenciado encontra dificuldades para avançar, mostrando que não basta ser um “evangélico raiz” para obter o passaporte para a prefeitura. Outros obstáculos podem se impor.
“No caso do Rio, os problemas são enormes. O Crivella está sendo avaliado pela gestão que fez e, também, por episódios da relação obscura e incorreta entre religião e política”, afirma Valdinei Ferreira, reverendo presbiteriano da Primeira Igreja Independente de São Paulo, também conhecida como Catedral Evangélica de São Paulo. Ferreira refere-se à suspeita de que o atual prefeito do Rio tenha criado facilidades de acesso de pastores a serviços públicos. Crivella sofreu pedido de impeachment por ser acusado de oferecer ajuda para encaminhar fiéis a cirurgias e para acelerar processos de isenção de cobrança de IPTU das igrejas. O pedido foi derrubado na Câmara. Segundo pesquisa Datafolha do dia 22, Crivella era rejeitado por 38% dos evangélicos.
Já em São Paulo, o reverendo não vê Russomanno como candidato tão identificado com a Igreja Universal, e atribui as dificuldades em sua campanha à repetição de tropeços que já vinham das últimas eleições nas quais concorreu.
Ferreira tem uma explicação para a dificuldade que os evangélicos mais fundamentalistas encontram de alcançar cargos majoritários. “A pauta divisiva que agrega uma certa paixão política reacionária funciona bem para segmentos. Mas, quando você tem de governar o todo da população, fica muito mais difícil [aglutinar votos]. Funciona bem para as eleições proporcionais, mas não para as majoritárias”, conclui.
A conquista de cargos majoritários, portanto, seria a próxima fronteira a explorar. “Os evangélicos sempre tiveram interesse grande em ocupar o Executivo, em especial a Presidência”, diz Bruna Suruagy do Amaral Dantas, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ela lembra que o próprio Edir Macedo, fundador da Universal e tio de Crivella, havia lançado em 2008 o livro “Plano de Poder”, em que apresentava os evangélicos como força política inegável, em razão de seu tamanho e da tendência de crescimento, capaz de interferir significativamente no jogo eleitoral.
No livro, Macedo convocava os evangélicos dos diferentes segmentos a se entregarem em nome de um projeto político religioso. “Já fazia parte dos discursos religiosos, inclusive nas igrejas, uma profecia segundo a qual um dia o Brasil teria um presidente evangélico. Dizia-se que esta era uma nação que pertenceria ao Senhor. Não era uma metáfora, era um anseio”, diz Bruna.
A eleição de um presidente com o nome Messias teria, portanto, alta carga simbólica. Embora Bolsonaro se declare católico romano, foi batizado no rio Jordão, em Israel, pelo pastor Everaldo Pereira, da Assembleia de Deus. Desta igreja, Bolsonaro arregimentou para o primeiro escalão Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A Assembleia é a maior igreja evangélica no Brasil, tendo o PSC como partido auxiliar.
Para Bruna, as conquistas no Poder Executivo fazem parte de anseio amplo de dominação de esferas importantes da vida social, cultural e pública, para promover moralização generalizada das práticas do comportamento. Na literatura que estuda a interface entre religião e política, esse movimento é descrito como Teologia do Domínio, conceito desenvolvido por Ricardo Mariano, professor de sociologia da USP. Para ela, isso traria riscos importantes para a prática democrática, ameaçando o respeito às diferenças, a tolerância religiosa e o Estado laico.
“A minha leitura é que se trata da busca de uma hegemonia cultural e dos valores cristãos”, diz a professora. Já Sofiati vê na ofensiva evangélica a intenção de mudar o pêndulo que historicamente privilegiou a Igreja Católica na relação com o Estado. Mas, em paralelo ao avanço sobre o Executivo, ele entende que a prioridade ainda são as eleições proporcionais nas câmaras municipais, nas assembleias legislativas e na Câmara dos Deputados.
A ação no Legislativo tem dado resultado. De acordo com o Iser, que acaba de lançar a plataforma Religião e Poder, a evolução da bancada evangélica mostrava variações desde os anos 1980, mas nas últimas eleições nacionais saltou em torno de 20%. Embora a Frente Parlamentar Evangélica, com 203 deputados e senadores, seja numericamente inferior à Frente Parlamentar Católica (com 216) e à de Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (218), são os evangélicos que compõem a maioria do grupo chamado de “agentes de influência”.
