Pular para o conteúdo principal

Renato Janine Ribeiro: O povo que clama por um tutor

“Como a extrema-direita chegou ao poder” é a pergunta (e subtítulo) do inteligente livro de Wilson Gomes, “Crônica de Uma Tragédia Anunciada”. Há dois pontos em que este livro é talvez inédito. Primeiro, reúne ensaios publicados no Facebook entre 2014 e 2018: raro é o livro que vem da rede social mais popular. São posts refletidos, maduros, acompanhando a degradação de nossa cena social e política. Segundo, doutor em filosofia e referência dos estudos de comunicação no Brasil, Gomes analisa o desastre brasileiro não como os analistas e cientistas políticos, mas como especialista em comunicação política, escreve Janine para o Valor, em resenha publicada dia 27/11 no jornal. Continua a seguir.


É verdade que ele compartilha com os cientistas políticos a convicção na importância das instituições. Aqui temos uma pequena discordância de ênfase. A política moderna se abre em duas vertentes, uma que prioriza a ação inovadora, outra a instituição. No limite, ação é revolução, instituição é Estado. O papel das instituições, em especial de seu quase sinônimo “regras do jogo”, é evitar os males que um mau governante pode trazer - psicótico, sociopata, incapaz.

Já o papel da ação é mudar. Numa sociedade estável, como os Estados democráticos da Europa Ocidental e América do Norte, faz sentido conservar o que existe: daí, a importância das instituições. Lá a miséria foi quase liquidada, há igualdade de oportunidades, bem mais do que aqui. Mas em países como o nosso o foco na ação inovadora é prioritário - penso eu.

Mas concordo com Gomes que a frase “as instituições estão funcionando” é errada, no Brasil, desde o golpe/impeachment de 2016. Elas não funcionam para o que devem. Não impediram o desastre. Basta ver por quantos processos o deputado Bolsonaro passou impune. Levados a termo, teriam barrado sua resistível ascensão à Presidência. As instituições fracassaram na defesa da democracia.

Por que a extrema-direita chegou ao poder? Gomes faz a crônica das falhas brasileiras. Critica o PT por um déficit de espírito republicano, lembrando o líder que disse que, quando chegaram ao poder, vários militantes “se lambuzaram”. O partido se enfraqueceu, o que a inabilidade política de Dilma Rousseff agravou. Mas a isso se somou a falta de espírito democrático das oposições. Quando o PSDB sofreu a quarta derrota seguida para a Presidência, Aécio Neves fez um cálculo tolo, que seus colegas sêniores de partido não corrigiram: quis trocar uma eleição garantida (em 2018) pela pressa golpista. Pois o que é voto de desconfiança no parlamentarismo é, no presidencialismo, golpe. No regime parlamentar, tirar um governo é normal, no presidencial é trauma. Seguiu-se o desastre, um Dostoiévski tupiniquim, no qual, se as regras do jogo não existem, vale tudo.

Daí que Gomes antevisse, dois anos antes da eleição de 2018, a vitória de Bolsonaro. Este é o maior mérito seu. Os “pundits” apostavam em Alckmin, numa vitória que seria coroação e absolvição do impeachment. Deu errado. Como Gomes continua publicando seus ensaios no Facebook, cito uma postagem sua do último dia 13 de novembro:

“A eleição presidencial americana de 2016 foi o marco zero do bolsonarismo como força eleitoral no Brasil. A vitória de Trump naquele ano deu à militância e às lideranças conservadoras de direita a convicção de que até uma pessoa como Bolsonaro poderia se tornar presidente da República.” Por isso, acrescenta, nenhum país no mundo - fora os próprios EUA - deu tanta importância quanto nós à eleição de Biden: porque soaria o final da aventura bolsonarista.

Mas a derrota de Trump não restitui automaticamente o Brasil à política normal, mesmo com o Centrão substituindo os extremistas na base parlamentar de Bolsonaro e sendo vitorioso na atual eleição. Como superar o trauma brasileiro? eis a pergunta implícita no livro.

De quatro presidentes eleitos pelo povo entre 1989 e 2014, dois sofreram impeachment - ou seja, metade. É uma proporção muito alta de instabilidade institucional, portanto política e social. Para comparar, de 45 presidentes dos EUA, nenhum foi condenado num processo de impeachment.

Deveria o Brasil ter convivido com o governo Dilma até o fim, apesar de impopular? Gomes não tem a menor dúvida. Esse é o preço da democracia. Ela é uma excelente escola de convívio humano. A certa altura, Gomes simula uma entrevista em que alguém lhe pergunta quem é o culpado do desastre brasileiro; e ele responde: “Você”. Um dos maiores empenhos do livro é fazer o cidadão assumir a responsabilidade que tem num regime em que escolhe os governantes. Se o impeachment de Collor foi visto na época como a reação saudável de uma sociedade contra um presidente que a enganou, e que foi afastado no estrito respeito à lei, a destituição de Dilma constituiu uma grande desresponsabilização do eleitorado por seu voto. Seu segundo mandato teria sido difícil. Ela precisaria ceder (mas isso seria bom, entende Gomes, porque negociar é da essência da democracia) em pontos importantes. Não salvaria sua popularidade. Mas o eleitor aprenderia que não há, na democracia, atalhos ou quebra-galhos.

