Eu ia fazer uma autobiografia normal, mas acho que fiquei incomodado com essa ideia. E, quando começou a quarentena, vi mais claramente o que era essa história do que eu queria contar. Foram os estudos que fiz sobre o transe místico e a sorte que me levaram a isso. A sorte não tem explicação científica ou religiosa. Ela não tem moral, não é justa. Pessoas que não merecem ter sorte têm, e pessoas que merecem não têm... a sorte é um mistério, a sorte é enganadora. Eu vi casos como o de um lavrador brasileiro que foi atingido por um raio e não morreu. E não é que anos depois esse cara foi de novo atingido por um raio e de novo sobreviveu? Eu não falo aquela palavra de quatro letras (azar), mas digo que a falta de sorte é tão aleatória quanto a sorte. Não tem esse negócio de justiça divina. Mistérios existem para ser mistérios e por isso são tão fascinantes, escreve Nelson Motta, em depoimento a Silvio Essinger, em texto publicado na Época desta semana. Continua a seguir.
Claro, o Nelsinho não teve só sorte. Várias vezes faltou sorte. Outras vezes ele usou a sorte errada ou confiou demais na sorte. O objetivo de todo escritor é contar uma boa história com um bom personagem. Então, eu tinha que me distanciar desse personagem para ter uma visão mais livre, mais equilibrada. Para poder brincar com ele, para poder criticá-lo e até para poder elogiá-lo em alguns momentos. Nas releituras do livro (De cu pra lua — Dramas, comédias e mistérios de um rapaz de sorte), eu ficava interessado no que ia acontecer com esse garoto. A sorte que ele teve, a cagada que ele fez, a precipitação... o Nelsinho é um cara muito trabalhador, com uma vida turbulenta, que vai passando por esses 75 anos de história. Fiquei tão à vontade falando na terceira pessoa que depois passei a incluir textos que ele publicou no Facebook, poemas... A linguagem foi ficando bem mais solta. E o livro termina com uma love story com happy ending.
Desde que eu era colunista de jornal, o meu lema era “curtir e compartilhar”. Foi uma coisa que veio de fábrica comigo. Compartilhar minhas descobertas musicais, filosóficas, humorísticas... era o que eu fazia, era uma motivação para o trabalho. Eu via uma coisa nova e escrevia sobre ela para compartilhar com os leitores. Eu era o garoto novidadeiro que ia logo contar para todo mundo. Tem uma frase do meu pai que é a epígrafe do livro: “Quem recebeu mais tem que dar mais”. Ele enchia o saco com isso! E como eu sempre tive a consciência de que recebi muito, muito mesmo, sempre me senti na obrigação de dar muito, em todos os sentidos. E quis compartilhar meu pai também. Ele era uma pessoa adorada, formou gerações de advogados, era um ídolo. Quis passar os ensinamentos dele, que pelo menos para mim funcionaram muitíssimo. Tive muita sorte de ter um pai desses. Ele falava: “Atravessou o teu caminho, pediu a tua ajuda, tem que ajudar”. Isso era uma lei para ele.
A diferença desse livro é o jeito de contar. Fosse narrado na primeira pessoa, seria outro livro, seria cabotino. O Noites tropicais (de 2000) era narrado todo em primeira pessoa. Considero ele um livro jornalístico. Lá eu sou um narrador, uma testemunha e um participante de movimentos musicais. É uma história que termina em 1992, quando eu vou para Nova York. Acho que o De cu pra lua são mais as aventuras pessoais desse tal Nelsinho de sorte, mostrando como ele vai conseguindo as coisas, como ele vai se virando com as sortes que vai dando. Sobre o romance com a Elis Regina, o Noites tropicais tem duas páginas. No De cu pra lua, tem três linhas, só para dizer que aquilo era uma coisa importante que mudou a vida desse cara — e a dela também. Falando na terceira pessoa, eu poderia dizer que foi uma grande sorte para a Elis encontrar o Nelsinho naquele momento — e para ele foi uma grande sorte ter uma estrela na sua mão. Todo mundo se deu sorte ali.
De algumas pessoas, no livro, eu até troquei o nome, para poder escrever mais à vontade, não tem grandes revelações. As namoradas da juventude hoje são casadas, são avós... mas é claro que as pessoas saberão perfeitamente quem são, elas são minhas amigas. Pelo meu temperamento, eu detesto polêmica. No meio musical, eu sou chamado de harmonizer. Quando está todo mundo na banda brigando, vão lá e me chamam, para apaziguar. É um dom que eu tenho. E, com a idade, isso foi se aperfeiçoando. Eu, um machista com três filhas, fui me reeducando como homem. Os filhos transformam muito mais os pais do que os pais transformam os filhos. Meu pai dizia que se os pais conseguissem fazer os filhos a sua imagem e semelhança, tudo andaria para trás.
Hesitei muito em dar esse título, que por sinal veio antes de começar a escrever o livro. Mas cada pessoa com quem eu falava achava sensacional. Foi uma aprovação em massa. E se alguém da minha geração eventualmente se sentisse ofendido pelo título, eu sabia que não ia mesmo gostar do livro. Era um sinal para que essas pessoas não perdessem tempo ali. O livro tem muitas intimidades, muito sexo, aventura, devassidão, drogas... só achei que ele tinha que ter um complemento, um subtítulo, para não acharem que tudo o que conquistei na vida foi por sorte. E quem ler o livro vai ver que não foi sorte o tempo todo, não. Teve muita trolha pesada, de perdas, de saúde, teve de tudo ali. Eu fiz questão de contar o tempo em que esse Nelsinho foi dependente de cocaína, as merdas que ele fez, a merda que virou a vida dele. Eu quero que as pessoas saibam que isso faz mal mesmo. Mas não tem nada moral, não estou julgando esse coitado desse Nelsinho. Eu digo sempre para minhas filhas que se meus erros puderam ajudá-las em alguma coisa, para alguma coisa eles serviram.
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