Ficaram aquém do historicamente correto as interpretações que do racismo fizeram o vice-presidente da República e o presidente a propósito do assassinato, por asfixia, de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos de idade, trabalhador, pobre e negro. Foi ele espancado até a morte por dois seguranças de um supermercado em Porto Alegre. O general Mourão declarou: “Para mim, não existe racismo no Brasil. É uma coisa que querem importar, mas aqui não existe”. Bolsonaro falou que o caso indica “importação” de ideias e ações de quem quer dividir o país e tomar o governo. É velho argumento do autoritarismo brasileiro, escreve Martins em texto publicado no Valor Econômico na sexta, 27/11.
O racismo é uma das manifestações mais radicais do preconceito. O preconceito está na estigmatização da diferença representada por traços de personalidade, traços físicos, cor, costumes, apresentação pessoal, nos atributos identitários de alguém. O racismo é o preconceito ativo contra alguém em decorrência de sua diferença social, de raça ou cor.
Aqui, há preconceito de cor, de classe social, de religião, de aparência, de cultura. São também manifestações preconceituosas a referência aos que temem a pandemia porque maricas. Ou a referência aos maranhenses como boiolas por apreciarem um tradicional refrigerante local cor de rosa.
No Brasil, o preconceito racial é muito diferente do preconceito que há nos EUA, o que o general Mourão não considerou. Portanto, não é importado. O sociólogo Oracy Nogueira, que foi professor na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e na USP, é autor de um estudo clássico sobre essa diferença. Ele, que fez seu doutorado nos EUA, mostra que lá o preconceito é de origem, aqui é de marca. Lá, um branco que tenha algum ancestral negro continua negro e discriminado, mesmo que pela mestiçagem tenha se tornado branco. Aqui a cor da pele é que estigmatiza, se for negra.
O que é o racismo peculiarmente nosso observei no estudo que fiz de linchamentos, que aqui são muitos. No meu livro “Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil”, exponho os resultados de uma pesquisa sobre pouco mais de duas mil ocorrências. Constatei que ninguém tem sido linchado por ser negro, embora muitos negros sejam linchados. A cor da pele não é causa. O racismo aflora no correr da ação.
Para fazer uma verificação objetiva, e não impressionista dessas ocorrências, desenvolvi um método de cálculo do seu índice de atrocidade, isolando os casos relativos a negros para fazer comparações.
Sejam as vítimas negras ou brancas e seja qual for o motivo do justiçamento, na primeira metade da ação violenta da multidão, o índice é o mesmo. Portanto, nenhum indício de racismo nela presente. Porém, se a vítima da violência for negra, o índice cresce mais do que se for branca. Ou seja, o preconceito racial brasileiro é dissimilado por uma hipocrisia autoindulgente.
O racismo não está no primeiro plano das condutas e das opiniões. Já desencadeada a violência contra um negro, a tendência é a de que o racismo oculto e mesmo inconsciente venha para o primeiro plano, se sobreponha à motivação inicial dos linchadores e acabe dando sentido predominantemente racial ao justiçamento. Somos, sim, racistas, mas diferentes dos americanos.
Bolsonaro, tendo como fundo o caso de Porto Alegre, sem mencioná-lo, expôs o seu conceito de racismo. Declarou-se “daltônico”.
De sua fala no G20 ressalto as concepções de que o afloramento de tensões sociais e conflitos, no Brasil, é importação de fora, por gente que nos divide e quer o poder: “Aqueles que instigam o povo à discórdia, fabricando e promovendo conflitos, atentam não somente contra a nação, mas contra nossa própria história.”
Ao contrário. A história brasileira é uma história de gravíssimas tensões sociais e raciais. O massacre do Quilombo de Palmares, em que negros fugidos resistiram por cem anos à repressão dos senhores de escravos, não é uma história de harmonia. O general e o capitão pensam o Brasil com as categorias ideológicas da farsa das três raças harmônicas, desenvolvida por Portugal no século XVII para viabilizar a luta contra os holandeses. Faz muito tempo. Depois disso, já houve a Independência e a Proclamação da República...
Em Canudos, em 1896-97, o barão de Jeremoabo enganou o Exército e o governo, dizendo que havia surgido ali um levante monarquista. Era falso. Recebera dos sertanejos dinheiro para a madeira a ser usada na igreja e não a entregou, causa da revolta. Muitos descendiam de tapuias. O equívoco de fazer guerra à monarquia religiosa do Divino se repetiu em 1912-1916, no Contestado.
Nos dois lugares era o surto religioso da monarquia do Divino Espírito Santo, gente movida pelo medo do fim do mundo, com a proximidade do fim do milênio.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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