Lembro, no plebiscito de 1993, a frase pró-presidencialismo: “A gente põe (ao contrário do parlamentarismo, em que o governo é escolhido indiretamente), a gente tira”. Collor acabava de ser afastado. A segunda parte da frase era lamentável. Transformava a exceção em regra. A pretexto de defender o presidencialismo, introduzia nele um elemento desestabilizador. Pior, deseducava o eleitor.

Porque, resumindo, o que seriam as principais teses de Wilson Gomes? Diria que são o respeito às regras do jogo (a essência do que são “instituições”), a importância da negociação, a responsabilidade do eleitor por suas escolhas. O quadro transborda a análise apenas política, porque introduz uma pedagogia da vida democrática e, acrescento como seu quase sinônimo, decente. Não há decência, respeito ao outro ou democracia, se não houver responsabilidade pelo que se faz e disposição a negociar com quem discorda de nós. Talvez tenhamos perdido a capacidade de dialogar, justamente porque espertamente abrimos mão da responsabilidade.

Culpamos os políticos. Um após outro, Lula, Dilma, Aécio, Temer, Bolsonaro foram chamados de mentirosos ou coisa parecida. O resultado ou causa disso é que nos infantilizamos. Acreditamos piamente em mentiras evidentes. Elegemos gente cada vez pior. Depois, nos dizemos inimputáveis. Crianças são encantadoras, mas a democracia é um regime para adultos. Ou assumimos isso, ou ficaremos na eterna infância, clamando por um tutor.

“Crônica de Uma Tragédia Anunciada” Wilson Gomes Editora Sagga 255 págs., R$ 45,90

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP e ex-ministro da Educação do governo Dilma Rousseff



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Abaixo o cancelamento

A internet virou o novo tribunal da inquisição — e isso é péssimo Só se fala na rapper Karol Conká, que saiu do BBB, da Rede Globo, com a maior votação da história do programa. Rejeição de 99,17% não é pouca coisa. A questão de seu comportamento ter sido odioso aos olhos do público não é o principal para mim. Sou o primeiro a reconhecer que errei muitas vezes. Tive atitudes pavorosas com amigos e relacionamentos, das quais me arrependo até hoje. Se alguma das vezes em que derrapei como ser humano tivesse ido parar na internet, o que aconteceria? Talvez tivesse de aprender russo ou mandarim para recomeçar a carreira em paragens distantes. Todos nós já fizemos algo de que não nos orgulhamos, falamos bobagem, brincadeiras de mau gosto etc… Recentemente, o ator Armie Hammer, de Me Chame pelo Seu Nome, sofreu acusações de abuso contra mulheres. Finalmente, através do print de uma conversa, acabou sendo responsabilizado também por canibalismo. Pavoroso. Tudo isso foi parar na internet. Ergue...

Rogério Andrade, o rei do bicho

No dia 23 de novembro do ano passado, o pai de Rodrigo Silva das Neves, cabo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi ao batalhão da PM de Bangu, na Zona Oeste carioca, fazer um pedido. O homem, um subtenente bombeiro reformado, queria que os policiais do quartel parassem de bater na porta de sua casa à procura do filho — cuja prisão fora decretada na semana anterior, sob a acusação de ser um dos responsáveis pelo assassinato cinematográfico do bicheiro Fernando Iggnácio, executado com tiros de fuzil à luz do dia num heliporto da Barra da Tijuca. Quando soube que estava sendo procurado, o PM fugiu, virou desertor. Como morava numa das maiores favelas da região, a Vila Aliança, o pai de Neves estava preocupado com “ameaças e cobranças” de traficantes que dominam o local por causa da presença frequente de policiais. Antes de sair, no entanto, o bombeiro confidenciou aos agentes do Serviço Reservado do quartel que, “de fato, seu filho trabalhava como segurança do contraventor Rogério And...

No pior clube

O livro O Crepúsculo da Democracia, da escritora e jornalista norte-americana Anne Applebaum, começa numa festa de Réveillon. O local: Chobielin, na zona rural da Polônia. A data: a virada de 1999 para o ano 2000. O prato principal: ensopado de carne com beterrabas assadas, preparado por Applebaum e sua sogra. A escritora, que já recebeu o maior prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, é casada com um político polonês, Radosław Sikorski – na época, ele ocupava o cargo de ministro do Interior em seu país. Os convidados: escritores, jornalistas, diplomatas e políticos. Segundo Applebaum, eles se definiam, em sua maioria, como “liberais” – “pró-Europa, pró-estado de direito, pró-mercado” – oscilando entre a centro-direita e a centro-esquerda. Como costuma ocorrer nas festas de Réveillon, todos estavam meio altos e muito otimistas em relação ao futuro. Todos, é claro, eram defensores da democracia – o regime que, no limiar do século XXI, parecia ser o destino inevitável de toda...