Bons motivos levaram Daniel Filho, nome histórico da TV e de boas bilheterias no cinema, a fazer sua versão para as telas de “Boca de Ouro”, filme baseado na peça de Nelson Rodrigues (1912-1980), lançado nesta semana. O primeiro, ele diz, é manter “aberta” a genialidade do autor, um dos maiores escritores do século XX, “que não pode ser enterrada”, escreve Fernanda Cirenza no Valor, em belo artigo publicado dia 13/11 no jornal. Continua a seguir.
O que significa dizer, ressalta, que seu longa não é uma refilmagem da primeira adaptação cinematográfica do texto original, de 1963, dirigida por Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), a quem Daniel Filho dedica o novo “Boca de Ouro”. “O filme do Nelson é uma raridade, mas Nelson Rodrigues é um clássico que pode ser refilmado quantas vezes a gente quiser.” Entre o primeiro “Boca de Ouro” no cinema e este há o de Walter Avancini (1935-2001), lançado em 1990.
A segunda alavanca foi uma proposta da Globo Filmes, que chegou a Daniel Filho por meio de Edson Pimentel, na época diretor da empresa. “Ele me disse que tinha R$ 3 milhões para fazer filmes de janela curta, que é uma boa ideia, porque eles dão o dinheiro para o diretor, que pode explorar o filme no cinema. Depois, a Globo usa a produção na televisão. Passado um período, o filme volta para o diretor, que se torna definitivamente proprietário da obra, como deve ser. O streaming faz a gente perder a autoridade porque nos tornarmos mão de obra de um trabalho, o que não acho justo com o cinema.”
A derradeira e não menos importante razão que reconduziu Daniel Filho a Nelson Rodrigues foi uma conversa que teve com o documentarista, produtor e jornalista João Moreira Salles. “Ele me impulsionou a exibir esse filme agora, é uma demonstração de que estamos vivos”, afirma o diretor.
Escrita em 1959, a história do Boca de Ouro se passa no fim daquela década no bairro carioca de Madureira. Nessa versão, Marcos Palmeira vive o bicheiro que manda arrancar todos os seus dentes para exibir uma dentadura de ouro. Poderoso e carismático, mantém o autocontrole desde que não falem de sua mãe e de como nasceu numa pia de gafieira.
Após seu assassinato, o repórter Caveirinha (Silvio Guindane) decide contar sua vida a partir do depoimento de uma de suas amantes, a Guigui (Malu Mader), que muda seus relatos conforme seu estado emocional. Há outros personagens fortes, como o casal Celeste, na pele de Lorena Comparato, e Leleco, interpretado por Thiago Rodrigues. Estão ainda no elenco Fernanda Vasconcelos, Anselmo Vasconcelos, Guilherme Fontes, Raquel Fabri, Karina Ramil, Edmilson Barros e Léa Garcia.
Rodado em 18 dias, com produção da Lereby (fundada por Daniel Filho em 1998), coprodução da Globo Filmes e do Canal Brasil, o novo “Boca de Ouro” tem roteiro de Euclydes Marinho, amigo e parceiro do diretor - é dele a adaptação dos contos de Nelson Rodrigues para a série “A Vida Como Ela É”, de 1996, que deu a Daniel Filho o prêmio de melhor diretor pela Associação Paulista de Críticos de Arte. “Euclydes Marinho incorpora Nelson Rodrigues como ninguém”, diz ele.
A intimidade do diretor com Nelson Rodrigues vem de longa data. “Conheci Nelson, trabalhamos juntos.” Um dos momentos mais marcantes dessa amizade aconteceu em 1961, quando Daniel Filho assistiu à peça “Boca de Ouro”, produzida por Milton Moraes (1930-1993). “O espetáculo foi tão maravilhoso que está totalmente na minha cabeça.”
Dois anos depois, o próprio Daniel Filho viveu Leleco no “Boca de Ouro” de Nelson Pereira dos Santos, contracenando com Jece Valadão (1930-2006) e Odete Lara (1929-2015). “Nelson Pereira dos Santos nunca teria feito ‘Boca de Ouro’ se não fosse Jece. Como estava precisando de dinheiro, topou dirigir e dirigiu honestamente.”