Os parlamentares são assim identificados de acordo com critérios qualitativos e quantitativos, como participação em comissões temáticas, articulação política de pautas e mobilização dentro e fora do Congresso. Segundo o Iser, esses agentes se caracterizam pela alta capacidade de influência, agregação e alcance político nos temas relacionados a religião. Constituído por 69 parlamentares, o grupo de agentes de influência é majoritariamente evangélico (57% do total), branco (69%) e masculino (81%) - embora a base evangélica brasileira seja de maioria feminina e negra, pontua Christina, da UFF.
A postura de alas evangélicas como a Igreja Universal é conservadora nos costumes e liberal na economia. Sofiati diz que nesta legislatura essas igrejas são a principal base de apoio das políticas do ministro da Economia, Paulo Guedes. “É a primeira vez que estão de fato no governo.” Isso porque nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso, a presença mais forte era de católicos carismáticos. Nos mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, os evangélicos ganharam mais presença e constituíram base de apoio. No governo Dilma Rousseff, já começaram a ter capacidade de veto. Aumentaram a força no governo Michel Temer e, com Bolsonaro, ganharam postos no primeiro escalão do Executivo.
“A fração evangélica que chegou à política institucional é das grandes denominações”, diz Christina. A maioria dos parlamentares evangélicos eleitos está vinculada a instituições religiosas presididas por líderes ao mesmo tempo pastores e empresários de mídia, do mercado editorial, do setor imobiliário e de terras, com infiltração dos religiosos mais radicais na construção da política nacional.
Christina lembra que, em legislaturas passadas, havia diversidade maior em termos políticos e ideológicos na Frente Parlamentar Evangélica, incluindo a representação de parlamentares que nunca fizeram uso ostensivo de sua identidade religiosa na disputa política - a exemplo da deputada federal Benedita da Silva, também candidata à Prefeitura do Rio, e do então deputado federal Gilmar Machado, ambos do PT. Hoje, essa diversidade interna é residual, e imperam os parlamentares conservadores de direita. “Há predomínio de denominações que se fundam na Teologia da Prosperidade e do Domínio, mas também há os silenciosos calvinistas de várias envergaduras”, afirma.
O discurso do atual governo se encaixa com a mensagem dos evangélicos mais radicais. Bruna explica que, enquanto o protestantismo histórico entende a mensagem da Bíblia em perspectiva metafórica, os pentecostais acreditam literalmente que Jesus retornará, destruirá as forças do mal e reinará sobre a terra por um período de mil anos. Por isso são chamados de milenaristas. A retórica seria de “guerra”, o que explicaria o discurso bélico, a extrema polarização, a apologia às armas e o fato de Bolsonaro ter usado o apoio de alas militares em sua campanha eleitoral e na formação de quadros dentro do governo. “Há vários hinos pentecostais que destacam Jesus como um general e pregam que o povo faz parte de um Exército. Isso casa perfeitamente com o bolsonarismo.”
A semeadura política evangélica encontrou um campo fértil e em franca expansão. Hoje a população evangélica é estimada em um terço da total, mas projeções com base no Censo do IBGE dão conta que o número de evangélicos no Brasil ultrapassará o de católicos em 2030, conforme aponta o antropólogo Juliano Spyer, no livro “Povo de Deus - Quem São os Evangélicos e Por que Eles Importam”.
Uma série de elementos favoreceu o uso político da religião que o bolsonarismo soube tão bem aproveitar, aliado à cruzada antipetista. Segundo Christina, a crise econômica afetou a todos, mas abalou principalmente a segurança que a classe C tinha adquirido ao longo dos governos Lula e Dilma antes de a recessão eclodir. Essa é a classe social que corresponde à maior fração de eleitores no Brasil, tem uma presença significativa de evangélicos e sofreu perdas acentuadas no poder de compra e na oferta de empregos. Paralelamente a isso, a violência urbana recrudesceu na última década, fazendo crescer um sentimento de ameaça à integridade física. “O contexto era de ameaças do ponto de vista moral, econômico e físico”, resume.
A religião evangélica ganhou importância, à medida que passou a oferecer espaços de sociabilidade, de produção de vínculos e de redes que ajudam a orientar pessoas para o mercado de trabalho e prestam incentivo emocional. Sem falar na dimensão espiritual e mística trabalhada nos encontros diários. “Têm um impacto muito grande em termos de organização de vida, conforto e produção de confiança e esperança”, diz Christina.
