“The Undoing” pinta um retrato dos nova-iorquinos privilegiados com certo sarcasmo. Embora o roteirista David E. Kelly tenha criado a nova minissérie do HBO para Nicole Kidman - depois da bem-sucedida parceria em “Big Little Lies” (2017-2019) -, são os coastros Donald Sutherland e Hugh Grant que mais conferem um toque de ironia ao drama conjugal cercado de mistério. “Talvez isso venha da minha tendência de, muitas vezes, saborear as palavras”, brinca Donald Sutherland, em passagem por Zurique, na Suíça, onde conversou com o Valor. O ator de forte presença em cena, seja em “Casanova de Fellini’’ (1976) ou na franquia “Jogos Vorazes” (de 2012 a 2015), sabe que é um dos queridinhos da indústria do entretenimento quando o roteiro exige um tipo poderoso e sagaz, escreve Elaine Guerini, de Zurique, para o Valor, em resenha publicada sexta, 30/10. Continua a seguir.
“Ainda bem que os diretores se aproveitam da curiosa credibilidade que tenho para viver magnatas”, diz o ator canadense, de 85 anos e 195 títulos na bagagem (entre cinema e TV). Na minissérie de seis episódios, que estreou no domingo, Sutherland exercita, mais uma vez, o ar soberbo na pele do investidor aposentado Franklin Reinhart. É de um apartamento na Quinta Avenida, com vista aérea do Central Park, que ele observa o mundo.
Pai de Grace Fraser, a terapeuta de sucesso interpretada por Nicole, o ricaço é o primeiro a perguntar como a filha não percebeu que o casamento com o oncologista pediátrico Jonathan Fraser (Grant) não ia bem. O mais irônico é o fato de Grace reprovar em seus pacientes justamente a incapacidade de enxergar a verdade em seus cônjuges.
Até o marido desaparecer, tudo parece perfeito (até demais) na vida que a terapeuta leva no Upper East Side de Manhattan. Tanto a residência quanto o guarda-roupa da personagem parecem saídos das glamourosas revistas de casa e de moda. Grace adora exibir o filho Henry (Noah Jupe), com quem ela gasta US$ 50 mil por ano para mantê-lo em escola de elite, e o marido, um médico conceituado que seduz todos ao redor com piadinhas e o sotaque inglês.
“O papel de Jonathan me deixou bastante interessado em médicos, principalmente em oncologistas. Por eles despertarem em nós uma certa sensação, a de que ‘Você é bom demais para ser verdade’, isso me faz questionar o que há de obscuro por trás da fachada”, diz Hugh Grant.
Antes de rodar a minissérie, no ano passado, o ator britânico fez questão de conhecer vários oncologistas de Nova York. “Encontrei um médico que serviu de modelo para Jonathan. Gentil e charmoso, todo mundo achava que ele era maravilhoso. Ainda assim, eu podia sentir que ele era do mal”, conta Grant, rindo, na apresentação de “The Undoing” no recém-encerrado Canneseries.
Com cobertura on-line do Valor, esta foi a terceira edição do festival internacional de séries de televisão que é realizado no mesmo local do tradicional evento de cinema de Cannes. Com direção da dinamarquesa Susanne Bier (do filme “Em Um Mundo Melhor”, de 2010, e da minissérie “O Gerente da Noite”, de 2016), a produção do HBO não participou da mostra competitiva, mas figurou na seleção dos principais lançamentos do ano.
Trata-se da adaptação do livro “You Should Have Known”, que Jean Hanff Korelitz publicou em 2014. A obra logo entrou para a lista dos mais vendidos do “The New York Times” e recebeu elogios pela maneira como desconstruiu a imagem inicialmente imaculada da família da terapeuta protagonista.
“As pessoas sempre se sentiram atraídas pelo lado sombrio da humanidade. E, por alguma razão, ainda mais dos ricos”, afirma Grant, de 60 anos e quase 70 trabalhos no currículo. “É o que Harold Pinter [1930-2008] chamava de ‘a doninha sob a cristaleira’”, diz o ator, referindo-se à frase que o dramaturgo inglês usava para evocar a realidade sórdida da vida, negando qualquer visão romântica.
As observações espirituosas, que quase sempre marcaram os personagens de Grant, como em “O Diário de Bridget Jones’’ (2001) e “Um Grande Garoto’’ (2002), são retomadas aqui. Sobretudo nos primeiros episódios - até o oncologista ser apontado como o principal suspeito do assassinato de Elena (Matilda de Angelis), a mãe de um aluno que frequenta a mesma escola particular que Henry.
Assim que o médico se torna um fugitivo, a vida de sonho de Grace desmorona. O sumiço é seguido de uma série de revelações perturbadoras que levam a terapeuta a questionar a real identidade do oncologista - até então visto como um marido ideal. “Você fala de feiura, mas você ainda nem a conheceu”, adverte o magnata Reinhart, em conversa com a filha, assim que a terapeuta começa a desenrolar o nó.
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