Apaixonado declarado pelo cinema, Daniel Filho tem também uma trajetória memorável na TV. Começou na Globo, onde foi ator, diretor e produtor, em 1967, a convite de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.
Só como ator de cinema, Daniel Filho participou de quase 40 produções, entre elas o histórico “Os Cafajestes”, drama de 1963 escrito e dirigido por Ruy Guerra. Como diretor de longas, assina mais de 30, alguns com sucesso absoluto de bilheteria, caso das comédias “Se Eu Fosse Você” 1 e 2, de 2006 e 2009, que atingiram recordes de público logo na estreia.
Estão em seu portfólio os filmes “A Partilha” (2001), “Primo Basílio” (2007) e “Chico Xavier” (2010) - este com mais de três milhões de espectadores. Na TV, dirigiu muitas novelas (“Irmãos Coragem” e “Dancin’ Days”) e criou séries que marcaram época: “Malu Mulher”, “Plantão de Polícia”, “Carga Pesada”, “A Grande Família”, “Grande Sertão: Veredas” (ao lado de Avancini).
Aos 83 anos, Daniel Filho diz estar “esperançoso” com o presidente eleito dos EUA, Joe Biden. Diz que não esperava experimentar a aceleração da “direita” no mundo. “Essa turma que está aí não é simplesmente direita, é ‘white supremacy’, sei lá como chamar essas pessoas. Há muita desfaçatez, gente que usa o poder para gestos menores e horrorosos. O que foi a reunião do ‘passa a boiada’? Um encontro bandidos de filmes de James Bond, só que é realidade.”
Conta que tem olhado para trás a fim de entender o presente. “Revi filmes alemães sobre o nazismo, e a gente percebe que ali havia radicalização forte, um momento em que havia um conceito de raça, de liderança. Não acredito que estamos vivendo uma novidade. Por outro lado, jamais fomos tão bem informados. No Brasil estamos passando por um momento terrível. Nossa cultura já vinha sofrendo atropelos com Temer. Mas quando [Jair] Bolsonaro entra, acaba com o Ministério da Cultura, que vira uma secretaria e depois uma sala. Na verdade, temos um escaninho de cultura ocupado por um figurante de ‘Malhação’. Aí já é piada.”
Inevitável não falar sobre a atuação de Regina Duarte à frente da Secretaria Especial da Cultura, por pouco mais de dois meses, entre março e maio. “Não quero malhar Regina, mas não entendi sua postura”, diz Daniel Filho, ex-marido da atriz e seu parceiro profissional. “Acho que ela se desesperou, foi usada. Uma pobre ‘clown’ que se serviu a esse papel.”
Ele tem planos de filmar, entre outras, as peças “Toda Nudez Será Castigada”, de Nelson Rodrigues - “já está comprada”, diz -, e “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes (1922-1999). Mesmo em isolamento social, tem outras produções a ganharem as telas. Uma delas é a direção de “Silêncio da Chuva”, inspirada no romance de Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), previsto para encerrar o 30º Cine Ceará no mês que vem. O outro é a produção de “Medida Provisória”, primeiro filme de Lázaro Ramos, baseado na peça “Namíbia, Não”, de Aldri Anunciação - ficção futurista que se passa no Brasil, quando o governo decreta medida que obriga negros a migrarem para a África.
Sobre os espinhos da vida, fala de um filho que reconheceu há mais de dez anos. “Supostamente fiz um filho quando tinha 12 anos. Ele tem hoje 71. Não temos contato, mas pago uma pensão a ele, que foi o que me pediu. A mãe era cinco, seis anos mais velha que eu. Não me lembro dessa relação, nem da moça, que deve ter trabalhado pouco tempo em casa. Uma situação que envolve uma empregada e um garoto de 12 anos em 1949. Ela nunca protestou. Ficou com o filho, casou-se com um homem que assumiu o menino. Depois de mortos, meu filho me procurou. Isso tem uns 12 anos. É uma porrada.”
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