Além disso, segundo Sofiati, os pentecostais recuperaram do cristianismo a dimensão do milagre e do sagrado na luta contra o profano, materializado na figura do diabo. Esse diabo, entre os mais radicais, ganha representações que vão desde o Exu das religiões de matriz africana até o comunismo e defensores da descriminalização do aborto.
“À medida que as igrejas crescem, conquistam capital religioso que se transforma em capital político, aliado a uma flexibilidade na construção de bens simbólicos e na oferta de novidades no mercado da fé”, diz Bruna, do Mackenzie. Ela cita a Bola de Neve, igreja da década de 1990 que cresceu no esteio da lógica liberal, com lançamento contínuo de novos produtos.
“Pensando em uma sociedade que vive vazios existenciais, políticos e sociais, essas novidades estimulam e convocam fiéis clientes, que vão saindo de uma igreja para outra. Então é necessário um certo dinamismo por parte delas para criar novidades. A Universal, por exemplo, cria campanhas e materializa a fé.”
Da narrativa bíblica, profícua em histórias contundentes, as igrejas extraem elementos que se transformam em produtos, como a capa de Salomão, a rosa de Jericó, e até feijões comercializados pelo pastor Valdemiro Santiago de Oliveira, da Igreja Mundial do Poder de Deus, dizendo que combatem a covid-19. O Ministério Público Federal investiga o caso como estelionato. “Invenções como essas funcionam como mediadores afetivos, atendendo pessoas desesperançadas”, diz.
Mas Christina pondera que há dissidentes cada vez mais numerosos que não se sentem representados pelas narrativas vigentes e as disputam no espaço público e na política. De fato, seja entre cristãos, seja entre não cristãos, partem reações contra a busca da hegemonia das alas mais radicais.
O rabino Nilton Bonder é uma dessas vozes. Ele afirma que haver uma religião oficial ou mesmo predominante é o equivalente a tornar o Brasil partidário. “A liberdade de expressão e de direitos às religiões pressupõe tolerância e apreciação, e não a prevalência.” Ele explica que as religiões, em seu aspecto corporativo, são semelhantes a partidos, há ideologias e interesses particulares. “O uso da máquina de estruturas organizacionais faz do concorrente ao cargo público uma pessoa jurídica, e não uma pessoa física. Eu não posso eleger deputado ou senador uma pessoa jurídica. Ou seja, obviamente há conflito de interesses, tanto no objeto quanto na representatividade”, afirma.
Para o padre Júlio Lancellotti, as religiões devem ser instrumentos de solidariedade e não de dominação, por isso, toda forma religiosa que nega a outra nega a si. “Toda vez que qualquer religião quer ser a única reconhecida, isso é um perigo. Por isso o ecumenismo é tão importante.
Mas Frei Betto alerta que o Brasil corre o risco de ver aqui a versão cristã do fundamentalismo religioso adotado pelo Estado islâmico: a autoridade religiosa passaria a ocupar o poder político, a autoridade política passaria a estar revestida de caráter religioso, pecado e crime se tornariam sinônimos, e a oposição seria execrada como herege. (Leia mais na pág. 12)
O reverendo Valdinei Ferreira critica o que chama de movimento reacionário e pragmático - e não conservador. Segundo ele, enquanto o conservadorismo é um traço das religiões em geral, as quais naturalmente prezam ritos, tradição e memória, o reacionarismo idealiza a volta a um passado que, na verdade, nunca existiu. “O que emergiu com muita força, mais recentemente, é o movimento reacionário, a partir de um alinhamento entre setores da sociedade, alguns religiosos e outros não, ambos representados agora neste governo”, diz.
“A Universal é uma igreja pragmática, esteve no governo Lula e no governo Dilma. Assim como os sacerdotes e fariseus sabiam o caminho até Pôncio Pilatos, eles sabem o caminho até o Alvorada e o Palácio do Planalto. Alguns estão tocando nessa pauta reacionária por pragmatismo, e não pela crença”. E menos ainda pela defesa de valores cristãos, como a misericórdia, o perdão e o apoio às populações mais necessitadas, diz. O reverendo identifica na bancada evangélica dois tipos de atuação: uma muito barulhenta em torno de temas como “ideologia de gênero”, aborto, drogas, homossexualidade, e outra, formada por deputados mais experientes, cientes de que o ordenamento político brasileiro não permite retrocessos. Mas, para o eleitorado evangélico, esse pânico moral funciona bem.
“A Damares, por exemplo, sempre diz que ‘daqui a pouco estarão fazendo isso, daqui a pouco estarão fazendo aquilo’, como se houvesse uma grande conspiração na sociedade para destruir as crianças e as famílias. Mas, do ponto de vista das igrejas neopentecostais, como a Universal e a Internacional da Graça de Deus, o que reina é o pragmatismo. Alguns desses políticos estão no Centrão e atuam para lotear os cargos políticos”, diz Ferreira.
Em sua avaliação, os evangélicos não são culpados pela decadência da política brasileira, mas sucumbiram junto com ela. “Não melhoraram a política e a pioraram do ponto de vista do testemunho ético e moral, fazendo parte da estrutura já corroída dos partidos.”
Já em 2017, por ocasião dos 500 anos da Reforma Protestante, a Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo lançou o manifesto Reforma Brasil, que, entre outros pontos, criticou o uso de título religioso na propaganda eleitoral, como bispo, pastor, missionário e irmão, por considerar uma instrumentalização política da fé. “Quem quer se candidatar faça isso sem usar a terminologia religiosa, que se licencie das atividades religiosas. O cúmulo é a Universal, que tem partido político. Felizmente, acho que isso está dando sinais de estresse, pois a igreja é um local de encontro entre diferentes, e o Crivella não se reelege”, afirma Ferreira.
Freios e contrapesos também partem da própria estrutura organizacional evangélica, que não é verticalizada como a católica. Segundo a ex-senadora Marina Silva (Rede), a heterogeneidade e a pulverização no campo evangélico protegem a democracia e o Estado laico de um projeto monopolizador. “Pela estrutura do mundo evangélico, essa consolidação é praticamente impossível. Não existe homogeneidade, nem espaço para generalização”, afirma Marina, evangélica que frequenta a Assembleia de Deus.
Marina inclusive entende que a generalização acaba por fortalecer o fundamentalismo que deseja impor valores à sociedade em prejuízo do Estado laico. “Enquanto eu estava no PT, ninguém dizia que, por ser evangélica, eu fosse fundamentalista, ameaçasse a democracia, a ciência e a liberdade individual. Somente depois, em 2010 e 2014, quando fui candidata à Presidência, é que isso foi explorado”, diz ela. “Se eu não ameaçasse o projeto de poder na época, com certeza o [marqueteiro] João Santana não teria gasto nem a metade do dinheiro para fazer as películas mentirosas na campanha da Dilma e os boatos que espalharam na internet, dizendo que eu, por ser evangélica, ia acabar com o Círio de Nazaré e com a Padroeira do Brasil”, afirma.
Segundo ela, quando as forças se unem com os fundamentalismos, sejam religiosos, sejam políticos, o intuito é de eliminar as diferenças. “O ovo da serpente não choca da noite para o dia. Surge em algum lugar disfarçado de uma justificativa teórica racionalizada, e em algum momento pode encontrar as condições específicas para eclodir e desenvolver aquilo que é da natureza das visões autoritárias, que é eliminar a alternância de poder”.
Ela lembra que a laicidade é uma das maiores contribuições do protestantismo ao Estado moderno, quando propôs a separação entre Estado e religião. “A fé cristã não é um projeto de poder político. Jesus não foi tomar o palácio, Jesus foi para a cruz”, diz Marina.
Para mostrar que os cristãos não são um bloco monolítico e fazer contraponto ao projeto político-religioso de Bolsonaro, surgiu em 2018 o movimento Cristãos Contra o Fascismo. Um dos fundadores é Tiago Santos, ex-pastor batista, formado em teologia e mestrando em educação na PUC do Rio Grande do Sul. O movimento começou para fazer coro ao “Ele Não”, deflagrado pelas mulheres, e a outras manifestações que se organizavam contra Bolsonaro. “Havia contraponto ao discurso político, contra a ditadura e a retirada de direitos. Mas não existia um contraponto ao discurso religioso que dava a entender que todo religioso é conservador e fundamentalista. Bolsonaro se colocou como um escolhido por Deus, e portanto não poderia ser questionado. É um discurso muito perigoso”, diz.
Santos, candidato a vereador em Porto Alegre pelo Psol, por meio de um mandato coletivo, explica que outro objetivo do movimento é resgatar a dimensão da espiritualidade que foi negligenciada pelas alas progressistas da política e foi apropriada por conservadores e populistas. “Há resistência dentro dos partidos de esquerda. Existe uma compreensão um pouco rasa da laicidade, vista como um Estado ateu, onde é proibido falar de religião. Mas a gente mostra que Estado laico é aquele que não impõe uma religião. Há uma cultura no Brasil que política, futebol e religião não se discutem. E o resultado está aí.”
Segundo ele, o Cristãos Contra o Fascismo expandiu-se organicamente no país e já reúne cerca de 40 mil pessoas. Nestas eleições, há 69 candidaturas em torno dessa pauta - algumas coletivas -, em 17 municípios de seis Estados diferentes. O movimento é mais um entre diversas manifestações cristãs e evangélicas que repudiam o governo e defendem a democracia e as minorias.
Também em 2018 surgiu o movimento Judeus pela Democracia, no esteio do manifestação do “Ele Não”, e partiu da indignação de judeus progressistas com a participação de Bolsonaro em um evento no clube Hebraica, durante a campanha presidencial. Recusado pelo clube em São Paulo, Bolsonaro foi à Hebraica do Rio de Janeiro, onde, em discurso, proferiu ataques aos quilombolas, dizendo que não serviam nem para procriar.
“O que nos deixou perplexo nesse episódio é que Bolsonaro falou aquelas barbaridades com a bandeira de Israel atrás. Isso não nos representa. Muita gente acaba colocando a comunidade judaica no mesmo bloco, como se todos apoiassem a extrema direita”, afirma Gui Cohen, um dos fundadores do movimento e candidato a vereador pelo PSB no Rio. Outro incômodo é a apropriação de símbolos judaicos pelos evangélicos fundamentalistas, que, segundo ele, cultivam uma imagem de Israel muito diferente da multiplicidade e da diversidade que existem de fato.
“O Estado é laico, mas a política, não. A partir do momento em que a política se torna tendenciosa, é preciso conquistar uma representatividade, do contrário a gente fica de fora”, diz Juba Akel, candidata a vereadora pelo PV em Curitiba e mãe de santo pequena (um posto abaixo da mãe de santo) no Pai Maneco, o maior terreiro de umbanda do Brasil. Ela compara o lançamento de diversas candidaturas ligadas às religiões afro com o movimento das mulheres, que começaram a entrar na política para obter mais direitos e representação na sociedade.
Segundo Juba, faltam condições mínimas de segurança para os praticantes de religiões de matriz africana. “A intolerância aumentou significativamente nos últimos dois anos, as pessoas apanham na rua, no terreiro, entra gente no meio da nossa gira gritando ‘Sai, Satanás’. Não dá mais para ficar só fazendo religião, a gente também terá de fazer política”.
Também em Curitiba, o deputado estadual e candidato a prefeito Goura (PDT-PR), convertido ao Hare Krishna, entende que movimentos de religiosos pela democracia são bem-vindos, desde que preservem a separação entre a religião e o Estado. “Na minha experiência como vereador e deputado, convivo com crucifixos no cenário e os trabalhos começam com o presidente dizendo: ‘Com a proteção de Deus inicia-se a sessão’. Eu discordo desse rito”, afirma.
Para Bonder, esses movimentos podem funcionar como pesos e contrapesos às tendências corporativistas de cada grupo. “Teriam um papel intracomunitário voltado a seus agregados. No entanto, não acho que devam militar na sociedade maior porque, como brasileiros, ninguém é democrático na condição de judeu, evangélico ou cristão. Somos comprometidos com esses valores por nossa condição de cidadãos, e não por outros vínculos identitários.”
De todo modo, Christina Vital, da UFF, observa nestas eleições uma organização de partidos de esquerda para atrair candidaturas cristãs, “em disputa por votos que pareciam dominados por conservadores e cartolas religiosos e partidários”. Um indicativo de que o anseio de hegemonia dos fundamentalistas encontrará as urnas como obstáculo.
Não responderam à reportagem Damares, Crivella, Russomanno, a Secretaria de Governo, a Igreja Universal e o partido Republicanos.
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